16 Janeiro 2024
"A habilidade de Fennell em prender a atenção do espectador é notável, utilizando um marketing provocativo que inicialmente insinua um romance homoerótico, apenas para subverter essas expectativas através de revelações impactantes por meio de flashbacks", escreve Bruno Fabricio Alcebino da Silva, bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), em artigo publicado por Outras Palavras, 12-01-2024.
Em seu aguardado segundo longa-metragem, "Saltburn" (2023), a talentosa cineasta Emerald Fennell, vencedora do Oscar de melhor roteiro original, mergulha nas águas turvas da aristocracia britânica, traçando paralelos com períodos históricos marcados por desigualdades e intrigas de poder. Remetendo à tradição literária gótica, que frequentemente explorava as nuances sombrias da sociedade, Fennell desafia as expectativas do público ao revelar a complexidade de sua trama. Após seu aclamado trabalho como roteirista na segunda temporada de Killing Eve (2019) e sua ousada estreia como escritora e diretora em Bela Vingança (2020), Fennell traz consigo a promessa de provocação e subversão, elementos que ecoam movimentos sociais e políticos que questionam as normas estabelecidas.
A trama gira em torno de Oliver Quick (Barry Keoghan), personagem enigmático cujo anseio por pertencimento e poder é personificado pelo carismático Felix Catton (Jacob Elordi). A habilidade de Fennell em prender a atenção do espectador é notável, utilizando um marketing provocativo que inicialmente insinua um romance homoerótico, apenas para subverter essas expectativas através de revelações impactantes por meio de flashbacks. O filme desenrola-se como uma fábula gótica, repleta de reviravoltas e nuances que prestam homenagem a diversas influências, desde o clássico italiano "Teorema" (1968) até a adaptação de "O talentoso Ripley" (1999).
Oliver, o protagonista fabuloso, transita da pomposa Universidade de Oxford para o âmago de uma família ultrarrica burlesca. A dinâmica familiar naturaliza instintos e desejos com luxúria, seguindo suas próprias regras sociais e sexuais, refletindo a segurança e extravagância característica da elite tradicional. A diretora habilmente instiga simpatia pelo personagem interpretado por Keoghan, enquanto ele entra na universidade como bolsista, destacando a diferença de classes por meio de sua vestimenta, sua timidez e desconforto, contrastando com a opulência dos estudantes ricos em um mundo repleto de tradição e sobrenomes.
Diferentemente de seu trabalho anterior, "Bela Vingança", onde Fennell empregava o didatismo para abordar questões sociais, em "Saltburn" a diretora opta por manter o público imerso em uma atmosfera de conto gótico, antes de surpreendê-lo com reviravoltas. A trama se desenrola na imponente mansão Saltburn, título do filme, onde a cineasta aprofunda a tensão social entre o protagonista, Oliver Quick e a tradicional família Catton, cuja relação com a aristocracia é explorada com nuances perturbadoras. Fennell tece uma rede narrativa que, de maneira gótica, revela a decadência e os conflitos de não pertencimento de Oliver, remetendo a clássicos literários como O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, e Rebecca, a mulher inesquecível, de Daphne Du Maurier.
Ao utilizar um marketing provocante que sugere um romance homoerótico, Fennell explora o poder da representação e visibilidade LGBTQIA+, refletindo as mudanças sociais e culturais ocorridas nas últimas décadas. A subversão das expectativas, característica da obra, pode ser associada a movimentos que desafiam normas sociais preestabelecidas.
Ao abordar a aristocracia e seus jogos de poder, Fennell, de maneira caricata, faz uma crítica à alienação e à dinâmica manipuladora dos personagens, refletindo paralelos com momentos históricos em que a elite buscava manter seu status por meio de estratégias ardilosas. A participação especial de Carey Mulligan (protagonista de Bela Vingança) como Pamela adiciona um toque extravagante a esse retrato, sugerindo que Fennell está criando um padrão ao reunir elencos chamativos para suas histórias.
A ambientação em 2007 é uma escolha inteligente, proporcionando referências culturais da época, como o fenômeno de "Harry Potter" e "Crepúsculo". Fennell utiliza essas referências de maneira sutil, incluindo o livro Harry Potter e as Relíquias da Morte, lançado naquele ano, como preferência de leitura dos personagens, enquanto adiciona elementos atemporais/clássicos e trechos que se conectam à cultura pop, como o memorável momento musical com karaokê.
A cinematografia de Linus Sandgren destaca-se, reforçando a atmosfera gótica do filme. A diretora, mesmo com alguma obviedade em suas subversões, entrega um espetáculo visual, explorando momentos de repulsa e morbidez que superam as manipulações e sadismos de Oliver. A dualidade entre falsa inocência e perversidade é magistralmente retratada, especialmente em cenas como o momento do orgasmo na banheira.
No entanto, apesar da estética cativante e do elenco talentoso, "Saltburn" não é isento de críticas. A narrativa, estruturada em clipes e reviravoltas, por vezes se perde, deixando a sensação de uma nova proposição clássica desprovida de substância. Fennell, ao tentar disfarçar o jogo de sedução e manipulação, corre o risco de criar um drama desconexo, mais focado na estética do que na coesão narrativa.
Em suma, "Saltburn" é uma obra que desafia convenções, oferecendo uma experiência cinematográfica única e provocante. Emerald Fennell, mesmo com alguns tropeços, continua a se destacar como uma diretora visionária, explorando as complexidades da natureza humana em um cenário luxuoso e gótico.
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Saltburn: os aristocratas se divertem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU