16 Novembro 2024
No próximo dia 7, quinta-feira, será posto à venda um novo livro de aforismos de José Tolentino Mendonça. Depois de Uma beleza que nos pertence, publicado em 2019, surge agora A vida em nós, também na Quetzal.
A informação é de José Tolentino Mendonça, publicada por 7MARGENS, 03-11-2024.
Com citações retiradas de oito das mais recentes obras do atual prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, as frases falam do que significa ser cristão hoje, da fé ou os limites da esperança, da alegria, da família, da velhice, do amor e da amizade, da imperfeição do tempo e da necessidade da beleza nas nossas vidas. Outros temas passam por este conjunto de frases soltas, mas ligadas: a busca de Deus, a solidão, a fragilidade ou até Camões.
Em pré-publicação, o 7MARGENS antecipa a seguir excertos dos capítulos sobre o Natal, os Outros e o Perdão.
Livro "A vida em nós", de José Tolentino Mendonça (Editora Quetzal, 2024).
Natal. Deus manifesta-se em Jesus que nasce. Mas a grande questão é: como se reconhece? Como se reconhece a passagem de Deus pela nossa história? Como se reconhece a sua epifania quotidiana? Com que gramática, de que forma ou com que guia podemos reconhecer a fantástica presença de Deus? Porque Ele está. É isso que o Natal celebra. Ele está. Fez-se vizinho da nossa carne. A nós é que nos falta a capacidade de O reconhecer.
O Natal torna-nos cúmplices da fé no nascer. Pede-nos para acreditarmos na potencialidade que tem a vida frágil, a vida extrema, a vida na sua condição mais pequena.
Porque é que estamos aqui à beira do presépio? O que é que nos junta uns aos outros nesta roda de crianças eternas junto da Criança divina que nasce? A única razão, válida, para estarmos aqui é esta: precisamos de um Salvador.
O presépio somos nós. É dentro de nós que Jesus nasce.
Talvez o que nos custe mais neste insano tráfico pré-natalício seja, precisamente, a constatação dolorosa e inconfessada de que não sabemos ou não conseguimos dar. Ainda que as mãos se atulhem de embrulhos, sabemo-las no fundo vazias, atadas às suas posições invisíveis, incapazes de dar não o inútil, mas o que seria preciso, indisponíveis para a tarefa da reparação da vida, equivocadas em relação à verdadeira carência ou ao diagnóstico que fazem da escassez e da lacuna. Há uma dor submersa, uma ferida que brota do confronto com esta nossa vulnerabilidade, sobretudo quando desistimos de fazer um caminho com ela. O dom é efetivamente mais complexo do que parece, e mais comprometedor do que, porventura, queremos.
A nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros.
Um dia ser-nos-á perguntado o que fizemos não apenas da nossa esperança, mas também da esperança daqueles com quem caminhámos, sobretudo dos mais vulneráveis.
Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano: o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e de prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.
O que de mais importante em nós se destina a ser dito soletra-se melhor no silêncio de um abraço, porque aí ocorre isto que é tão precioso: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de outro coração.
Onde está um ser humano, ferido de finitude e de infinito, está o eixo de uma catedral.
Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos que somos, em muitos sentidos, uma obra dos outros.
Dar aquilo que não se tem significa dizer ao outro, de uma maneira clara, confiada e extrema, a falta que a sua vida abre em nós.
A mesa foi sendo, ao longo dos anos, indispensável lugar de reconhecimento e hospitalidade, experiência de intercâmbio e território de relação. A mesa tem, por isso, a forma do dom e evoca todos aqueles que nos nutrem. Não te alimentas apenas de comida.
Fundamentalmente, alimentamo-nos uns dos outros. Somos alimento uns para os outros.
O esquecimento não é condição para o perdão. Podemos perdoar mesmo aquilo que não pode ser esquecido. O que é o perdão, então? O perdão é um ato unilateral de amor. É acreditar que a lógica do amor é superior à lógica da violência. É dar ao outro não o que ele mereceria pelo que praticou, mas aquilo que está no coração de Deus. Perdoar é acreditar no valor da reconciliação por si mesma. E, depois, viver assim.
Obrigado pelos amigos incondicionais. Que discordam de nós permanecendo connosco. Que esperam o tempo que for preciso. Que perdoam antes das desculpas. Essas e esses são os irmãos que escolhemos. Os que colocas a nosso lado para nos devolverem a luz aérea da alegria. Os que trazem, até nós, o imprevisível do teu coração, Senhor.
A mesa é um espaço, por excelência, das identidades e da sua salvaguarda; é, pela sua natureza, um lugar tendencialmente excludente dos estranhos, uma linha de demarcação das pertenças. A grande metamorfose cristã é transformar a mesa num lugar abrangente, num espaço de abertura, onde as identidades se reinventam a partir da universalidade do encontro.
À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos.
O que sabemos é que, sem amizade, a mulher e o homem viveriam como exilados. A amizade autoriza-nos a dizer: "Eu sou porque tu és."
O perdão abre portas dentro de nós.
O perdão não é o esquecimento. Muitas vezes confundimos as duas coisas e dizemos "Ah, não consigo esquecer", como se isso significasse necessariamente "não consigo perdoar". Não: uma coisa é o perdão, outra o esquecimento. Até porque há fatos impossíveis de esquecer. Tal não depende, em absoluto, de alguma coisa que possamos fazer. Há ofensas que deixam marcas tão inalteráveis que não conseguimos esquecer, ainda que quiséssemos. E se as esquecemos em termos do consciente, elas perduram no inconsciente, e dão-se continuamente a ver em gestos, em reações que são resultado disso. A questão deve, antes, colocar-se assim: 'Consigo perdoar uma ofensa que nunca mais vou esquecer?"
Gosto da palavra "reparar", pois transporta para o ato de ver uma polissemia e uma ética. Reparar introduz-nos por si só numa lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver parado, um revisar porventura mais minucioso do que o mero relance; é uma visão segunda, uma nova oportunidade concedida não apenas ao objeto, nem sequer apenas ao olhar, mas à própria visibilidade, isso que Merleau-Ponty dizia ser o único enigma que a visão celebra. Mas reparar é mais do que isso: põe também em prática uma reparação, um processo de restauro, de resgate, de justiça. Como se a quantidade de meios olhares e sobrevoos que dedicamos às coisas fosse lesiva dessa ética que permanece em expectativa no encontro com cada olhar. Por isso, de certa forma, só quando reparamos começamos a ver.
Precisamos de alguém que nos olhe com esperança. Miguel Ângelo dizia que as suas esculturas não nasciam de um processo de invenção, mas de libertação. Ele olhava para as pedras toscas, completamente em bruto, e conseguia ver aquilo em que se podiam tornar. Por isso, ao descrever o seu ofício, o escultor explicava: "O que eu faço é libertar." Estou convencido de que as grandes obras de criação (também aquela da criação e da recriação do homem) nascem de um processo semelhante, para o qual não encontro melhor expressão do que esta: exercício de esperança. Sem esperança só notamos a pedra, o carácter tosco, o obstáculo fatigante e irresolúvel. É a esperança que entreabre, que faz ver para lá das duras condições a riqueza das possibilidades ainda escondidas. A esperança é capaz de dialogar com o futuro e de o aproximar. A nossa existência, do princípio ao fim, é o resultado de uma profissão de fé.
Só o excesso de Amor permite compreender o perdão. Este perdão imprevisível, este perdão sem condições nem medida, este perdão capaz.
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“A Vida em Nós” – livro de aforismos de Tolentino Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU