29 Junho 2024
"Entre os dez mil reunidos para ouvir Goebbels estão personalidades políticas de destaque, atores, soldados feridos, operários das fábricas de tanques da capital, professores, arquitetos, médicos e funcionários, o que Goebbels define como um 'Fragmento representativo do povo alemão, tanto da pátria como do front.' Para a ocasião, cada detalhe é estudado com a máxima atenção: atrás do palco destaca-se uma grande bandeira com uma suástica e uma faixa com a escrita 'Guerra total – guerra mais curta', que remete ao cerne do discurso de Goebbels", escreve Giovanni Cerro, antropólogo e professor da Escola Internacional de Estudos Superiores Ciências Culturais da Fondazione Collegio San Carlo de Modena, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 25-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dezembro de 1942. No auge da Segunda Guerra Mundial, para rebater às acusações feitas pelos jornais ingleses e estadunidenses sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus, o regime hitleriano decide organizar uma vasta campanha de imprensa. É orquestrada pelo ministro do Reich para a educação do povo e a propaganda, bem como Gauleiter de Berlim, Joseph Goebbels.
A ordem dos jornalistas é destacar os crimes perpetrados pelos Aliados no Oriente Médio, Índia e África, recorrendo abertamente à mentira. Trata-se de amplificar os fatos, onde houver, e criá-los ad hoc, quando não existirem: “Todos os dias será necessário inventar sistematicamente algo novo”, afirma Goebbels. Com razão, em As Origens do Totalitarismo (1951), Hannah Arendt observava que o súdito ideal do nazismo não era tanto o nazista convicto, integralmente devotado ao Führer, mas aquele para quem não havia mais "a distinção entre realidade e ficção, entre verdadeiro e falso." E é precisamente sobre esses aspectos que Goebbels pretende insistir.
Apesar do empenho, porém, a campanha não tem o sucesso desejado. Mesmo assim, o ministro da propaganda não desiste. Dois meses depois, em 18 de fevereiro de 1943, às cinco da tarde, toma a palavra no Palácio dos Esportes de Berlim para proferir um discurso que é um exemplo da retórica propagandística do nazismo e da sua capacidade de sugestão das massas. O seu discurso — que terá a duração de cerca de duas horas e que será transmitido pela rádio à noite, para que tenha uma ampla difusão — pode agora ser lido no livro do historiador Peter Longerich, Goebbels e la “guerra totale”. Il discorso al Palazzo dello sport del 1943 (Goebbels e a “guerra total". O discurso no Palácio dos Esportes em 1943, em tradução livre, Turim, Einaudi, 2024, 193 páginas, 23 euros, tradução de Elisa Leonzio). No livro, a transcrição do discurso vem acompanhada de um comentário do próprio Longerich, autor de uma biografia bem documentada de Goebbels, e de uma introdução que ajuda a contextualizá-lo no quadro da Segunda Guerra Mundial.
Entre os dez mil reunidos para ouvir Goebbels estão personalidades políticas de destaque, atores, soldados feridos, operários das fábricas de tanques da capital, professores, arquitetos, médicos e funcionários, o que Goebbels define como um “fragmento representativo do povo alemão, tanto da pátria como do front." Para a ocasião, cada detalhe é estudado com a máxima atenção: atrás do palco destaca-se uma grande bandeira com uma suástica e uma faixa com a escrita “Guerra total – guerra mais curta”, que remete ao cerne do discurso de Goebbels. Os tempos são particularmente difíceis para o regime hitleriano: Stalingrado caiu há poucos dias, depois de um cerco muito pesado que durou seis meses; a frente africana está quase completamente perdida. “O Ocidente está em perigo", alerta diversas vezes Goebbels. Os únicos em condições de reverter a rota são os alemães.
Não apenas o exército, mas o povo, que sem distinção deve abandonar os confortos do tempo de paz para se mobilizar em vista da vitória.
O discurso termina com uma série de dez perguntas, a maioria das quais destinadas a inverter as acusações feitas pelos ingleses contra os alemães. Cada uma delas começa com um estratagema retórico, do tipo “Vocês acreditam?”, “Vocês estão decididos?”, “Vocês estão prontos?”. E a multidão? Não fica passiva e inerte diante de Goebbels, mas tem um papel decisivo nessa encenação: protesta contra os ingleses, xinga furiosamente os judeus (“Enforquem!”, repete várias vezes), assobia indignada contra os preguiçosos e "parasitas", que seriam um obstáculo ao bom andamento da guerra, amaldiçoa os ricos (“Trastes!” assim se dirige a eles), invoca Hitler como o salvador da pátria, aplaude calorosamente as declarações de Goebbels sobre a mobilização total, ri de suas (péssimas) piadas.
Na tentativa de persuadir as pessoas que acorreram ao Palácio dos Esportes, Goebbels também recorre ao uso do passado para fins ideológicos: lembra que Frederico II da Prússia, após a derrota de Kunersdorf de 1759, durante a Guerra dos Sete Anos, era dado como acabado. Apesar disso, permaneceu impassível diante da alternância de sucessos e fracassos do conflito e no final conseguiu prevalecer, triunfando. Difícil que ao ler essas palavras não voltem à mente aqueles que mesmo em tempos mais recentes para justificar e legitimar as suas guerras de agressão e as suas ações de repressão do dissenso, usam instrumentalmente o passado, exaltando esta ou aquela figura e condenando outras.
Nos dias seguintes, Goebbels disse estar particularmente satisfeito com a sua intervenção, a ponto de anotar em seu diário: “A assembleia, graças a mim, entra num estado que se assemelha a uma mobilização intelectual. A assembleia termina no tumulto de uma atmosfera frenética." É como se se assiste a cenas do Gabinete do Doutor Caligari (1920), em que a sugestão e a hipnose são meios para realizar os assassinatos. Goebbels também se compraz pelo juízo de Hitler, que teria definido o seu discurso de "uma obra-prima psicológica e de propaganda de primeira classe". Os jornais ingleses e estadunidenses conseguem facilmente desmascarar o castelo de falsidades por ele construído.
Também os relatos sobre as reações da população registram os receios das pessoas comuns diante do cenário catastrófico descrito por Goebbels, assim como as críticas da alta sociedade aos tons de "luta de classes" adotados por ele e pela sua intenção descaradamente propagandística, visando enganar os ouvintes e ao mesmo tempo fortalecer a sua posição aos olhos de Hitler.
Entre os opositores ao regime há quem note como Goebbels recorra a um estratagema típico nazista, que consiste em “criar medo” contra os inimigos, e aqueles que estão convencidos de que “no futuro será difícil entender como em um período tão sério um representante do governo tenha podido trabalhar com truques tão tolos e como o povo tenha podido tolerar algo desse tipo com uma paciência de cordeiro."
Publicar o discurso de Goebbels nos nossos tempos não é apenas uma meritória obra histórica, mas quase se torna um gesto de empenho civil. Como foi ressaltado por numerosos estudos políticos e sociólogos, de fato, há alguns anos assistimos a uma profunda transformação da esfera pública, que agora se baseia no uso massivo das mídias digitais e no recurso à inteligência artificial. A multidão, portanto, não é mais a mesma que se reunia no Palácio dos Esportes de Berlim para assistir à performance de Goebbels, mas aquela dispersa na web, empenhada diariamente na atualização de seus próprios perfis nas redes sociais e em discussões, quase sempre grosseiras e triviais, conduzidas na rede. A esfera pública passou das praças reais para as praças digitais, dominadas por bolhas e câmaras de eco, por nichos onde nos fortalecemos nas nossas convicções e onde se afiam as armas (quase nunca em sentido literal, felizmente) a opor àqueles que não pensam da mesma maneira.
Nesse contexto, fica evidente como a política ainda hoje utiliza dispositivos tecnológicos avançados para cerrar as fileiras dos seus simpatizantes e, ao mesmo tempo para alargar a sua base de referência. O estratagema retórico preferido pelos novos manipuladores de multidões – não mais concentradas e reunidas num local físico, mas isoladas e organizadas na web — consiste na corrida à enunciação da opinião mais radical, mesmo que esta seja totalmente insensata, contrária à verdade e à realidade, paradoxal e ridícula. Não se alavanca na racionalidade de quem lê ou ouve, nem nas suas capacidades de análise e de discernimento, mas exclusivamente nas suas paixões, nos seus instintos. Afinal, se não existem critérios capazes de garantir a fidedignidade das informações, tudo assume o mesmo valor.
A única coisa que realmente importa é que aquela opinião consiga obter o maior número de consensos (expressos não nos aplausos e nas ovações, mas nas “curtidas” e nas reações instantâneas) no menor tempo possível, que consiga atrair a atenção e ser comentada. Amanhã será esquecida, mas, nesse interim terá causado uma polêmica não desprovida de consequências reais para os sujeitos envolvidos. Marc Bloch já tinha defendido, nas suas Reflexões de um historiador sobre as falsas notícias da guerra (1921), que nas fases da história em que as emoções prevalecem, como no caso das guerras, a dúvida e o sentido crítico falham. Justamente durante as guerras, quando a sociedade está muito fragmentada e os laços rarefeitos, as notícias falsas têm por isso maior probabilidade de serem inventadas, de circular e serem acreditadas. Talvez hoje tenhamos esquecido disso.