15 Junho 2024
"A hidrologia aí aplicada não pode ser aquela que se contenta em analisar o comportamento dos cursos d’água em si, mas que mergulhe na bacia hidrográfica como um todo. A prioritária eficiência da esponja nas áreas rurais, principalmente as das cabeceiras, não eximem as cidades, colocadas nos vales, por exemplo, de operarem como cidades-esponja, conforme pregado pelo arquiteto chinês. E para isso há necessidade de uma revisão do conceito atual de drenagem urbana", escreve Osvaldo Ferreira Valente, engenheiro florestal, professor titular aposentado da Universidade Federal de Viçosa e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, em artigo publicado por EcoDebate, 07-06-2024.
Em artigo publicado aqui no EcoDebate em 29-05-2024, eu perguntei “Por que não bacias hidrográficas-esponja?”. A pergunta foi motivada pela criação das cidades-esponja, trabalho do arquiteto chinês Kongjian Yu e que tem sido trazido ao debate aqui no Brasil.
Mas disse, também naquele artigo, que as cidades estão posicionadas num espaço maior que é a bacia hidrográfica, valendo lembrar que qualquer área da superfície terrestre pertence a uma bacia hidrográfica. E se ela for mal cuidada produzirá grandes volumes de enxurradas. Esses volumes crescerão e, depois, provocarão cheias e inundações nas partes mais baixas.
É o caso do Rio Grande do Sul, com a cidade Porto Alegre sendo inundada pelo Rio Guaíba que é essencialmente formado pelo conjunto hídrico do sistema Jacuí-Taquari-Antas. Só a unidade territorial da bacia do Taquari-Antas tem uma área de coleta de chuvas de 26.482km² e está mostrada no mapa da Figura 1.
Figura 1 – Bacia Taquari-Antas, RS (Foto: Fepam)
As linhas azuis do mapa da Figura 1 mostram a rede de drenagem da bacia do Taquari-Antas. Para cada pequeno córrego nas cabeceiras existe uma pequena bacia hidrográfica, que vai se juntando a outras e formando bacias cada vez maiores até chegar à do Rio Taquari. Os primeiros 390km são do Rio Antas e depois de receber o Rio Guaporé ele passa a ser conhecido como Taquari, percorrendo mais 140km até desaguar no Rio Jacuí, já bem próximo de Porto Alegre.
As áreas claras do mapa assinalam as regiões de maiores declividade. Das cabeceiras, no extremo leste, até o Rio Tainhas, as altitudes variam de 1.000 a 700m, com cursos d’água encaixados e muitas corredeiras; do Tainhas até o Guaporé já há a formação de pequenos vales, ainda encaixados, com altitudes variando de 700 a 200m; Daí até o desague no Rio Jacuí, a altitude vai de 200 até algo em torno de 10m, com vales largos, muito habitados e com muita atividade agropecuária. Esta última está assinalada com a cor verde, valendo observar que há expansão dela ao longo de alguns cursos d’água afluentes, indicando a presença de vales, ainda que cada vez mais estreitos.
Esta conformação geomorfológica leva a uma rápida concentração das enxurradas formadas nas partes mais altas e que acabam inundando os vales das partes mais baixas. E, então, é fundamental que a esponja seja muito eficiente desde as cabeceiras. E para conseguir isso é necessário uma análise detalhada dos ecossistemas hidrológicos presentes e a organização e a capacitação dos ecossistemas familiares que vivem nessas áreas.
A hidrologia aí aplicada não pode ser aquela que se contenta em analisar o comportamento dos cursos d’água em si, mas que mergulhe na bacia hidrográfica como um todo.
A prioritária eficiência da esponja nas áreas rurais, principalmente as das cabeceiras, não eximem as cidades, colocadas nos vales, por exemplo, de operarem como cidades-esponja, conforme pregado pelo arquiteto chinês. E para isso há necessidade de uma revisão do conceito atual de drenagem urbana.
Vale mencionar, ainda, que as enxurradas são agentes de erosão e as partículas sólidas arrastadas vão se concentrar nos leitos dos cursos d’água, produzindo assoreamento e diminuição da capacidade de transporte de água, provocando extravasamento e inundação das margens e dos vales planos.
Há muitos estudos disponíveis sobre a bacia do Taquari-Antas, incluindo vazões dos rios, precipitações acumuladas, relevo, geologia, solos e população. Dentre eles podem ser citados o “Diagnóstico Ambiental do Taquari-Antas”, da Fundação Estadual de Proteção Ambiental- RS, e o “Sistema de Alerta Hidrológico da Bacia do Taquari, do Serviço Geológico do Brasil” (acesse aqui).
Mas são estudos gerais, de dimensão macro, faltando detalhamentos sobre os ecossistemas hidrológicos, aqueles que analisam as interações da água de chuva com os componentes bióticos e abióticos das pequenas bacias que compõem o conjunto. Também faltam estudos sociológicos e antropológicos da população presente para que seja possível a criação de ecossistemas familiares que ajudem no trato adequado dos volumes de água recebidos pelas chuvas. É claro que estudos existentes ajudam muito, pois servem de base para os estudos detalhados.
Algumas informações sobre como fazer esses detalhamentos estão no texto de treze páginas, intitulado Aplicação da “Hidrologia e Manejo de Bacias Hidrográficas” na Busca por Segurança Hídrica, que proponho disponibilizar pelo e-mail citado na minha pequena biografia, no final deste artigo.
A imagem da esponja é um apelo ao senso comum de que volumes de água lançados sobre a superfície de uma esponja, tipo aquela usada para lavar vasilhas, são rapidamente absorvidos por ela.
Esse é o comportamento desejado e perseguido para uma superfície de solo atingido por chuvas, ou seja, que todo ou a maior parte do volume de água recebido seja também rapidamente absorvido, evitando ou reduzindo a formação de enxurradas. Mas na prática o nosso desejo precisa ser trabalhado, usando os conceitos de intensidade de chuva e de velocidade de infiltração de água no solo.
Figura 2 – Infiltração de água no solo (Foto: Fepam)
A Figura 2 mostra um gráfico com duas curvas, representando o comportamento da superfície ao ser atingida por uma chuva. A de cor verde (IA) mostra que quanto mais tempo durar a chuva, mais água será infiltrada no solo. Já a de cor vermelha mostra a velocidade com que a água se infiltra no solo; é a chamada velocidade de infiltração (VI), que vai diminuindo enquanto a umidade do solo está sendo satisfeita. A partir de um certo tempo, os volumes infiltrados começam a vencer as forças de retenção do solo e a velocidade de infiltração passa a manter certa constância, conhecida como velocidade de infiltração básica (VIB).
Se a chuva no tempo Ta estiver caindo com uma velocidade de 50mm/h e a VI for, nesse tempo, de 20mm/h, haverá uma sobra de 30mm/h para formar enxurradas. Mas se a chuva cessar por esse tempo e tivermos conseguido reter volumes de enxurradas em caixas ou terraços, por exemplo, a infiltração poderá continuar até o tempo Tb, aumentando a retenção de Qa para Qb. Esta análise feita é apenas uma simplificação do que acontece e pode acontecer, para que o leitor possa entender porque as caixas e os terraços colaboram para efeito esponja da superfície.
Então, dentro dessa linha, quaisquer estruturas que consigam aumentar o tempo que a água permanece na superfície, sem escoar, colaborarão para o aumento dos totais infiltrados. Em resumo, o que é preciso é aumentar a rugosidade da superfície para diminuir a formação de enxurradas e dar tempo para a infiltração.
Em resumo, quando vivo pregando a necessidade de segurar as enxurradas não só com áreas cobertas de vegetação protetora, mas também com estruturas como terraços e caixas variadas, visando enriquecer os aquíferos subterrâneos para uma boa produção de água, estou, ao mesmo tempo, trabalhando para evitar grandes concentrações dessas enxurradas nas regiões mais baixas, causando os desastres já tão frequentes.
E a minha proposta, ao sugerir as “bacias hidrográficas-esponja”, é que o conceito atual de segurança hídrica, que trata apenas da garantia de suprimento adequado de água para consumo humano e demandas produtivas necessárias à vida, passe, também, a incluir a proteção contra cheias e inundações.
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Reflexões sobre a aplicação do conceito de bacias hidrográficas-esponja. Artigo de Osvaldo Ferreira Valente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU