19 Março 2024
" Ao lado daqueles que têm a coragem de se deixarem prender e processar, muitas pessoas praticam uma resistência cotidiana cultural e moral, segundo aquela 'teoria das pequenas coisas' que não é totalmente desconhecida até mesmo para nós, ocidentais, que enfrentamos uma crise (obviamente muito diferente) da democracia e da representação política".
O comentário é do historiador da arte Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 18-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
A imagem de Jorit abraçando Putin (um artista abraçando um ditador...) é repreensível não por causa da "lesa-majestade atlântica", mas porque é um tapa imperdoável na cara da Rússia que se rebela contra Putin: a única para a qual a deveria ir a fraternidade daqueles que, no Ocidente, ficam do lado dos povos, e não dos governos. Da paz e não da guerra. A essa Rússia é dedicado o precioso e pequeno livro de Maria Chiara Franceschelli e Federico Varese “La Russia che si ribella. Repressione e opposizione nel paese di Putin” (A Rússia que se rebela. Repressão e oposição no país de Putin, em tradução livre, Altreconomia 2024) construído em torno de cinco testemunhos, e apoiado por um detalhado aparato documental que oferece números, nomes e datas a quem pergunta, com presunção colonialista, “por que os russos não se rebelam?”.
La Russia che si ribella. Repressione e opposizione nel paese di Putin. Altreconomia, 2024 (Foto: Divulgação)
Em 2023, 5.024 soldados russos foram julgados por deserção – os verdadeiros heróis dessa guerra. É, observa Franceschelli, “um recorde histórico absoluto. Em 2022 foram 1.001 casos, em 2021 ‘apenas’ 615”. De 2022 a janeiro deste ano, foram abertos processos criminais contra 1.082 dissidentes políticos e, no mesmo período, 509 pessoas físicas e organizações foram classificados como “agentes estrangeiros”: são esses que deveríamos abraçar publicamente. Ao lado daqueles que têm a coragem de se deixarem prender e processar, muitas pessoas praticam uma resistência cotidiana cultural e moral, segundo aquela "teoria das pequenas coisas" que não é totalmente desconhecida até mesmo para nós, ocidentais, que enfrentamos uma crise (obviamente muito diferente) da democracia e da representação política.
De vez em quando, esse vasto dissenso russo emerge em ações geniais e corajosas, como aquela da artista Aleksandra Skochilenko, “presa em 31 de março de 2022 em São Petersburgo por ter substituído as etiquetas de preços de um supermercado por bilhetes que denunciavam o massacre do exército russo na Ucrânia e por isso condenada a sete anos de prisão”. Um protesto simbolizado pela escrita "Não à guerra" que apareceu em março de 2022 no congelado Neva, em São Petersburgo: clamorosa, mas destinada a voltar a submergir (e em todo caso depois de ter sido apagada).
As cinco figuras escolhidas pelos autores são exemplares:
- a octogenária Lyudmila, que sobreviveu ao cerco de Leningrado e, portanto, intocável, mas indômita na sua contestação do uso instrumental e perverso que Putin faz da Segunda Guerra Mundial e da vitória sobre o nazismo;
- o padre Ioann, pope ortodoxo excomungado (assim como Tolstoi), e agora refugiado na Bulgária, por ousar pregar explicitamente um evangelho de paz, pecado imperdoável na igreja corrupta e serva do poder liderado pelo Patriarca Kirill; Grigorij, professor universitário de filosofia política, listado entre os “agentes estrangeiros” e agora expatriado em Princeton;
- Ivan, ativista político com histórico de detenções e torturas, que continua a organizar a resistência da Alemanha por meio da Zona solidarnosti (Zona de solidariedade), um projeto que dá assistência aos presos políticos presos por se manifestarem contra o guerra; e finalmente
- Katia, redatora da Doxa, revista universitária da Escola Superior de Economia de Moscou, que continuou a falar e a alimentar o dissenso apesar da progressiva traição das cúpulas acadêmicas, cada vez mais alinhadas com o governo de Putin.
Histórias que demonstram que a oposição a um regime pode assumir muitas formas diferentes.
Estamos acostumados a pensar (e falar) de maneira superficial, opondo consenso e revolução. Raciocinamos em termos de praças, ruas, revoltas, multidões e massas. Sem dúvida, muitas grandes mudanças na História tiveram esse aspecto. Por outro lado, limitar-se a essa perspectiva impedir-nos-ia compreender um presente mais complexo, no qual esse construto binário não encontra espaço. Acima de tudo, não faria justiça a outro tipo de lutas, silenciosas, subterrâneas, mas não menos importantes, que muitos cidadãos e cidadãs realizam, à sua maneira, todos os dias, desafiando regimes e violências.
Esse livro investiga o que acontece entre consenso e revolução, entre silêncio e revolta.
Essas são palavras importantes, que devem fazer refletir também nós, ocidentais, incapazes de nos rebelarmos contra governos que, traindo as nossas constituições e os nossos verdadeiros valores, condenam violentamente qualquer um se atreva a falar de negociação, inclusive o Papa, e nos conduzem rumo a um possível armagedon nuclear.
São os mesmos governantes que até ontem mantinham excelentes relações com Vladimir Putin e que poderiam facilmente voltar a tê-las amanhã. “O sangue dos habitantes da Ucrânia manchará não apenas as mãos dos governantes da Federação Russa e dos soldados que cumprem as suas ordens. Irá manchar as mãos daqueles entre nós que aprovam essa guerra, ou simplesmente permanecem em silêncio”: foi o que disse o Padre Ioann. Vale também para nós, ocidentais, que seguimos em frente como silenciosos sonâmbulos rumo a uma guerra mundial.
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A Rússia que se rebela existe: 5 histórias do lado da paz. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU