04 Setembro 2024
O presidente francês impede a coalizão progressista da Nova Frente Popular de formar um governo para evitar que revogue a reforma das pensões e aumente o salário mínimo em 15%.
A reportagem é de Enric Bonet, publicada por El Salto, 01-09-2024.
O presidente francês, Emmanuel Macron, reforçou esta semana sua reputação de dirigente que exemplifica a deriva autoritária do neoliberalismo. Após o balanço grotesco de cinco anos atrás sobre a violência policial contra os coletes amarelos (um morto, mais de 2.500 manifestantes feridos, 29 que perderam um olho e cinco que tiveram uma mão arrancada) e a imposição, no ano passado, por decreto, de uma reforma impopular das pensões, o chefe de Estado francês violou agora uma das tradições da Quinta República: permitir que governe — ou ao menos que tente — a primeira força na Assembleia Nacional.
Macron descartou, no início da semana, a designação de Lucie Castets como primeira-ministra, a candidata proposta pela Nova Frente Popular (NFP). Apesar de essa coalizão unificada da esquerda ter vencido por uma margem mínima as eleições legislativas de 7 de julho (com 193 deputados, longe dos 289 necessários para a maioria absoluta), sua candidata não terá a possibilidade de enfrentar o plenário. O presidente a excluiu sob o argumento de "estabilidade institucional" e justificou sua decisão com o pretexto de que Castets enfrentaria "imediatamente" uma moção de censura das demais formações.
Macron tem atuado desde 7 de julho para garantir um governo alinhado com seus interesses, uma opção continuísta que contrasta com o resultado das urnas.
Esses argumentos refletem a vontade do mandatário de conferir uma aura constitucional à sua criticada decisão. O presidente "utiliza as noções constitucionais com fins políticos", denunciou Paul Cassia, um conhecido professor de Direito Constitucional, em declarações ao jornal L’Humanité. Mais do que o clássico papel de árbitro do chefe de Estado, Macron tem atuado desde 7 de julho para garantir um governo alinhado com seus interesses. Uma opção continuísta que contrasta com o resultado das urnas. O macronismo ficou em terceiro lugar no primeiro turno, com 22% dos votos, e perdeu mais de 80 deputados no segundo, obtendo apenas 166 cadeiras (de um total de 577).
Após cerca de 50 dias com um governo em funções, o presidente nomeará nos próximos dias o primeiro-ministro. Os nomes mais cotados na imprensa francesa são os de veteranos dirigentes da direita dos Republicanos (LR) (Xavier Bertrand, Michel Barnier, Valérie Pécresse...) ou da órbita do Partido Socialista (PS), como o ex-primeiro-ministro de 2017 Bernard Cazeneuve, o histórico deputado Didier Migaud ou Karim Bouamrane, prefeito da cidade da “banlieue” parisiense onde se encontra a Vila Olímpica.
Qualquer um deles formará um Executivo com ministros de direita, centro e centro-esquerda. Na verdade, trata-se de uma “grande coalizão” que parece um calco ideológico do que Macron tem encarnado desde 2017. Um de seus assessores no Eliseu batizou essa fórmula como “um perfume de coabitação”, ou seja, como uma sensação de mudança na linha política.
Apesar do pretexto de “estabilidade institucional” — a mesma “estabilidade” esquecida com a convocação antecipada das eleições —, o principal objetivo dessa mudança lampedusiana é preservar as reformas neoliberais aplicadas nos últimos sete anos. Além disso, elaborar os próximos orçamentos sob o signo da austeridade. “A urgência do país não é destruir o que fizemos, mas construir e avançar”, defendeu Macron em uma entrevista televisiva no fim de julho.
Ainda mais claro, ele se mostrou recentemente em pequeno comitê justificando sua rejeição a um Executivo liderado por Castets ou outro dirigente do Frente Popular. “Se a nomear (...), revogarão a reforma das pensões e aumentarão o salário mínimo para 1.600 euros líquidos, os mercados financeiros entrarão em pânico e a França se afundará”, afirmou, segundo a revista L’Express. A Reagrupação Nacional (RN) de Marine Le Pen compartilha essa visão caricaturesca do programa do Frente Popular, que descreveu como “um perigo para os franceses”.
O cordão sanitário à extrema direita “uniu a esquerda e o centro no segundo turno das eleições. Mas essa lógica coexiste com outra: os interesses econômicos que unem o centro com a extrema direita”.
Nas últimas semanas, surgiu um eixo na política francesa que se opõe frontalmente à emenda ao neoliberalismo proposta pelo Frente Popular. O cordão sanitário à extrema direita “uniu a esquerda e o centro no segundo turno das eleições. Mas essa lógica coexiste com outra: os interesses econômicos que unem o centro com a extrema direita”, explica ao El Salto o cientista político Christophe Bouillaud. “Macron acredita em suas reformas neoliberais e não quer de forma alguma que desfaçam o que lhe custou tanto para aprovar”, acrescenta este professor da Sciences Po Grenoble.
O Medef, equivalente francês da CEOE, celebrou no início da semana sua escola de verão em Paris. Nesse evento, o presidente da patronal, Patrick Martin, disse que o programa do Frente Popular seria “insuportável” para o país. Insistiu que as eleições não haviam “sancionado a política econômica do governo atual”, apesar de que o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos (com 43 anos de contribuição para receber uma pensão completa), a falta de investimentos nos serviços públicos ou os cortes fiscais para os mais ricos alimentam o descontentamento com o macronismo.
Uma das primeiras tarefas do novo governo consistirá na elaboração do orçamento do próximo ano. Apesar de estar em funções, o primeiro-ministro, Gabriel Attal, já começou a elaborá-lo. Em concreto, ele pediu aos diferentes ministérios que congelassem suas dotações, o que representa, por si só, um corte considerando a inflação. Isso se somará ao corte de 10 bilhões de euros aplicado nas contas deste ano.
“Para aprovar o orçamento do próximo ano marcado pela austeridade — a França está sob a observação da Comissão Europeia por seu déficit público de 5,5% em 2023 —, o macronismo precisará provavelmente da abstenção da RN”, afirma Bouillaud, que considera pouco provável que as formações progressistas, incluindo o Partido Socialista (PS), votem um orçamento desse tipo. “Transformou a extrema direita no fazedor de reis”, lamenta o jornalista Pablo Pillaud-Vivien, chefe de redação da revista Regards.
Embora o macronismo defenda oficialmente uma “grande coalizão” com todos os partidos, exceto RN e a França Insubmissa (a principal força do Frente Popular), é pouco provável que os verdes e os comunistas se juntem a essa operação, que deixaria a esquerda em minoria no seio do Executivo. Todas as formações do Frente Popular, incluindo o PS, se ausentaram da segunda rodada de consulta, após o veto de Macron a Castets. No momento, a aliança progressista mantém a resistência ao presidente e permanece unida.
“Agora mesmo, o objetivo de Macron não é dividir o NFP, mas o Partido Socialista, onde há uma linha de fratura interna, principalmente em torno da conveniência de pactuar com a França Insubmissa (afinidade com Sumar ou Podemos)”, explica Pillaud-Vivien. A direção dos socialistas vê na aparição na imprensa de dirigentes de centro-esquerda — alguns deles, como Cazeneuve, que abandonaram o partido há alguns anos — como uma tentativa dos macronistas de alimentar as divisões em suas fileiras.
No entanto, o muito hipotético apoio do PS também não garantiria a estabilidade à “grande coalizão” que o chefe de Estado almeja. A soma de todos os deputados macronistas, da direita republicana e dos socialistas representa 269 assentos, ou seja, abaixo do limiar da maioria absoluta (289). Na França, o voto de investidura não é obrigatório. O futuro do Executivo dependerá das moções de censura que serão apresentadas na Câmara dos Deputados. Provavelmente, a extrema direita moldará sua posição de acordo com seus interesses, consciente de que o atual emaranhado a beneficia diante de um eventual retorno às urnas a partir do verão do próximo ano.
Diante do “golpe de força” do chefe de Estado, organizações juvenis e estudantis próximas à França Insubmissa organizaram as primeiras protestas para o 7 de setembro. A CGT, segundo sindicato do país, prepara seu retorno às ruas para 1º de outubro. Ao contrário do que ocorreu na campanha legislativa, em que a mobilização de sindicatos, associações e meios comprometidos foi crucial para frear a extrema direita e possibilitar a vitória inesperada do NFP, a sociedade civil está agora menos mobilizada após um verão marcado pelo sedativo social dos Jogos Olímpicos de Paris.
“Consignas muito políticas, como ‘Lucie Castets em Matignon’, não parecem as mais propensas a mobilizar a maioria dos franceses, que costumam se manifestar por questões mais sociais, como o sistema de pensões”, reconhece Pillaud-Vivien. O chefe de redação da Regards adverte, no entanto, que “o povo francês se irrita rapidamente”. Excedendo seu papel de árbitro, o presidente corre o risco de transferir a “instabilidade” de uma Assembleia Nacional muito fragmentada para as ruas. E fomentar um enésimo episódio de erupção social em sua presidência conturbada.
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O golpe lampedusiano de Macron: afasta a esquerda do governo para conservar suas reformas neoliberais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU