23 Março 2024
"Na minha opinião, não é absolutamente verdade que todas as opiniões sejam igualmente dignas de respeito. Há algumas que eu não tenho nenhuma intenção de respeitar e ficaria envergonhado se o fizesse. O que se deve sempre e em qualquer caso respeitar é a pessoa humana", escreve Franco Cardini, professor emérito de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais de Florença, agora absorvido na Scuola Normale de Pisa, em artigo publicado por La Stampa, 20-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A liberdade de expressão é garantida exigindo com rigor explicação de cada posição dentro dos limites de leis aceitas e compartilhadas, que tenham regras não negociáveis.
“Avancem – graciosos mascarados! – É aberto a todo mundo: viva a Liberdade!”. Estamos no final do primeiro ato do "drama jocoso" KV 527, O dissoluto punido, ou seja, Don Giovanni, música de Wolfgang Amadeus Mozart com libreto em italiano de Lorenzo Da Ponte, apresentado pela primeira vez no Stavovské Divadlo de Praga, em 29 de outubro de 1787. Nas vésperas da Revolução Francesa, essa gloriosa apologia da liberdade posta nos lábios de um libertino impenitente, acostumado ao homicídio, à traição e ao estupro, parece quase profética.
É claro que o “libertino” aqui apresentado tem pouco a ver com a contestável, embora nobre, filosofia de origem cético-racionalista de Pierre Bayle, Pierre Gassendi e Cyrano de Bergerac, o libertinage erudit; mas também é verdade que, no final do século XVIII, esse termo era comumente entendido como uma atitude marcada por um desprezo pelas normas e pelas convenções levado ao excesso, à blasfêmia e ao crime; e é com esse conjunto de antivalores em mente que a pobre e boa Madame Marie-Jeanne Roland denunciava em 1793, aos pés do cadafalso jacobino, com a frase destinada a permanecer famosa: “Oh, Liberdade! Quantos crimes são cometidos em teu nome! Apenas sete anos haviam se passado desde que o 'Viva a Liberdade!' do grande sedutor ressoara pela primeira vez naquele teatro de Praga, capital de um reino cujo soberano era irmão de outra ilustre decapitada em 1793, Maria Antonieta".
Hoje, quase dois séculos e meio depois daqueles acontecimentos, continuamos a discutir a liberdade, os seus muitos significados, os imensos valores e os enormes mal-entendidos que ela comporta. A Liberdade absoluta e ilimitada dos libertinos era algo inatingível ou o resultado de privilégios hiperbólicos que se traduziam na injustiça generalizada e na escravidão das multidões. A vida democrática dos nossos dias, vivida na consciência difundida da sua imperfeição eterna e irreprimível e, no entanto, na crença não menos generalizada da sua necessária perfectibilidade, só pode desenvolver-se e afirmar-se na medida em que sejam traçados os seus limites explícitos e compartilhados. Sub lege Libertas é um antigo e incontornável lema latino: não há liberdade sem fronteiras; e negar estas significa, na realidade, negar aquela.
Os noticiários dos últimos dias nos colocam com generosidade inexorável perante esses velhos problemas, nunca resolvidos porque na realidade são insolúveis se não forem enfrentados à luz do equilíbrio e da concretude. É evidente que estamos diante de um problema histórico que, como tal, só pode ser relativo.
E afirmar isso não é absolutamente relativismo: é relatividade. Deixemos os absolutos para a metafísica e, no máximo, para a filosofia: o reino da História (e da política) é o do relativo, portanto do possível e do sustentável. Quando se fala seriamente sobre história e política, existem dois advérbios que não podem e não devem ser usados: sempre e nunca.
Admitamos agora que na democrática Itália exista uma escola na qual a maioria dos estudantes segue uma religião que interessa milhões de pessoas, mas não é a mais difundida no país e por isso comemora, por exemplo, festas religiosas cujo valor festivo o país não reconhece. É evidente que novos feriados não podem ser proclamados levianamente e que em datas assim nenhum diretor escolar tem o direito de fechar as portas suspendendo um exercício público e prejudicando assim os direitos dos cidadãos como um todo. No entanto, a autoridade escolar e, a fortiori, o ministério, podem reconhecer as tradições e aspirações religiosas das minorias como legítimas, e diante disso, sem fechar nenhuma escola, reconhecer explicitamente como ausências justificadas aquelas de estudantes cujas famílias desejam ou, em qualquer caso, preferem que os seus filhos não frequentem a escola quando coincidir com o que para elas é festividade ou celebração importante. Somente no caso em que as condições atuais mudassem, poder-se-ia pensar na codificação do quadro jurídico subjacente, mas isso não é necessário por enquanto, nem é previsível que se tornará em breve.
A situação é diferente no que diz respeito ao que é legítimo condenar e proibir em termos jurídicos no campo da liberdade de pensamento e de expressão. Mesmo nesse caso, o quadro de referência não pode prescindir dos condicionamentos da relatividade histórica e política. A Constituição italiana datada de 27 de dezembro de 1947, por exemplo, prevê em fechamento 18 disposições transitórias e finais (expressão caracterizado na verdade por dois adjetivos, cuja utilização simultânea pode dar origem a ambiguidade), a décima segunda das quais proíbe "a reconstituição, sob qualquer forma, do dissolvido partido fascista". Deve-se reconhecer que os termos da proibição são peremptórios, mas de forma alguma claros. Alude-se aos partidos PNF de 1921-1943 ou ao PFR de 1943-1945, ou ambos são considerados globalmente? E à luz dos ditames da décima segunda disposição, até que ponto a sua transitoriedade era reconhecida como válida, e em que relação isso estava com o uso do adjetivo subsequente "final" (no sentido estritamente de "definitivo" ou simplesmente "conclusivo"?).
Em qualquer caso, é evidente que essa disposição não afetava de forma alguma o direito de liberdade de opinião: havia liberdade de se autodenominar e se considerar fascistas, mesmo que a proibição afetasse o desejo de se organizar politicamente de uma forma coerente em relação à livre opinião pessoal. Mas a proibição da livre organização não prejudica de alguma forma concreta a liberdade de opinião? E mesmo que assim não fosse, subsistiriam dúvidas sobre disposições legislativas posteriormente tomadas como consequência daquela disposição constitucional - da apologia do fascismo da chamada "lei Scelba" em diante - que deixavam na sombra aquilo que concretamente poderia ser punido, configurando de fato um “crime de opinião” constitucionalmente ilegítimo. Vamos concluir. Costuma-se afirmar, até mesmo com grande ousadia, que todas as opiniões são dignas de respeito: o caso do “fascismo” (que à luz do atual debate entre os especialistas e das polêmicas midiáticas de todos os tipos é na verdade um Objeto Misterioso cada vez mais ambíguo e difícil de definir, um espectro que assombra a opinião pública mundial ainda mais terrível, mas também muito mais refratário a definições partilhadas do que o comunismo era em 1848) demonstra que esse não é o caso. E, exatamente como Marx e Engels observaram em 1848 em relação ao comunismo, não há ninguém ou quase ninguém que não tenha sido pelo menos uma vez tratado como fascista pelos seus oponentes, e que talvez não tenha retribuído a cortesia.
Bem, eu não. Eu não concordo. Na minha opinião, não é absolutamente verdade que todas as opiniões sejam igualmente dignas de respeito. Há algumas que eu não tenho nenhuma intenção de respeitar e ficaria envergonhado se o fizesse. O que se deve sempre e em qualquer caso respeitar é a pessoa humana: e respeitar significa não aceitar como plausível qualquer crença religiosa, posição ideológica, ou opinião política, mas permitir que qualquer pessoa exprima o seu pensamento com liberdade e serenidade, pedindo-lhe contas com rigor, no quadro de leis que sejam explicitamente aceitas e compartilhadas e cujos limites não sejam negociáveis. Eu, católico e homem de ordem, reconheço-me nisso. Não no laicismo interesseiro de quem escandalizado tenta proibir as ideias que não lhe agradam, mas na laicidade franca de quem, tomando conhecimento das opiniões alheias que não compartilha, as submete a livre e rigorosa discussão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O respeito é devido a todas as pessoas, mas não a todas as opiniões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU