24 Setembro 2024
"Não se trata, portanto, de somente indagar o que a instituição pode fazer por seus alunos indígenas, mas de saber o que eles podem fazer pela universidade, que ganha com a presença de representantes de outras culturas e de outras línguas, portadores de saberes e de formas diferentes de produzi-los", escreve José Ribamar Bessa Freire, em artigo publicado em seu blog Taquiprati, 14-09-2024.
José Ribamar Bessa Freire é professor da pós-graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), orientador pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas.
“A letra de Nhanderu está escrita no céu e na natureza, mas é preciso aprender a ler essa letra”. (Alcindo Moreira Wherá Tupã, 2015).
O tcheramoi Alcindo Moreira Wherá Tupã morreu neste 14 de setembro aos 114 anos de idade. Líder na defesa da terra e dos direitos indígenas semeou saberes por esse mundo de Nhanderu, como testemunhei em nossas andanças, uma em 2007, quando acompanhados do seu filho Geraldo, visitamos a pajé Zeneida Lima no Marajó. Pude presenciar o encontro de sábios: o líder religioso guarani de Santa Catarina com a herdeira da pajelança cabocla do Pará.
Outro evento foi na Semana dos Povos Indígenas, em 2011, na PUC de Goiás, que organizou a mesa Diálogos interculturais: Universidade e Sustentabilidade Indígena para discutir a ciência, que circula na universidade e o saber indígena, que se transmite oralmente, renovado e atualizado. Abordamos o mesmo tema depois no Museu do Índio (RJ).
De 2003 a 2011, nos encontramos duas vezes ao ano no Curso de Magistério Kuaa Mboé. Juntos, demos aulas na mesma sala para 80 professores bilingues de escolas indígenas situadas em cinco estados (RS, PR, SC, RJ e ES). Wherá Tupã usava a língua guarani e eu, o português. No intervalo, não desgrudava dele e da dona Rosa, bebendo as sábias palavras do casal. Dessa forma, fomos tecendo vínculos de amizade e afeto, até que ele me convidou a visitar sua aldeia de nome poético Reflexo das Águas Cristalinas (Yynn Moroti Wherá) em Biguaçu (SC).
Em um desses encontros conversamos muito. De noite sonhei que meu pai era Nhanderu Tenondé, o Criador do mundo, mas Ele não me reconhecia como seu filho. Acordei suado, suado, decidido a pedir exame do DNA para verificar se Nhanderu era mesmo meu pai. A questão da paternidade divina surgia sempre na interlocução com meu amigo Wherá Tupã. Afinal, quem era esse pajé guarani que fazia até um órfão desamparado em sua fé se sentir filho de Nhanderu?
Nascido em 1909, Wherá Tupá Alcindo Moreira comemorou seu aniversário de 114 anos em 25 de janeiro de 2024. Casado com Poty-Dja Rosa Mariani Cavalheiro, com ela teve oito filhos – cinco mulheres e três homens – e mais de 50 netos, três dezenas de bisnetos e vários tataranetos. Com um século de existência, esbanjando saúde e vitalidade, viajava por esse Brasil, disseminando conhecimentos do bem viver.
Todo mundo se perguntava de onde é que esse homem baixinho, pernas e braços musculosos, cabelos grisalhos, olhos de um brilho extraordinário, tirava tanta força e energia?
- Eu cheguei aos 100 anos, porque fui educado como um guarani – conta. Aprendeu a cuidar do corpo e do espírito com igual atenção. Acordava com os galos, fazia suas orações e, já adulto, aconselhava os mais jovens, ia à roça plantar milho, feijão, aipim, batata doce e hortaliças, base de sua alimentação, onde não entra nem sal, nem açúcar.
Ele tinha a certeza de que o segredo de sua longevidade residia no afeto familiar. “Ninguém é feliz sozinho” – dizia. Dessa forma, ao longo da vida, teceu os fios da felicidade cotidiana, no convívio com as pessoas queridas, no trabalho diário no qual realizava exercícios físicos e se alimentava de comida saudável.
O tcheramoi Wherá Tupã presidia os rituais na Casa de Reza – “a Opy, lugar de aprendizagem da sabedoria de Nhanderu sobre a natureza do mundo e das pessoas”. Lá batizava crianças, orientava e aconselhava jovens e cuidava da saúde de todos, com ajuda de Nhanderu, de quem recebia inspiração e com quem vivia em contato permanente:
- Doença? Não sei o que é isto. Médico fica longe de mim. Me trato com as plantas que cultivo na aldeia, seguindo a sabedoria dos meus avós.
Sua sabedoria ancestral entrou na universidade em 2015. Com sua ajuda, seus filhos Geraldo e Wanderlei Moreira realizaram pesquisa no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), intitulada “Calendário Cosmológico: os símbolos e as constelações na visão guarani”, do qual Wherá Tupã foi o principal “livro” consultado, constituindo-se no orientador de fato. Integrante da banca, pude acompanhar com ele e dona Rosa a defesa deste trabalho.
- Os Guarani para verem a terra, olham o céu. Com a leitura do céu, elaboram o calendário cosmológico chamado Apyka Miri, que conta o tempo, marca o clima, a chegada da chuva, a época de extrair o mel e de semear, o tempo da colheita e de fazer artesanato, a duração das marés, a caça e a pesca, tudo em sintonia com Nhanderu Tenondé - o Pai Criador e com Nhamandu - o Pai Sol. A astronomia e a religião dão suporte para a agricultura guarani, que tem o pé na terra e o olho no céu.
O sábio Wherá Tupã aprendeu botânica com seu pai, João Sabino Kauã, de quem recebeu inúmeras sementes. O plantio e a colheita são frutos da observação sistemática, mas constituem também expressões máximas da religiosidade, do trabalho coletivo e da partilha. Ele conhece as plantas, não apenas da mata atlântica.
Na ilha do Marajó, tive o privilégio de entrar na floresta com ele e com a pajé Zeneida Lima, quando assisti uma aula de botânica. Ali, onde só víamos “árvores genéricas”, os dois sábios nomeavam cada espécie. Naquela ocasião, cada planta foi identificada, cheirada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada, classificada, analisada, com suas propriedades medicinais e alimentícias reconhecidas e enaltecidas.
Debaixo da copa de uma árvore, por onde penetrava o sol, a três metros de distância de onde eu me encontrava ao lado do amazonense Amaro Júnior, que filmava com uma câmara japonesa, Wherá Tupã sentenciou:
- As árvores falam, a gente é que desaprendeu e não sabe mais escutar o que elas dizem.
Disfarço sempre minha emoção, buscando refúgio no humor.
- Não estou escutando – brinquei.
Wherá pediu:
- Você não escuta porque está longe. Venha aqui pra perto.
Fui:
- Continuo sem nada ouvir. O que a árvore está dizendo?
- Você não ouve porque só escuta com os ouvidos, não escuta com os olhos. Veja as marcas das unhas do animal, que são as letras de Nhanderu escritas no céu e na natureza. Precisa aprender a ler essas letras.
Vi as marcas das unhas. Era, se a memória não me trai, um jatobazeiro, que informava a passagem por seu tronco de um roedor, cujo nome não lembro, meia hora antes – segundo o que ouviu Wherá. Mas não consegui ler o relógio da árvore. Wherá mostrou a casca ferida com a resina ainda fresca:
- Ainda está escorrendo – disse. Faz pouco tempo que passou.
As árvores falam e os guaranis escutam, porque para eles toda a natureza faz parte da sociedade, não está separada da cultura. As plantas, os animais, os acidentes geográficos, os rios, as montanhas, os fenômenos meteorológicos são dotados de humanidade e de consciência.
- Essa terra que pisamos é o nosso irmão, ela tem vida, é uma pessoa, tem alma.
Esse é o arandu porã, o bom conhecimento que os Guarani trazem para a academia e que começa a fazer parte das bibliotecas em monografias, dissertações, teses e livros escritos por mestres e doutores, indígenas ou não. Alguns foram ouvir Wherá Tupã lá na sua aldeia.
É o caso da tese “Música e xamanismo guarani” defendida na USP pela doutora Deise Montardo, professora da Universidade Federal do Amazonas e do livro “O caminhar sob a luz, território Mbyá à beira do oceano” de Maria Inês Ladeira, assim como as pesquisas de Ana Lucia Notzold, Flávia Melo, Aguirre Neira, Ismênia Vieira, Helena Alpini e tantas outras da UFSC.
Esses trabalhos criaram uma ponte entre os Guarani e a Universidade, confirmando a conclusão de Darell Posey:
“Se o conhecimento indígena for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos...”
A botânica é um campo que os Guarani dominam bem, especialmente as plantas medicinais. Wherá Tupã era procurado por gente de longe, até mesmo não-indígenas. O tratamento que ele dava foi descrito por Diogo Oliveira do Laboratório de Etnobotânica do Centro de Ciências Biológicas da UFSC.
Na aldeia de Biguaçu existe uma vereda – a trilha da escola, chamada Tape Poty, que significa caminho florido – onde foram colocadas placas com os nomes de plantas medicinais identificadas por Wherá Tupã.
- Vocês pisam nos remédios e não sabem - ele costumava dizer.
Esses saberes foram durante séculos pisoteados e discriminados como fruto de culturas “primitivas” e de “obstáculo ao progresso” como sinaliza Jorge Terena:
“Eles veem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história”.
Hoje, a troca de conhecimentos começa a ser efetiva graças à presença de indígenas na academia, o que não constitui apenas uma política de inclusão social, mas a possibilidade de construção de outro modelo de universidade, capaz de repensar sua metodologia de produção e circulação de saberes e de conviver com taxonomias cujos critérios lógicos são outros.
Não se trata, portanto, de somente indagar o que a instituição pode fazer por seus alunos indígenas, mas de saber o que eles podem fazer pela universidade, que ganha com a presença de representantes de outras culturas e de outras línguas, portadores de saberes e de formas diferentes de produzi-los.
A ciência aspira a universalidade, mas só é possível obter um conhecimento universal se houver diálogo entre saberes particulares. Esse diálogo é estimulado com a presença de indígenas nas salas de aula, nos laboratórios e nos corredores das universidades.
Alcindo Whera Tupã conversava com crianças e jovens. Quem sabe essa nova geração aprende a falar com as árvores, cuidando delas, não deixando que sejam assassinadas pelo fogo e pela ganância. Podem assim se encantar com o sagrado e eliminar o pesadelo de ter de pedir exame de DNA do Papá Tenondé.
P.S. Parte desse texto é reprodução de várias crônicas do Taquiprati, cujos links vão abaixo. Ver também o filme Kara’i Ha’egui Kunha Karai ‘Ete (Os verdadeiros líderes espirituais) do cineasta guarani Alberto Alvares, que conta a história de vida de Alcindo Moreira e de dona Rosa.
1. Nhe´ẽ Porã: a Palmatória e a Bíblia. 21 de abril de 2024
2. Nhamandu baixou na UFF. 11 de junho de 2017
3. Assim na terra como no céu guarani. 08 de fevereiro de 2015.
4. O pajé que fala com as árvores. 17 de abril de 2011.
5. Maria fecha a porta que teu pai morreu. 16 de janeiro de 2011.
6. Navegando pelo Marajó com pajés e capoeirista. 23 de setembro de 2007.
7 . Zeneida, a pajé do Marajó. 15 de julho de 2007.
8. Veja: os guarani e o uísque paraguaio. 08 de março de 2007.
9. Clodovil, o analfabeto: entre oralidade e escrita. 21 de janeiro de 2007.
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O adeus do pajé que falava com as árvores. Artigo de José Ribamar Bessa Freire - Instituto Humanitas Unisinos - IHU