Num livro inédito em português, filósofo enxerga impotência, humilhação e raiva por trás do fascismo contemporâneo. Mas vê uma brecha: um mundo de alta técnica permite pensar o fim do trabalho penoso, da alienação e da desigualdade.
O artigo é de Claudio Alvarez Terán, historiador argentino e licenciado em comunicação, é professor na empresa FODEHUM e na Escuela Popular Latinoamérica, publicado por Outras Palavras, 14-06-2024. A tradução é de Glauco Faria.
The Second Coming (A Segunda Vinda) é um livro do filósofo e ativista italiano Franco Bifo Berardi, com o subtítulo Neorreacionários, guerra civil global e o dia após o apocalipse, publicado em seu idioma original em 2019 e em espanhol em 2022. Nesse livro, Bifo Berardi descreve o surgimento de um movimento neorreacionário no mundo que degrada a democracia, elimina o pensamento racional e leva ao autoritarismo. Um retorno ao fascismo que o leva a redefinir o conceito de comunismo como uma possível saída do labirinto.
Em 1919, o poeta irlandês William Butler Yeats escreveu The Second Coming, um poema sobre o colapso da ordem social e a decadência da civilização após a Primeira Guerra Mundial. Um prenúncio da segunda vinda de Cristo. Mas Yeats estava errado. Na década seguinte, Cristo não retornou. Hitler chegou. Tudo desmorona. O centro cede. A anarquia toma conta do mundo. A maré sangrenta é liberada e o ritual da inocência é inundado por toda parte. Os melhores não têm convicção. E os piores estão transbordando de intensidade apaixonada.
Bifo Berardi retoma essa ideia, mas com uma perspectiva diferente. Ele diz que a imaginação coletiva de hoje está sendo impregnada pelo apocalipse. Por essa razão, ele acredita que é necessário fazer as mesmas perguntas que Yeats fez. Podemos ainda viver juntos como seres humanos? A vida, a paz e a amizade ainda são possíveis? Ainda é possível uma sociedade igualitária que nos permita viver em paz?
Na década de 1960, o clamor era pelo socialismo ou pela barbárie. Mas não foi possível consolidar o socialismo e a barbárie prevaleceu. E hoje ela é dominante em toda parte. Quando sentimos que vivemos em um contexto caótico, nossas mentes são incapazes de processar emocionalmente e decidir racionalmente sobre eventos cuja velocidade se intensifica. O Iluminismo moderno entendeu que era possível reduzir o caos a uma ordem racional. Mas hoje qualquer tentativa de governar o caos parece fadada ao fracasso.
O processo infonervoso, como Berardi chama a sobrecarga de informações da tecnologia digital, escapou do alcance de nossa consciência. O caos que predomina é a expressão do excesso de densidade da infosfera sobre a psicosfera. Nossa consciência está saturada de informações. O que fazer em meio ao caos?
Deleuze e Guattari disseram que não se pode combater o caos sem afinidade com o inimigo. Quando o caos toma conta do comportamento social, não devemos ter medo dele e nem tentar submetê-lo a alguma ordem. Porque não é assim que funciona. O caos é sempre mais forte do que a ordem. Portanto, o melhor que podemos fazer é nos tornarmos amigos do caos.
Bifo Berardi argumenta que não é missão dos filósofos transformar o mundo. Porque o mundo muda o tempo todo sem os filósofos. A tarefa dos filósofos é interpretar o mundo, capturar sua tendência, decifrar as possibilidades. A interpretação dos filósofos é uma condição para desatar o nó. E o nó é o capitalismo. O colapso da ilusão neoliberal em nosso século abriu caminho para o retorno da política. Mas as consequências dessa ilusão frustrada se entrincheiraram nas finanças, sobrevivendo à desilusão.
A maioria das pessoas percebeu que a ditadura das finanças desativou a capacidade de resposta das democracias ocidentais e empurrou uma grande parte da população para a miséria e o desespero. Mas as finanças não afrouxam seu controle. O resultado é a agressão, a brutalidade, o racismo e a guerra. E o apagão da sensibilidade é um de seus efeitos.
Ao mesmo tempo, houve um apagão da razão. A razão não é mais a mestra do nosso destino. Nesta última década, a idiotice está se espalhando pelo mundo como uma rebelião contra a racionalidade. Como diz o filósofo americano Crispin Starwell, é dolorosamente evidente que superestimamos a inteligência como uma força capaz de mudar o mundo. E é a idiotice que domina.
Reprodução da capa de The Second Coming (Foto: Divulgação | GoodPress)
Em 1968, uma força explosiva irrompeu no Ocidente que daria origem ao primeiro movimento global da história. Foi a primeira manifestação de autoconsciência, do que Berardi chamaria de trabalho cognitivo. Nesse caso, centenas de milhares de estudantes saíram às ruas na França, nos Estados Unidos, na Argentina, na Tchecoslováquia e no México. Mas, 50 anos depois, os novos estudantes estão andando sozinhos, olhando para a tela do smartphone. Dá para sentir a melancolia deles, dá para sentir a agressividade latente da sua depressão. A mesma agressividade que pode se tornar visível sob a bandeira do fascismo. Não do velho fascismo, mas de um novo fascismo, que resulta da implosão do desejo e da raiva depressiva da impotência, da tentativa de manter o pânico sob controle.
Como explicar essa mutação do fermento social dos anos 60 para a depressão atual? Berardi diz que essa mutação não pode ser explicada apenas em termos políticos, deve ser explicada em termos evolutivos. Em vez de nos concentrarmos em apoios ou aversões políticas, precisamos nos concentrar na relação entre a infosfera e a psicosfera, ou, em outras palavras, entre o conhecimento e a consciência. Poderíamos pensar em 1968 como o momento de pico em que a tecnologia, o conhecimento e a consciência atingiram o ponto de máxima convergência. Naquela época, pensávamos que a consciência social assumiria o controle da mudança tecnológica e a orientaria para o bem comum. Mas aconteceu o contrário e, desde então, o poder da tecnologia se acelerou enquanto a consciência social diminuiu em proporção semelhante. Como consequência, a tecnologia tem cada vez mais poder sobre a vida social.
Os partidos de esquerda e os sindicatos viam a tecnologia como um perigo em vez de uma oportunidade. A liberação do trabalho que o progresso tecnológico poderia permitir era interpretada como desemprego e, com base nisso, a esquerda se opunha firmemente. Dos anos 60 até hoje, impulsionada pela virada neoliberal, a mente coletiva da humanidade passou por uma grande reconfiguração. A esfera de conhecimento proporcionada pelas novas tecnologias cresceu, mas simultaneamente o tempo para sua elaboração consciente diminuiu, e não assimilamos o conhecimento que não leva mais à emancipação.
A expansão da infosfera forçou a aceleração da reação mental a essa estimulação nervosa, mas a mente crítica é incapaz de funcionar em condições de saturação e aceleração nervosa. É por isso que os índices educacionais estão caindo, desencadeando um fantástico boom de ignorância cujos efeitos foram expostos na história política da era Trump. Em 2016 e 2017, testemunhamos a inauguração do reinado da inteligência artificial, mas, ao mesmo tempo, a humanidade entrou oficialmente na era da demência. A demência de um corpo social sem cérebro. O cérebro foi o alvo da máquina computacional e separado do corpo social, dando forma ao autômato. E a solução para os humanos é fazer amizade com os autômatos. No entanto, torna-se difícil estabelecer uma aliança com o autômato quando ele é programado sob o paradigma da acumulação de capital e, na verdade, deveríamos sabotar essa programação.
Até mesmo o mundo universitário está mudando com a virada neoliberal e reformulou as expectativas culturais e psicológicas dos alunos. Um jovem estudante de hoje é muito mais informado do que há 50 anos, mas está menos preparado para expressar opiniões críticas e escolher entre diferentes alternativas políticas e culturais. Por quê? Para Bifo Berardi, o motivo está nos critérios introduzidos pela reforma neoliberal do sistema educacional em todo o mundo.
Todos os países começaram a modificar seus sistemas de educação de acordo com as demandas do mercado, ao mesmo tempo em que o desfinanciamento maciço e os cortes orçamentários foram acompanhados pela precarização do ensino e pelo encolhimento de campos disciplinares não lucrativos, como no caso das ciências sociais e humanas. A forja neoliberal traduziu cada ato de conhecimento em termos econômicos, com a economia ocupando o lugar central no sistema de conhecimento e pesquisa. Cada ato relacionado ao mundo do conhecimento e da pesquisa foi atravessado pela questão de saber se é lucrativo ou se produz acumulação de capital.
No século XX, um século de crença na mitologia do futuro, o comunismo foi a única tentativa razoável de distribuir a riqueza global. Mas, infelizmente, a realização real do comunismo foi a continuação de um estilo político autoritário enraizado na cultura russa, implementando um modelo totalitário de controle da vida social. O horizonte do comunismo foi identificado com a experiência soviética e a queda dessa experiência com a ruína da União Soviética e seu bloco de poder significou, ao mesmo tempo, o fracasso do comunismo em todo o mundo.
Já sem a alternativa socialista, privados de um horizonte estratégico de emancipação social, os trabalhadores ocidentais acabaram seguindo agendas nacionalistas e até racistas para se opor à dinâmica global. Uma espiral de caos está se espalhando nos campos geopolítico e social. A noite cai nas Filipinas, na Índia, na Turquia, na Hungria, na Polônia e até mesmo nos Estados Unidos, onde prevalecem graus variados de autoritarismo, racismo e violência. Existe um caminho de volta à democracia?, pergunta Bifo Berardi. Sua resposta é não. Erradicar as condições sociais que levaram à epidemia de ódio não parece ser possível no futuro imediato.
O colapso da democracia foi preparado por 40 anos de competição neoliberal. O fascismo está de volta, diz Bifo. O macrofascismo se baseava na imitação de uma personalidade mitológica fundada no heroísmo e na unidade nacional. O microfascismo se concentrou na internalização do espírito autoritário expresso em um modelo de comportamento que dá a ilusão de manter tudo sob controle.
Mas hoje está surgindo um nanofascismo que não requer figura nem modelo, mas responde a um conjunto de instruções para a fabricação de um fascista como se fosse um kit de aplicação rápida que introduz o fascismo dentro de todos. O hipercapitalismo neoliberal, diz Berardi, finalmente levou à ressurreição do nazismo.
O nazismo pode ser visto hoje como um experimento que retorna renovado, com um aspecto diferente e uma magnitude ampliada. Karl Jaspers propôs em 1946 a distinção entre o nazismo como fato histórico e o nazismo como conceito político. O nazismo histórico é um fato único e irrepetível, embora a dinâmica social e psicológica seja muito semelhante à dinâmica contemporânea. Jaspers argumentou que a característica essencial do nazismo era o tecnototalitarismo e, portanto, parece coerente que um novo nazismo surgisse como consequência da implementação total da tecnologia, como está acontecendo em nosso século XXI.
Na mesma linha, o filósofo alemão Günther Anders apontou que a característica central do nazismo era a desumanidade automatizada que anunciava um Reich que estava por vir. Será que esse Reich está finalmente chegando? Se observarmos a violência financeira hoje, veremos que ela não precisa do trabalho para humilhar. Ela faz seu trabalho automaticamente. A perfeição matemática não é razoável nem pretende ser moral ou politicamente correta. Ela funciona, é operacional, executa sua tarefa, ponto final.
O filósofo húngaro Georgi Lukács definiu o nazismo como a destruição da razão. Essa destruição está acontecendo novamente? O nazismo parece estar de volta sob a forma refinada de iluminação sombria. A iluminação sombria é uma maneira eficaz de definir o escurecimento da mente social. É um conceito que define uma expressão neorreacionária que podemos observar no influente movimento Alt-Reich, a direita alternativa nos Estados Unidos e no Ocidente, e no duguinismo russo, a teoria do pensador Alexander Dugin. Mas eles diferem um do outro. A tendência neorreacionária do movimento Alt-Reich propõe o culto libertário da desregulamentação e aspira à dissolução do Estado, enquanto os neorreacionários russos veem o Estado soberano como uma condição para o estabelecimento de uma nova ordem eurasiana. Mas ambas as tendências coincidem em um ponto: substituir a democracia pela cultura identitária de pertencimento, seja por meio da influência do autoritarismo de Vladimir Putin ou da ascensão de Donald Trump.
O liberalismo democrático constituiu a estrutura ideológica hegemônica da modernidade tardia, mas, desde o final do século XX, a versão libertária do capitalismo ligada ao darwinismo social da cultura digital corroeu os fundamentos da democracia e visou dissolvê-la por completo. A nova vinda do fascismo, a segunda vinda, ocorre por meio de uma configuração diferente da historicamente conhecida. O fascismo histórico foi a expressão de um verdadeiro senso de pertencimento e comunidade, baseado na nação e no sangue. Mas o retorno pós-moderno do fascismo é baseado em uma antropologia diferente.
Hoje, a comunidade é apenas uma memória nostálgica de um pertencimento passado que não existe mais. Um lamento diante de uma vida social pulverizada pelo cenário pós-político atual. O novo modelo de fascismo não surge de uma euforia futurista juvenil, mas de um sentimento generalizado de depressão e de um desejo impotente de vingança. A onda de racismo e nacionalismo é alimentada por um sentimento de desespero, humilhação e raiva. Os trabalhadores ocidentais foram humilhados pela governança neoliberal, até mesmo por governos de esquerda encarregados de executar essas mesmas políticas. Eles acreditaram nas promessas do egoísmo neoliberal, adotaram a filosofia de vencer e depois se viram perdedores. Hoje é tarde demais para abraçar uma nova esperança. A única coisa que lhes resta é compartilhar seu ódio e seu desejo de vingança.
O neoliberalismo substituiu, no final do século XX, a força reguladora do Estado pelo tecnocontrole chamado governança. O poder foi incorporado no espaço extraestatal de uma infraestrutura gerada por algoritmos. O Leviatã não é mais o Estado moldado e dirigido pela vontade política de sujeitos conscientemente conflitantes, mas sim uma racionalidade matemática incorporada ao algoritmo financeiro e à estrutura técnica da governança. A vontade política humana perdeu sua eficácia.
No início do nosso século, Michael Hardt e Toni Negri escreveram o livro Império, um livro importante para a época, que construiu um modelo teórico para entender a globalização e a transformação tecnológica, marcada pelo surgimento de uma esfera imperial que marca o fim da soberania social e o desaparecimento de toda a dimensão externa do capitalismo na estrutura em formato de rede.
Império nos mostrou que a globalização não poderia ser subvertida a partir da esfera nacional. O Estado havia perdido sua eficácia, subjugado pelas garras do avanço da tecnologia digital e da governança financeira. No entanto, duas décadas depois de sua publicação, o cenário mudou e a globalização está sendo combatida pelas forças ressurgentes do nacionalismo. Isso não significa que a globalização tenha sido revertida ou que os Estados-nação tenham recuperado o poder. De fato, os Estados se tornaram um mero braço de execução da governança financeira. O Estado não desapareceu, foi reconfigurado como garantidor das transferências de riqueza para o setor bancário. De garantidor do bem-estar social, ele se tornou garantidor do lucro financeiro.
Atualmente, é difícil estabelecer o que entendemos como fato, o que é verdade e quem é responsável por estabelecer a diferença entre notícias falsas e verdadeiras. É difícil definir o conceito de verdade, pois ela não é um atributo de algo. É uma atribuição subjetiva, está relacionada à autoridade das fontes. E precisamente o que está enfraquecendo hoje é a confiabilidade das fontes, a confiabilidade da autoridade. No discurso público atual, há declarações que parecem ser factuais, quando na verdade apenas fingem ser baseadas em fatos.
Há quem diga que o nacionalismo é impulsionado pelo avanço das falsificações. Bifo Berardi acredita que esse não é o caso, mas que as razões para a virada para o nacionalismo ou o fascismo podem ser encontradas no fracasso da democracia, na governança neoliberal. A democracia se mostrou incapaz de deter a predação financeira, de modo que os trabalhadores pobres pararam de seguir o caminho democrático e tentaram o único caminho que restou, o fascismo. Para uma grande parte da população ocidental, a questão não é mais a verdade, mas a vingança. A nova arma discursiva do poder é a Shitstorm, uma tempestade de mentiras e agressões predominante nas redes.
Byung-chul Han, em seu livro Sociedade do Cansaço, identifica a Shitstorm como a mutação do discurso público em uma guerra em que o objetivo não é produzir significado, mas competir e vencer. Carl Schmitt disse que era o soberano que decidia sobre o Estado de exceção. Hoje em dia, pode-se dizer que é o soberano que controla as Shitstorms na rede. A base do poder não é mais o consenso ideológico ou a obediência dogmática como no século XX da modernidade, mas o poder se apoia no ruído do enxame digital que expressa descarga emocional, confusão mental e vingança pela humilhação.
A desinformação no discurso público não é nova. O que é novo é a intensidade e a velocidade da infoestimulação e a enorme quantidade de atenção que ela exige, a enorme quantidade de atenção que ela absorve, a saturação da atenção social bloqueia o espírito crítico. O desenvolvimento do espírito crítico não é um dado, é um produto da evolução intelectual. A faculdade cognitiva que chamamos de crítica é a capacidade do indivíduo de definir entre proposições verdadeiras e falsas ou entre situações boas e ruins. A capacidade crítica é um equilíbrio entre informação e ritmo de tempo. Acima de um certo nível, o fluxo de informações não é mais recebido como um conjunto de preposições, mas como um fluxo de estimulação nervosa capaz de gerar um ataque emocional ao cérebro.
A mente alfabética do século XX se envolveu com o fluxo lento de palavras organizadas sequencialmente. Portanto, o discurso público tendia a um espaço de avaliação e análise crítica. É por isso que o principal problema com o conteúdo da mídia hoje em dia não é a disseminação de notícias falsas, mas o colapso da mente crítica, a incapacidade da mente social de discernir criticamente, e é por isso que as pessoas votam em manipuladores que, por sua vez, exploram sua credibilidade.
Mas, além dessas teorizações, não é tão difícil distinguir entre o verdadeiro e o falso. A maioria das pessoas está ciente da verdade. Sabemos por experiência própria que o capitalismo explora nosso trabalho e que o sistema financeiro empobrece a sociedade. Não precisamos de alguém que denuncie a realidade da exploração. Precisamos de alguém que nos diga como nos libertar da exploração. Bifo Berardi pergunta: por que um número cada vez maior de ocidentais quer destruir a razão pela segunda vez?
A razão não é uma configuração natural do pensamento. Ela surgiu quando a irracionalidade foi expulsa da cena social, de modo que o raciocínio crítico se tornou a forma hegemônica, o que possibilitou o experimento político da democracia liberal. Na esteira da disseminação da tecnologia digital, a aceleração da infosfera causou a explosão da organização crítica dos conteúdos do discurso. A loucura está se espalhando pela esfera social.
O avanço da onda neorreacionária pelo mundo não é, de acordo com Bifo Berardi, um evento essencialmente político, mas uma mutação antropológica. E como não é um efeito político, não pode ser superado politicamente. No passado, a política era a dimensão da luta contra a opressão. Não é mais assim, porque hoje a política perdeu sua potência. Nos últimos anos, aprendemos da maneira mais difícil que capitalismo e democracia são incompatíveis. Depois de décadas de tensões dentro da estrutura democrática, o capitalismo, impulsionado pela dinâmica da concorrência global, perdeu sua flexibilidade. Ele perdeu de vista a promessa da democracia e se rendeu ao automatismo financeiro.
A razão política, reduzida à impotência, provocou o despertar do racismo e da agressividade nacionalista. Voltando ao poema de Yeats, Franco Bifo Berardi interpreta suas palavras em um sentido não teológico. Ele fala de um advento que soa terreno, tentando imaginar como quebrar o feitiço da impotência e do desespero que paira sobre o nosso tempo e como reinventar um futuro além do apocalipse iminente. Chama essa perspectiva de a segunda vinda do comunismo, por mais irrealista que pareça. Mas Bifo usa a palavra comunismo como uma ferramenta conceitual provisória, não se refere ao comunismo como uma configuração ideológica, a um projeto sistemático de transformação e nem remete a nenhum programa político. Nada disso. Para Bifo, o comunismo hoje significa erradicar a superstição da acumulação e do trabalho assalariado. Significa igualitarismo e emancipação do tempo social. O tecnoautomatismo exige cada vez menos trabalho e, no entanto, gera uma onda de medo, miséria e violência. Esse paradoxo se baseia precisamente na superstição do salário.
Nós nos acostumamos a pensar que nossa sobrevivência só é possível se trocarmos trabalho por dinheiro, como se o trabalho assalariado fosse uma lei da natureza. E não é. Dizer “comunismo” é usar a palavra para se referir a um meme que precisa ser criado, projetado e colocado para funcionar no cenário pós-apocalíptico.
Um meme é uma unidade de significação incorporada em um sinal, uma palavra, uma imagem, um gesto. Um meme tem de ser replicável e memorável. Marshall McLuhan disse que a mudança da comunicação alfabética para a tecnologia digital significa passar do modo de sequencialidade para o modo de simultaneidade. Isso implica que a razão crítica capaz de discriminar sequencialmente entre falsidade e verdade em um discurso deu lugar ao retorno do pensamento mitológico, que não tem mais a capacidade de discernir. É por isso que no discurso público contemporâneo a crítica da ideologia foi substituída pelo contágio de memes.
Gerd Loebink e Mark Teutels, especialistas em cultura digital, dizem que essa paisagem mental onde os memes proliferam favorece a política de direita, porque a esquerda não sabe como criar memes. É por isso que Bifo pergunta se o comunismo pode ressurgir como um curto-circuito memético no caos mental predominante para sua segunda vinda.
Não devemos nos esquecer de que o inevitável geralmente não acontece, porque no fim das contas o imprevisível prevalece, como escreveu John Maynard Keynes. A primeira tarefa é descrever o inevitável. Olhe a fera nos olhos, diz Bifo. Mas o que realmente muda as regras do jogo são os eventos imprevisíveis.
O pensamento é descartado como lastro na era da comunicação e da velocidade. Parece ineficaz. Ornamental. Isso faz parte do inevitável. Mas é o imprevisível que é preocupante. Portanto, não vamos parar de pensar, porque o imprevisível pode em breve exigir pensamento, e esse é o nosso trabalho. Pensar em tempos de trauma apocalíptico.
O capitalismo não é um dado da natureza. Parece natural, devido à nossa incapacidade de imaginar algo além dele. Parece que não conseguimos imaginar como a vida pode ser bela. A ganância, a conformidade, o cinismo e a ignorância estão frustrando e diminuindo nossa capacidade de vivenciar a imaginação. É por isso que Bifo Berardi sugere que preparemos nossas mentes para a segunda vinda.