12 Dezembro 2007
“Eu creio que nós devemos ter uma fé profunda na capacidade do pobre. Ter uma fé profunda na opção preferencial de Deus pelos pobres desde o início”, assim conclui Dom Xavier Gilles em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Enfático, veemente e audacioso: esses são alguns traços revelados por ele durante a conversa, na qual se falou sobre sua luta, sua opção pelos pobres do Maranhão, sobre o agronegócio e a devastação da Amazônia. Dom Xavier é uma figura muito bondosa, mas nem de longe é uma figura frágil. Assim como foi intenso em sua decisão pela missão de lutar pelos pobres, é apaixonado pela causa e luta por ela com unhas e dentes, sem meias palavras.
Dom Xavier Gilles nasceu na França em 1935. Ordenado presbítero em 1962, foi mandado para o serviço da Arquidiocese de São Luís, Maranhão, a pedido de Dom José de Medeiros Delgado e de seu auxiliar, Dom Antônio Batista Fragoso. Foi vigário paroquial e assistente eclesiástico da Juventude Operária Católica. Participou do nascimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da CPT no Maranhão. Em 1971, foi preso pela ditadura militar instalada no Brasil. Hoje, é Bispo de Viana, Maranhão, e presidente do Regional Nordeste V da CNBB.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor veio para o Brasil?
Dom Xavier Gilles – Bom, quando eu vim para o Brasil eu conversei demoradamente com meu Bispo, na França, e disse para ele que eu pensava que meu caminho eram as missões. Eu fui visitar algumas congregações chamadas missionárias, mas nenhuma me tocou. Então, ele disse que, depois de eu pensar bem sobre meu caminho, refletiríamos novamente. Quando eu já era diácono, mais ou menos na época da Encíclica Fidei Donum (1), houve um apelo do Papa aos cardeais e bispos da França para mandar missionários para a América Latina. Com isso, passaram pela França dois bispos, um chileno e Dom Antonio Batista Fragoso, que era Bispo Auxiliar de São Luís do Maranhão. Ele pediu um padre para começar a ação católica que operaria em São Luís. O bispo responsável pela questão da América Latina era fantástico, o Bispo de Orlean. Ele disse que não deveria mandar padres sozinhos, que o padre escolhido deveria ter um companheiro. Ele se encontrou com meu bispo, que se lembrou da minha história e disse que tinha alguém. O Bispo de Orlean me chamou e disse: “Tu serás ordenado agora e vai logo sair para São Luis do Maranhão”. Foi assim que eu vim para o Brasil e começou minha trajetória, com o espírito de Fidei Donum e com o apelo do Papa para a América Latina. Além da passagem desse bispo fantástico, Dom Antonio Batista Fragoso, que motivou muito.
IHU On-Line – Como é ser Bispo de Viana, uma região com histórico tão conturbado?
Dom Xavier Gilles – (risos) Eu nunca deveria ter sido bispo de Viana. Porque há uma história, como você fala, muito conturbada, com problemas gravíssimos, que vão durar depois de mim e depois do meu sucessor. Quando Dom Paulo Ponte (2), que era Arcebispo de São Luís, me chamou para ser bispo auxiliar, eu trabalhei dois anos e meio com ele. Um dia, ele me chamou e disse: “Venha falar comigo”. Então, eu fui lá e sucessivamente três ou quatro tinham recusado assumir Viana, por razões diversas, mas sempre, de certa forma, pelo mesmo motivo. De repente, Dom Paulo disse: “Meu auxiliar aceita”. Estava lá no escritório, pediram uma confirmação por escrito, e Dom Paulo disse: “Ele vai escrever ainda hoje”. Assim, fui para Viana.
O Maranhão é um estado ainda da Amazônia, e eu o conheço desde 1962. Por causa de Dom Fragoso, eu comecei a trabalhar nos bairros populares de São Luís e com toda essa população rural que foi expulsa da terra pelo latifúndio, pelas forças militares etc. Depois, o outro Arcebispo fez um apelo dramático para que os padres fossem voluntariamente para o interior, porque mais da metade deles morava na capital e a grande população, naquela época, morava no interior. Então, de São Luís, depois de cinco anos, fui morar no interior. Eu descobri a realidade do interior, o latifúndio, a opressão, o roubo da terra. Então, chegou a ditadura militar, fui acusado de comunista, fomos presos (eu e o Padre Antonio de Magalhães Monteiro). Depois, continuei, por cerca de 20 anos, em São Benedito do Rio Preto. Acompanhei o nascimento das comunidades eclesiais de base, da descoberta fabulosa da palavra libertadora por meio da Bíblia. Nenhuma dessas CEB’s será totalmente aceita porque todas elas desejam uma verdadeira libertação das pessoas; é algo fantástico. Por isso, sempre existem dúvidas dentro da Igreja em relação a isso. Quando cheguei a Viana, encontrei uma Diocese bastante vasta, com 560 mil habitantes, 26 mil quilômetros quadrados, que vai de Açailândia até perto de São Luís. A baixada maranhense lembra um pouco o Pantanal, com problemas ecológicos gravíssimos, e cercada sempre pelas questões do latifúndio e do agronegócio, que não respeitam nada nem ninguém. Os bairros, mesmo de cidades pequenas, são cheios, o pessoal está sem emprego, há prostituição infantil, drogas, problemas que irão continuar enquanto tivermos um sistema social tão injusto e um sistema judicial que continua com um problema muito grave, a corrupção. A justiça tem desprezo pelos pobres, pois o promotor vai dizer a ele: “Você tem que pegar um advogado”. Será que esse miserável não se dá conta de que um grupo de pescadores, por exemplo, não tem condições de contratar um advogado sério? Juízes chegam aqui na terça e vão embora na quinta, e assim por diante. Agora, há poucos dias, criaram duas varas e ainda tem só um juiz substituto, e por aí vai. A presença da Igreja nesta região deve ser ao lado dos pobres. A Igreja está dividida por interesses; sempre existem as duas posições. Existe uma igreja engajada, que caminha junto com os pobres, lutando pela paz e pela justiça, assim como há a luta por uma igreja de louvor. Estamos nesse conflito sem parar. Enquanto a Igreja não terminar com esse clericalismo extremamente poderoso, o poder de um pároco pode fazer mudar toda uma pastoral. Isso não é possível, pois, conseqüentemente, as outras comunidades religiosas, pentecostais, evangélicos aumentam, fazendo a católica diminuir.
IHU On-Line – O senhor pode avaliar o legado de Dom Hélio, que foi Bispo do Maranhão e marcou a história do Estado?
Dom Xavier Gilles – Dom Hélio, infelizmente, morreu jovem. Mas foi um daqueles grandes bispos que viveram no Maranhão. Dom Francisco Hélio Campos, Dom Antonio Batista Fragoso e até Dom José de Medeiros Delgado tinham um senso fantástico da justiça, da imagem de Deus, do povo, da coragem. Dom Hélio foi o segundo bispo de Viana. Foi um grande bispo, mas que não ficou por mais de quatro ou cinco anos. Já a história dele no Ceará era bonita.
IHU On-Line – O senhor relata que o agronegócio só vai piorar a situação entre camponeses, indígenas e madeireiros. O que pensa do governo Lula, que tem priorizado o agronegócio em prol, dizem, do desenvolvimento do país?
Dom Xavier Gilles – É como Bush, compreende? Bush vai fazer guerra, condena aqueles que não estão a serviço absoluto do governo dos Estados Unidos. O agronegócio é o herdeiro direto do latifúndio, não respeita nada. Ele derruba tudo, planta eucaliptos e soja, acaba com os mananciais de água. Além disso, o Amazonas quase não tem mais madeira, que é buscada nas regiões indígenas. Esse pessoal está brincando com a natureza e todo mundo sabe disso. Mas o lucro precisa ser rápido, e os ricos não estão nem um pouco preocupados. A corrupção é outra coisa que todo mundo sabe que existe. Aqui e acolá tem um promotor, um juiz, como dizemos aqui, “macho”, mas são poucos. Então, a Igreja é uma pequena semente. Uma parte da Igreja lembra que Deus é vida, é a defesa do pobre. A missão é apaixonante, mas é a questão da escolha pelos pobres, de uma Igreja que precisa ser mais colegial. Inclui-se, aqui, a questão de rever as comunidades e sacerdócios. Ninguém quer trocar o lugar da mulher na Igreja, por exemplo. Será que é a vontade de Jesus Cristo que os presbíteros cheguem de pára-quedas na comunidade?
IHU On-Line – Como o senhor avalia o papel que o governo estadual vem desempenhando em relação aos madeireiros que devastam toda a terra e aos homens que nela vivem?
Dom Xavier Gilles – O PDT fez aliança com o PSDB, que é ligado aos madeireiros, ao agronegócio. Todo o pessoal do PSDB é nítido e claro quanto a isso, e é esta linha que está no governo. Do outro lado, seria a mesma coisa. Temos um partido que presta ainda, o PT, mas que está dividido. Tem pessoas excelentes nele, mas que não são capazes de dialogar juntas; pelo contrário, brigam como cachorros no meio da rua.
IHU On-Line – Para o senhor, qual é o objetivo da mudança do mapa da Amazônia legal, sem os estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão?
Dom Xavier Gilles – Porque uma vez que a Amazônia legal não tem recursos jurídicos, irão acabar com tudo. Vão fazer recuar a fronteira da Amazônia legal e vão poder derrubar, acabar, fazer desta parte da Amazônia, que ainda é legal, um deserto absoluto. A finalidade é muito clara. O Lula, infelizmente, entrou nesse jogo. Eu penso que nós vivemos um momento extremamente importante. Temos que, no meio de tudo isso, disseminar a vontade de Deus e o caminho de Jesus.
IHU On-Line – Que alternativas o senhor propõe para essa destruição da vida que está acontecendo na região? Quem é o responsável por essa mudança?
Dom Xavier Gilles – Eu acredito que nós devemos ter uma fé profunda na capacidade do pobre. Ter uma fé profunda na opção preferencial de Deus pelos pobres desde o início, na idéia de que Ele caminha com seu povo e que este, colegialmente, busca, com todas as mulheres e homens de boa vontade, encontrar o caminho certo. Ter uma fé profunda, a fim de suportarmos injustiças sociais tão graves, com salários de desembargador e juízes que ganham em um dia o que um trabalhador leva três ou quatro meses para receber. Não é possível aceitar esse quadro! Então, a solução é a fé profunda, que tem o compromisso de fazer desta terra a terra de Deus.
Notas:
(1) Publicação feita pelo Papa Pio XII, na qual havia o incentivo para continuar o trabalho das missões no contexto daquela época. A publicação completou 50 anos em 2007.
(2) Foi, por 21 anos, arcebispo de São Luis do Maranhão.
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Um homem apaixonado pela luta dos pobres. Entrevista especial com Dom Xavier Gilles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU