O dia em que Haddad montou num jabuti. Artigo de Antonio Martins

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

16 Agosto 2024

"É possível que a equipe de Haddad tenha visto em Alcolumbre um caminho para driblar o próprio Lula. Talvez o grupo não contasse com a repúdio-relâmpago com o qual se deparou o jabuti. Já no final da manhã de 14/7, matérias nos jornais diários reportaram a existência do réptil", escreve Antonio Martins, editor do Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 15-08-2024.

Eis o artigo.

SUS esteve a um passo de perder, nesta quarta-feira (14/4), boa parte de seus já minguados recursos. Manobra, antidemocrática e furtiva, foi comandada pelo ministério da Fazenda – e deixou rastro. É preciso expô-la, porque ela pode se repetir.

No sistema político brasileiro, fisiológico e disfuncional, uma das figuras mais típicas é o jabuti. Seu palco é o Congresso. Consiste em introduzir em surdina, numa proposição que já tramita em fase avançada, um dispositivo novo – muitas vezes sem relação alguma com a matéria em debate. Leva este nome em referência a um dito popular: “Jabuti não sobe em árvore. Se está lá, alguém o colocou”. Por sua própria natureza, presta-se a fraudar a democracia (já que frustra o debate público) e a promover interesses escusos (pois os jabutis podem resultar em ganhos multimilionários, para quem os patrocina).

Nesta quarta-feira (14/4), um jabuti especialmente pernicioso e sorrateiro percorreu os salões atapetados do Senado. Caso cruzasse a linha de chegada, e passasse pela votação, abriria caminho para o sucateamento do SUS e mais um avanço da medicina de negócios. Suas pegadas sugerem que ele partiu da Esplanada dos Ministérios – mais precisamente dos altos escalões da Fazenda, cujos integrantes não escondem as relações especiais que mantêm com o baronato financeiro.

Estava em pauta o Projeto de Lei Complementar (PLP) 121/2024, que estabelece novas bases para o pagamento da dívida dos estados e municípios junto à União. Proposto há cerca de 40 dias, pelo próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ele nada tinha a ver, em sua versão original, com os recursos destinados pelo Orçamento à Saúde. Seu objetivo é oferecer juros mais baixos aos entes federativos endividados, obrigando-os, em contrapartida, a oferecer garantias mais sólidas. Uma das justificativas é a tragédia ambiental e social do Rio Grande do Sul, que torna mais penoso o pagamento da dívida do estado. O tema, aliás, quase não desperta controvérsias, como mostrou o placar final: 70 x 2, pela aprovação (um dos votos contrários foi o do general Hamilton Mourão).

Aproveitando-se do consenso, o jabuti insinuou-se à última hora. Foi recepcionado pelo senador David Alcolumbre (União-AP) que, candidato a presidir a casa a partir de 2025, busca compor-se tanto com bolsonaristas quanto com governistas. Na manhã de 14/8, poucas horas antes do projeto ir a voto, Alcolumbre entuchou na proposta, sem alarde, um contrabando totalmente estranho a ela. O objetivo era alterar o conceito de “Receita Corrente Líquida” (RCL), adotado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000.

O dispositivo feria o SUS – o que, é claro, não foi exposto pelo relator. Para tentar reduzir as desigualdades brasileiras, a Constituição de 1988 determinou que União, estados e municípios devem destinar percentuais mínimos de seus orçamentos para a Saúde e Educação. Na Saúde, o “piso” equivale, hoje, a 15% da Receita Corrente Líquida da União. O apêndice de Alcolumbre, espertamente, evitava alterar o índice. O senador não queria celeuma. Mas sua proposta mudava a base do cálculo. Expurgava da RCL da União, por exemplo, os dividendos bilionários pagos por Petrobras, Banco do Brasil, BNDES e outras estatais; e as contrapartidas transferidas pelas empresas que estão assumindo, por meio de “Parcerias Público-Privadas”, a gestão de rodovias, ferrovias, aeroportos, portos, serviços de abastecimento de água e saneamento, escolas e até presídios. Num cálculo rápido, Francisco Funcia, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), estimou o desastre anual provocado pelo jabuti: R$ 26 bilhões ao ano, ou 11,92% das verbas disponíveis ao SUS, em números de 2024.

O senador Alcolumbre teria fabricado, ele próprio, o bicho? Desde a manhã da quarta-feira, o parlamentar fez questão de sustentar que não. Na exposição de motivos que apresentou em anexo a sua proposta, Alcolumbre escreveu: a alteração no conceito de Recente Corrente Líquida foi feita “a pedido do Ministério da Fazenda”. Os repórteres do Valor que acompanharam o episódio corroboram a versão. Segundo escreveram em 14/8, “ontem [na terça-feira, 13/8], o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, esteve com Alcolumbre para auxiliar nos últimos ajustes do texto”.

Se prevalecesse, o jabuti teria sido providencial à Fazenda. Há pelo menos um ano, os principais assessores do ministro Fernando Haddad têm lançado balões de ensaio para testar a repercussão, entre a sociedade, da ideia de reduzir os recursos públicos para Saúde e Educação. Dentre estes tecnocratas, destaca-se o próprio Rogério Ceron. Desde abril de 2023 ele repete a proposta – alegando ser a única maneira de cumprir o “arcabouço fiscal” perseguido pelo Ministério. A partir de junho, a ideia do corte foi assumida explicitamente pelo ministro. Porém, as tentativas têm encontrado uma barreira: a do presidente Lula, que repetiu em seguidas ocasiões: “Saúde e Educação são investimentos no futuro: não podem ser tratados como ‘gastos’”.

É possível que a equipe de Haddad tenha visto em Alcolumbre um caminho para driblar o próprio Lula. Talvez o grupo não contasse com a repúdio-relâmpago com o qual se deparou o jabuti. Já no final da manhã de 14/7, matérias nos jornais diários reportaram a existência do réptil. A notícia espalhou-se nas redes sociais, por iniciativa de gente como o economista David Deccache, assessor da liderança do PSOL na Câmara e crítico contumaz do “arcabouço fiscal” (aqui, seu post a respeito). No início da noite, veio a reversão. O ministro Rui Costa, da Casa Civil, pediu a Alcolumbre que abandonasse o jabuti. Desamparado, o quelônio sucumbiu.

Em 21 de junho último, a 355ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu nota oficial em que reivindica a manutenção do piso constitucional de 15% da RCL da União para a Saúde pública. O documento destaca: “o valor destinado ao SUS já é baixo (R$ 4,00 per capita por dia, dos quais cerca de R$ 1,60/R$ 1,70 são de gasto público federal)”. Um texto de Outras Palavras acrescenta “o percentual do PIB brasileiro investido pelo Estado em Saúde é raquítico: 4%, contra 11,1% na Alemanha, 10,4% na França, 10,3% no Reino Unido, 7,1% na Colômbia e 5,9% no Chile”.

Nos doze meses encerrados em março de 2024, este mesmo Estado reservou aos rentistas (essencialmente, o 0,1% mais rico da população), na forma de juros, R$ 747 bilhões. Equivalem a mais que o triplo dos valores destinados, no mesmo período, ao SUS – que cuida de 203 milhões de brasileiros, nos 5565 municípios do país.

Leia mais