08 Março 2024
Ciência mostra que alterações no clima impactam a proliferação da doença e alerta que vírus deve se espalhar ainda mais pelo planeta nas próximas décadas.
A reportagem é de Juliana Zambelo, publicada por ClimaInfo, 06-03-2024.
No último dia de fevereiro, o Ministério da Saúde anunciou que o país chegou à alarmante marca de 1 milhão de casos prováveis de dengue registrados em 2024, com crescente número de mortes. Desde o início do ano, foram confirmados mais de 200 óbitos por consequência da doença e mais de 700 estão em investigação.
Minas Gerais tem sido o estado com maior número de casos prováveis de dengue, seguido de São Paulo, Distrito Federal e Paraná. No dia 5 de março, o estado de São Paulo decretou oficialmente estado de emergência ao atingir 311 casos confirmados para cada grupo de 100 mil habitantes.
Mas esse aumento espantoso de casos não está restrito ao Brasil. Outros países da América Latina também vêm enfrentando surtos da doença, o que levou a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) a emitir um alerta epidemiológico por um aumento geral da dengue na região das Américas.
Entre os países vizinhos, o Peru já sofre com superlotação de hospitais e declarou emergência de saúde em 20 das 25 regiões do país diante do risco iminente de um surto da doença, e a Argentina registrou em janeiro e fevereiro um aumento de 2.546% no número de casos notificados em comparação com o mesmo período no ano anterior.
O cenário preocupa não apenas pelo grande número de casos, mas também pelas características inéditas que apontam mudanças nos padrões da doença que tem o mosquito Aedes aegypti como vetor. Historicamente, o Brasil costuma registrar picos de casos de dengue entre março e abril, uma curva muito diferente da que está sendo observada este ano. E a ciência é clara em apontar que a causa das alterações nos padrões e do aumento histórico de casos é a mudança climática.
Em novembro de 2023, foi lançada a oitava edição do relatório Lancet Countdown, que demonstra como as mudanças climáticas estão provocando impactos profundos na saúde e bem-estar da população em todo o mundo. Entre os alertas presentes no trabalho está a previsão de que, com o aumento das temperaturas globais e alterações em outros padrões climáticos, as doenças infecciosas que causam risco de morte se espalhem ainda mais até meados do século, com o potencial de transmissão da dengue aumentando entre 36% e 37%, contribuindo para sua rápida expansão global.
A bióloga Tatiana Souza de Camargo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que integra a equipe do Lancet Countdown América do Sul, explica que a mudança climática e seus efeitos são responsáveis pelo aumento de casos de dengue e por levar a doença a locais onde ela antes não estava presente. A pesquisadora também é Education Fellow da Planetary Health Alliance, da Universidade Johns Hopkins.
“Alterações nos padrões climáticos, como regime irregular de chuvas, períodos de seca e grande calor, seguidos de períodos de chuva com enchentes, e depois ondas de calor com temperaturas bastante elevadas, criam um ambiente muito mais propício para o mosquito, que vai conseguir sobreviver mais, se reproduzir mais e, com isso, vai infectar mais pessoas. Dessa forma, a dengue vai se espalhando.”
Tatiana aponta que o cenário vivido hoje na América Latina, agravado pela incidência do fenômeno El Niño, já tinha sido previsto pela comunidade científica em diversos estudos epidemiológicos. “Quando vemos a série histórica de dengue e sobrepomos esse número de casos por região/por ano com cenários climatológicos, vemos uma correlação entre aumento da temperatura, aumento das chuvas, de enchentes, com um aumento grande de casos de dengue. Esses estudos já existem há alguns anos e vem alertando para o crescimento da dengue.”
A bióloga chama a atenção para o fato de que, este ano, o país está registrando grande número de casos em regiões onde, até agora, não ocorria uma incidência tão alta, como São Paulo e os estados da região Sul. “As mudanças no clima afetaram áreas que antigamente não tinham temperaturas tão elevadas nem por tanto tempo. Por exemplo, no Rio Grande do Sul não existiam casos autóctones (contraídos dentro da própria região) até o fim da primeira década do século 21. Ainda havia uma linha isotérmica que protegia parte do país até por volta de 2008. Hoje essa linha isotérmica se desfez”. Isso comprova que, conforme a temperatura vai aumentando em todo o mundo, existe um grande risco de que a dengue vá se espalhando cada vez mais por lugares onde não existia antes a possibilidade de sobrevivência do mosquito.
E não se trata apenas de previsão para o futuro. Em 2023, Itália, França e Espanha, países anteriormente livres da dengue, tiveram 128 casos da doença, parte deles de contaminação local. Esse número, apesar de pequeno em termos absolutos, representa um aumento de 80% em relação a 2022.
Segundo o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), se a mudança climática não for revertida, até o fim do século 5 bilhões de pessoas a mais estarão vivendo em regiões do mundo onde poderão estar suscetíveis à doença. Atualmente a dengue está presente em áreas ocupadas por cerca de 3 bilhões de pessoas.
E, assim como outros impactos das mudanças climáticas, a dengue se espalha de forma desigual, afetando de forma mais grave as populações já vulnerabilizadas por questões socioeconômicas e raciais. Pessoas que vivem em regiões com ausência de saneamento básico, recolhimento de resíduos, rede de esgoto e acesso à água potável enfrentam maior proliferação do mosquito, recebem menos assistência do poder público para controle do vetor e têm menos acesso a serviços de saúde, fatores que levam a um agravamento da situação.
Dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2024, mulheres pretas e pardas têm sido o grupo populacional com maior número de casos no país.
O relatório Lancet Countdown 2023 e outros estudos científicos listam, além do aumento de casos de doenças transmitidas por vetores como mosquitos, como a dengue, outros riscos das mudanças climáticas para a saúde. Perigos que não estão sendo considerados pelos países com a seriedade que deveriam.
Segundo o documento, se não conseguirmos manter o aquecimento do planeta em no máximo 1,5°C sobre as temperaturas pré-industriais, projeta-se que as mortes anuais relacionadas ao calor aumentem em 370% até meados do século.
Outros efeitos na saúde física e também mental da população são a exposição aos eventos climáticos extremos, como enchentes, deslizamentos, desabamentos, e doenças causadas por poluição do ar em decorrência do aumento de queimadas ou continuidade da queima de combustíveis fósseis.
Também é fundamental pensar o quanto as mudanças do clima vão impactar a segurança alimentar e nutricional das pessoas. “A mudança climática vai fazer com que as pessoas comam menos e comam pior, e isso atinge particularmente as populações mais vulneráveis”, diz a pesquisadora. O relatório também mostra que ondas de calor mais frequentes podem levar mais 525 milhões de pessoas a sofrer de insegurança alimentar moderada a grave entre 2041 e 2060, exacerbando o risco global de desnutrição.
“Precisamos reativar o plano nacional de adaptação a mudanças do clima, revisar, atualizar e garantir que os setores tenham aporte financeiro e de recursos humanos para que o plano seja colocado em prática”, destaca Tatiana. “Na frente da saúde, isso vai garantir que o setor esteja mais apto a identificar casos e a se mobilizar para atender, seja a um surto de dengue, casos de ondas de calor ou estresse pós-traumático de pessoas que enfrentam eventos extremos. Essas são situações para as quais as redes em geral não estão preparadas.”
“Os riscos crescentes das mudanças climáticas estão custando, hoje, vidas e meios de subsistência em todo o mundo”, reforça Marina Romanello, Diretora Executiva da Lancet Countdown na University College de Londres. “As projeções de um mundo 2°C mais quente revelam um futuro perigoso e são um lembrete de que o ritmo e a escala dos esforços de mitigação vistos até agora têm sido lamentavelmente inadequados para proteger a saúde e a segurança das pessoas. Com 1.337 toneladas de dióxido de carbono ainda sendo emitidas a cada segundo, não estamos reduzindo as emissões com rapidez suficiente para manter os riscos climáticos dentro dos níveis com os quais nossos sistemas de saúde são capazes de lidar. Há um enorme custo humano gerado pela inação, e não podemos arcar com esse nível de falta de comprometimento: estamos pagando com vidas humanas. Cada instante que nós postergamos torna o caminho para um futuro habitável mais difícil e a adaptação cada vez mais cara e desafiadora”, explica ela.
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Explosão de casos de dengue não é natural – é mudança climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU