22 Outubro 2007
No dia de ontem, o câmpus da Unisinos, recebeu um dos maiores teólogos da atualidade. Amável e sorridente quando se trata de conversas humanas, implacável e intransigente na hora de falar da necessidade de que todas as pessoas e sociedades se construam a partir de uma Ética Mundial que trate a todos os seres humanos como tais e se oriente por quatro princípios básicos: não matar, não mentir, não roubar e não abusar ninguém sexualmente. Trata-se do teólogo suíço Hans Küng.
Aos 79 anos, Küng enfrentou, ontem, um dia com vários compromissos. Às dez horas estava chegando no Instituto Humanitas Unisinos - IHU para conversar com os jornalistas numa entrevista coletiva. Com o mesmo bom humor cativou a atenção de teólogas e teólogos, com os quais esteve reunidos entre as 16 e as 18h, conversando sobre “Ciência e fé – Por uma Ética Mundial”. Ainda no mesmo dia, às 20h, com o auditório Central da Unisinos lotado, Hans Küng abordou o tema “As religiões e a Ética Mundial”, respondendo, posteriormente, às perguntas de estudantes e professores da universidade. Aos/às jornalistas respondeu perguntas mais gerais sobre os grandes temas que ele aborda. Com teólogas e teólogos fez uma síntese histórica das três maiores religiões (cristianismo, Islã e judaísmo), se detendo nos diversos paradigmas que foram surgindo em cada época. Por sua vez, aos estudantes e professores explicou em detalhes a necessidade do diálogo entre as religiões e a importante contribuição que elas podem dar para um mundo de paz.
Confira amanhã uma síntese das principais idéias desenvolvidas em cada uma das três conferências proferidas pelo teólogo no Rio Grande do Sul, nos dias de ontem e hoje e, a seguir, algumas das idéias defendidas por Küng ao longo da entrevista coletiva.
Confira a entrevista
IHU On-Line - O que espera do encontro com o presidente Lula, na próxima quinta-feira?
Hans Küng - Quando falar com ele já terei estado alguns dias aqui no Brasil e terei sentido um pouco mais aqueles temas que são importantes para a sociedade brasileira. Mas eu já sei que o tema da educação vai ter um papel central. Também sinto que há uma expectativa geral da população em relação aos problemas de violência e falta de ética na sociedade brasileira. É um tema que falarei com o presidente porque é preciso que a sociedade entenda que não será possível uma mudança sem respeitar quatro princípios éticos: não matar, não roubar, não mentir e respeitar a sexualidade. São os quatro princípios básicos defendidos pelo Projeto de Ética Mundial. Um outro princípio fundamental para todo o projeto é o parâmetro da “regra de ouro”, que diz que não se deve fazer ao outro o que não se quer que façam a si mesmo. Esse é um princípio fundamental que precisa ser vivenciado desde o jardim de infância, em toda a educação, nas igrejas e religiões, nos partidos políticos, em todas as instâncias da sociedade.
IHU On-Line - Que relações é necessário estabelecer entre ética e política?
Hans Küng - Precisamos de homens de estado e políticos que além de competência técnica tenham integridade ética. É natural que as pessoas se decepcionem quando são defendidos apenas interesses particulares. É preciso olhar para as biografias das pessoas já na hora das eleições e descobrir quem é honesto e íntegro. Precisamos de gente no poder que defenda os interesses da população.
IHU On-Line - Qual é o estágio atual no diálogo entre as religiões?
Hans Küng - Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões e não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre elas. Quem não quer diálogo com o outro, atira no outro. Essa é a alternativa. As guerras contra Iraque e contra o Afeganistão foram supérfluas, contrárias ao direito internacional e a qualquer moral cristã. Também o ataque contra o Líbano agora se mostrou assim.
IHU On-Line- O senhor afirma que as religiões seriam as grandes “parteiras do ethos mundial” e ao mesmo tempo as grandes “perturbadoras da paz mundial”. Poderia explicar essa afirmação?
Hans Küng - De fato, a religião tem um caráter ambivalente. Ela pode suscitar ódios, paixões descontroladas, inclusive, guerras. Mas ela também pode suscitar a conciliação, a paz e o bem-estar das pessoas. Por isso que o Projeto de Ética Mundial dá mais ênfase às tarefas positivas das religiões.
IHU On-Line - Qual é o potencial de gerar paz de uma religião como o Islã, por exemplo?
Hans Küng - Muitas vezes as pessoas identificam o Islã com violência, mas podemos também associar cristianismo e violência. Na história da América Latina, por exemplo, foi terrível o papel dos conquistadores que, em nome do cristianismo, trouxeram a dizimação dos povos. No entanto, a essência do cristianismo é a paz, é a conciliação e não o conflito, o ódio, a destruição. A essência do Islã é fundamentalmente a paz. As palavras ‘islã” e “paz” têm a mesma origem. No Islã, há uma defesa religiosa da paz e da convivência pacífica. Na Idade Média, sob o poder islâmico, havia muito mais diálogo e compreensão entre as diferentes religiões (judeus, cristãos, islâmicos) que sob o poder cristão na época medieval. É claro que os exércitos arábicos também conduziram grandes guerras e conquistas, mas os povos que eles submetiam não eram obrigados a se converterem ao Islã. Eles tinham que cumprir obrigações sociais, políticas, militares mas não eram obrigados a assumir a religião. Depois da reconquista, quando o cristianismo se restabelece na Espanha. a partir de 1942, o poder cristão obrigava os judeus e os muçulmanos a assumirem a fé cristã; do contrário, eles tinham que deixar o território. Não quero ficar fazendo acusações, mas nós cristãos temos muitos mais razões para a humildade e não temos razão para levantar um dedo contra alguém quando há três dedos apontados contra nós.
IHU On-Line - Até onde pode chegar o entendimento entre as religiões?
Hans Küng - O primeiro pressuposto é que as religiões se conheçam umas às outras e conheçam a si próprias. Que não se baseiem nos preconceitos que alimentamos umas em relação às outras. Também é necessário que dialoguem umas com as outras, que se encontrem soluções práticas para as dificuldades. Na Europa, por exemplo, temos o problema de que as comunidades muçulmanas querem construir as suas mesquitas e isso irrita muitas pessoas. Mas, em vez de ficar tomando medidas jurídicas ou estritamente administrativas, o mais importante seria dialogar com as comunidades islâmicas para que, por exemplo, se encontrasse o melhor lugar para a construção das mesquitas, decidir em conjunto qual seria a altura adequada, de maneira que a paisagem da cidade não se visse prejudicada, ou seja, buscar uma solução comum, honesta, em diálogo com todos.
IHU On-Line - Como “converter” Bush para uma mentalidade um pouco mais ecológica?
Hans Küng - É tarde de mais para ele se converter. O importante é que na próxima eleição os critérios sejam mais claros. Os eleitores americanos parecem ter mais clareza de que não se pode mentir, matar, trazer prejuízos financeiros enormes como foi agora. Não se trata de imaginar somente que o próximo presidente será melhor, e sim que a população americana saiba que é preciso agir eticamente e não apenas de uma maneira estratégica buscando nas maiores vantagens.
IHU On-Line - Quais são as principais diferenças entre o que o senhor imaginava que aconteceria depois do Concílio Vaticano II e o que de fato ocorreu nos anos posteriores ao Concílio?
Hans Küng - Esperava que a Igreja continuasse a linha desenvolvida pelo Concílio e que se resolvessem problemas que na época não puderam ser resolvidos. Problemas relacionados aos métodos anticoncepcionais, à pílula, ao celibato dos padres, à separação de casais, à aproximação das Igrejas. Esperava-se um posicionamento comunitário do Papa e dos Bispos na condução da própria Igreja, mas isso não aconteceu. Aconteceu o contrário. Os inimigos do Concílio, a Cúria Romana, acabaram por fazer prevalecer os seus interesses. Para isso, foram utilizados fundamentalmente dois métodos. Primeiro, a publicação de vários documentos sobre questões decisivas: houve uma encíclica sobre o celibato, uma encíclica sobre a pílula e uma outra sobre a relação da Igreja com as demais religiões, os que chamo de documentos anti-ecumênicos. O segundo método foi uma rigorosa política de substituição de pessoas. Foram nomeados bispos os padres que fossem fiéis a Roma. Bispos muito importantes no Brasil, como Dom Hélder Câmara, Dom Evaristo Arms e Dom Aloísio Lorscheider, foram simplesmente substituídos ou deslocados por pessoas que fossem fiéis a Roma e tivessem pouco a dizer em relação a seus antecessores.
IHU On-Line- Acha que um próximo concílio resolveria? Em que circunstâncias?
Hans Küng - Se deve temer que a situação negativa da Igreja se torne cada vez mais complicada. Isso também para o Brasil, não é um problema só da Europa. Quando se pensa que no Brasil há um padre para 200 mil fiéis, tal fato mostra que esse sistema está à beira do colapso. As pessoas vão embora, em busca de comunidades menores, nas quais existam pastores. Um próximo Papa, e eventualmente um concílio, terá problemas muito graves se as coisas continuarem assim. Na Holanda, na Suíça, na Alemanha, na Áustria, os problemas são tão sérios que as pessoas sentem que assim a situação não dá para mais. Este é o caso de dominicanos holandeses que exigiram que, diante da falta de pastores, as comunidades pudessem escolher um indivíduo casado ou não para se tornar pastor de determinada comunidade e que o Bispo impusesse as mãos sobre essa pessoa, o tornando pastor autorizado dessa comunidade. Na Suíça, um bispo tentou tirar um padre da comunidade e a comunidade, então, recorreu às leis da Suíça. Nelas, acharam os argumentos para que o Bispo voltasse atrás. Na Suíça, muitas mulheres tomam o poder nas comunidades porque sem elas não seria possível o trabalho pastoral. Elas mesmas organizam as celebrações. Mesmo que a cúria não queira, elas acabam tomando, de fato, o poder à frente de suas comunidades. Seria preciso que, entre tantos bispos que existem no Brasil, em algum deles prevalecesse a parresia apostólica, ou seja, a coragem de espírito para dizer ao Papa: “assim não dá mais”. Lembro o segundo capítulo da carta de São Paulo aos Gálatas, na qual Paulo, em discordância com Pedro, diz que olhou Pedro nos olhos, frente a frente e conseguiu se impor diante dele.
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Religiões são ambíguas, mas têm o potencial de gerar a paz. Entrevista especial com Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU