21 Outubro 2025
"Vivemos em uma época que não honra a única coisa de que todos nós mais precisamos: autocontrole. E estamos pagando um preço terrível por essa falta", escreve Michael Sean Winters, jornalista e escritor, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 20-10-2025.
Eis o artigo.
O presidente Donald Trump ameaçou transferir as partidas da Copa do Mundo do ano que vem, programadas para serem disputadas em Boston, para outra cidade. Trump disse estar preocupado que Boston, e outras cidades administradas por democratas que se opõem à sua agenda, sejam "inseguras" porque são "administradas por lunáticos radicais de esquerda que não sabem o que estão fazendo".
Quando a NFL anunciou que a sensação musical porto-riquenha Bad Bunny seria a atração principal do show do intervalo do Superbowl do ano que vem, os influenciadores do MAGA enlouqueceram, denunciando a decisão porque Bad Bunny não canta em inglês e porque sua próxima turnê musical não passará por cidades dos EUA. O cantor estava preocupado que as apresentações atraíssem agentes do ICE.
No início deste ano, o presidente colocou sua própria equipe no comando do Centro John F. Kennedy de Artes Cênicas e aprovou pessoalmente a lista dos que receberiam as honrarias anuais do Kennedy Center, garantindo que ninguém muito "consciente" fosse incluído na lista. Trump também anunciou que estava pensando em renomear o centro com seu próprio nome.
A administração também está engajada em um esforço praticamente sem precedentes para reformular o ensino superior. Além de buscar acabar com os programas de diversidade, equidade e inclusão, a administração também quer mudanças no currículo.
A política deve ser parte da cultura de uma sociedade, um derivado da cultura, a jusante da arte e da filosofia. Em nossa época, um dos principais sintomas da doença social é a forma como a política está subsumindo a cultura.
A questão aqui não é se Trump está certo ou errado quanto aos méritos de qualquer preocupação cultural específica. Se Boston realmente tivesse um problema com a segurança pública, as autoridades deveriam estar preocupadas com a possibilidade de um grande evento esportivo acontecer lá. A prefeita Michelle Wu pode não estar correta ao chamar Boston de a cidade "mais segura" dos Estados Unidos, mas dados de criminalidade mostram que ela é uma das mais seguras. Você pode gostar ou não da música do Bad Bunny. Realmente há problemas com a forma antiliberal como algumas instituições buscam programas de diversidade, equidade e inclusão. Mudar o nome do Kennedy Center é absurdo.
A questão é que o governo não deve receber muito poder no âmbito da cultura. Na teoria liberal clássica, o governo limitado permite que os cidadãos definam e materializem a cultura que desejam em toda a sua variedade, em grande parte livre da interferência governamental.
Trump e seus acólitos não são os primeiros políticos a buscar exercer algum grau de controle sobre a cultura. Lembram-se de quando a então primeira-dama Hillary Clinton disse que precisávamos de "uma nova política de significado" para confrontar o que ela discernia, erroneamente, como um vazio na cultura? Que nojo. Concordei com o editor literário da New Republic, Leon Wieseltier, que escreveu: "O problema contemporâneo não é que as pessoas acreditem em muito pouco, mas sim que acreditem em muito. Muito daquilo que muitas pessoas acreditam é adquirido com muita facilidade e mantido com muita irreflexão. ... Não é a falta de significado, mas a superficialidade do significado, que é o problema."
A Doutrina Social Católica difere da teoria liberal clássica. A Doutrina Social Católica acredita que a política deve aspirar ao bem comum, e isso envolve a identificação de valores a serem buscados, responsabilidades a serem atribuídas e liberdades a serem restringidas. Podemos apoiar a Previdência Social, o financiamento das artes e a Lei de Moradia Justa, todos os quais implicam a intrusão do governo na cultura, indo além dos direitos estritamente políticos, tanto em bases liberais quanto católicas. E a Doutrina Social Católica tem sua insistência aguda na dignidade da pessoa humana, na prioridade da família em toda uma gama de decisões culturais e sociais e no princípio da solidariedade para manter o governo sob controle.
A tendência de Trump de se intrometer na esfera cultural está relacionada, mas é diferente, ao seu desejo de concentrar o poder político no Executivo. Se o Congresso, ou pelo menos uma das câmaras, estivesse nas mãos dos democratas, o presidente talvez nem sonhasse em renomear o Kennedy Center. Cercado por bajuladores que não ousam dizer "não" a qualquer ideia que saia dos lábios do querido líder, Trump é como uma criança de 5 anos em estado de euforia, e seu governo se assemelha cada vez mais a crianças de 5 anos jogando futebol.
Trump não foi o primeiro presidente a buscar ampliar seu poder de maneiras que se mostraram problemáticas. Quando Barack Obama criou a Ação Diferida para Chegadas na Infância por decreto executivo em 2012, sua ação aliviou o medo de deportação de quase 750.000 pessoas. Ajudou Obama a ser reeleito, mas ainda não se sabe se, a longo prazo, ajudou aqueles a quem protegeu. Enquanto Trump planeja revogar ou eliminar o programa, esses Dreamers podem estar ainda mais expostos, pois se registraram no governo federal para obter a proteção do Daca.
O povo americano precisa se lembrar de que, quando um político de quem você gosta conquista mais poder para implementar uma política de sua preferência, esse poder acabará sendo usado tanto para o bem quanto para o mal. Limitá-lo completamente é, em geral, algo positivo. Mas nossa cultura também precisará se posicionar e insistir em sua liberdade de invasões governamentais, da esquerda ou da direita. Não precisamos defender um muro de separação, mas pelo menos reconhecer que cultura e política caminham em caminhos diferentes.
Por exemplo, deveríamos parar de pedir a opinião de estrelas de cinema ou rockstars sobre legislação. Eu adoro Meryl Streep; ela deu vida a Julia Child, Miranda Priestly e tantas outras na tela. Não dou a mínima para o que ela pensa sobre qualquer política pública específica. Deixemos que os artistas contribuam e moldem uma cultura que, por sua vez, e com o tempo, afetará e moldará nossa política. Parem de transformá-los em lobistas.
Vivemos em uma época que não honra a única coisa de que todos nós mais precisamos: autocontrole. E estamos pagando um preço terrível por essa falta.
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