22 Dezembro 2023
“Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado”. A frase foi escrita pelo ambientalista Chico Mendes em uma carta endereçada aos “jovens do futuro” em 1988, ano em que foi assassinado. Líder sindical e seringueiro, ele fazia referência a uma “revolução socialista mundial” que uniria todos os povos do planeta num só ideal. Ao menos era este o seu sonho.
A reportagem é de Camila Araujo, publicada por Amazônia Real, 19-12-2023.
Após seu assassinato, em 1988, a Semana Chico Mendes rememora anualmente, em dezembro, seus ideais e a luta dos seringueiros no Acre pelo direito à terra e pela conservação das florestas – que culminou na criação das primeiras Reservas Extrativistas (Resex), em 1990. Neste ano, com o lema “Empate de Retomada”, a semana é realizada entre Xapuri, Rio Branco e região, de 15 a 22 de dezembro, e o evento traz destaque à juventude, responsável por dar continuidade à luta pela Amazônia.
“O ‘empate de retomada’ significa retomar os princípios para os quais as reservas foram criadas, já que ao longo do tempo observamos que houve venda de pedaços de colocação, o que é proibido no plano de utilização”, explica o jovem André Maciel, 22 anos, morador da Resex Chico Mendes e membro do coletivo Varadouro. Colocação é o espaço na floresta destinado à base para extração do látex das seringueiras, com casa da família responsável pela atividade.
Já o “empate” é um método de luta pacífica criado por seringueiros acreanos entre 1970 e 1990 para impedir que latifundiários desmatassem áreas de floresta. A estratégia consistia em montar uma barreira humana com pessoas que viviam nos seringais nas áreas de maior avanço do desmatamento, que frequentemente se expandiam até as colocações.
As Resex foram, então, uma forma que os extrativistas encontraram de reivindicar o uso dos recursos naturais, com proteção territorial. São áreas legalmente instituídas e hoje categorizadas como unidades de conservação geridas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para garantir a conservação e a proteção de modos de vida tradicionais. Há alguns anos, no entanto, diz André, as Resex sofrem um processo de fragilização e “desvirtualização” da função original.
Angélica Mendes com seu Nenzinho da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema (Foto: Reprodução Facebook)
A ideia de retomada é uma forma de dialogar abertamente sobre os problemas atuais na tentativa de recuperar os princípios originais das Resex, para fortalecer moradores do território e movimentos sociais que atuam na região. Cada Resex tem um plano de manejo, instrumento de acordos de ocupação e uso do território elaborado de forma participativa pelos moradores e pelo Governo Federal. Para ler o da Resex Chico Mendes, clique aqui.
Para Angélica Mendes, analista ambiental de 34 anos e membro do Comitê Chico Mendes, neta de Chico, uma grave situação é a falta de oportunidades para a juventude que vive nas unidades de conservação, o que enfraquece a proteção da Amazônia já que, com o êxodo para as cidades, os territórios tradicionais ficam suscetíveis à exploração predatória.
“O Comitê tem trabalhado pelo fortalecimento da juventude para seguir lutando pela floresta de pé. Por mais que a gente tenha um governo federal agora simpático à nossa luta, ainda são muitos os nossos desafios”, diz.
O seringueiro Osmarino Amâncio Rodrigues (Foto: Camila Araujo/Cobertura Colaborativa)
Durante os eventos na Semana Chico Mendes no Acre, o encontro entre velha guarda seringueira e a juventude amazônida que assume a linha de frente da proteção das florestas é carregado de simbolismos e de recordação de quem tombou na luta. E de esperança.
“Quando a gente olha para o mapa e vê que temos milhões de hectares de terra na mão de trabalhadores, de populações tradicionais que eram discriminadas e viviam em invisibilidade total, a gente começa a entender que valeu e vale a pena lutar”, diz o seringueiro Julio Barbosa, presidente do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS).
Ele destaca que o Brasil é o único país do mundo a reconhecer o direito de povos e comunidades tradicionais, com a instituição de reservas extrativistas. “Cada Resex só é demarcada e reconhecida se a gente lutar e resistir. Era essa a mensagem que Chico transmitia, e a juventude precisa entender isso”, completa. “É uma luta de classes: de um lado estamos nós do outro lado está quem quer diminuir o tamanho das nossas terras”, acrescenta o acreano nascido em Xapuri.
Na mesma linha, o seringueiro Osmarino Amâncio Rodrigues, de 68 anos, critica a política de conciliação com o agronegócio do atual governo Lula e acredita que é função dos jovens interferir nesse cenário. “A juventude precisa se levantar contra um governo que dá ‘mixaria’ para a agricultura familiar e milhares para os grandes fazendeiros”.
“Lula disse lá em Brasiléia (AC), quando veio aqui na década de 1980, que se fosse presidente fazia reforma agrária em duas canetadas. Não fez”, protestou Osmarino, companheiro de Chico Mendes, que participou de diversos empates na floresta e também acompanhou o surgimento da aliança que uniu seringueiros, indígenas e povos da floresta a partir dos anos 1970.
Ele acrescentou e cobrou: “para provar que o governo está com nós, ele precisa criar mais reservas extrativistas”.
O sertanista de 72 anos Antônio Luis de Macedo, ou Txai Macedo, também participou do movimento que buscou consolidar a aliança entre os povos da floresta. “Falávamos que seringueiros e índios não eram inimigos como diziam os patronatos e políticos que queriam explorar esses segmentos de maneira separada”.
Se antes seringueiros e indígenas não caminhavam juntos nesta luta, fruto de uma provocação cujo objetivo era mantê-los desarticulados, o cenário mudou nos anos 1980, com a construção da Aliança dos Povos da Floresta. “Juntos, iríamos nos tornar fortes, uma fortaleza de luta”, recorda Txai Macedo.
O sertanista Txai Macedo (Foto: Camila Araújo/Cobertura Colaborativa)
O agrônomo e advogado Gumercindo Rodrigues, amigo de Chico, também participou dessa história. Ele saiu de Mato Grosso, sua terra natal, e nunca mais deixou de morar em Xapuri após o envolvimento com a luta dos seringueiros. Acabou buscando uma segunda formação, em Direito, para poder contribuir com a defesa dos trabalhadores após ver tantos de seus companheiros serem assassinados.
Ele esteve com Chico Mendes minutos antes de o líder ser morto com tiros de escopeta na porta de sua própria casa. Ao descrever o episódio, com lágrimas nos olhos, ele diz que viu o amigo deitado em uma maca “morto”. Em seguida, se corrige: “morto não”.
“Ele não estava morto. Ele não está morto. Se ele estivesse morto, 35 anos depois nós não estaríamos aqui, falando desse cara que sonhava com um mundo melhor, que sonhava com uma vida melhor para os seringueiros e os povos da floresta. Que sonhava…”, afirma.
O Comitê de Apoio aos Povos da Floresta: Olga Becker, Rosa Roldan e Dora Hees (Foto: Camila Araujo/Cobertura Colaborativa)
Homenageadas na Semana Chico Mendes, Olga Becker e Dora Hees eram jovens pesquisadoras do IBGE quando conheceram Chico Mendes. Elas integravam uma equipe, coordenada por Olga, que estudava os impactos do asfaltamento da rodovia entre Porto Velho e Rio Branco, a BR-364.
“Olga teve a percepção de que era importante entrarmos em contato com os seringueiros no Acre, após ter lido no jornal que haveria um encontro em Assis Brasil, perto da fronteira com a Bolívia”, explica Dora, sentada em um sofá de hotel em Rio Branco, após mais de 30 anos sem voltar ao Acre.
Com dificuldade de acesso ao local, a equipe de Olga conseguiu chegar por meio de um avião do IBGE. Era 1986. Dora diz que se emocionou ao ver mais de 100 seringueiros reunidos para discutir seus problemas, apesar da dificuldade de comunicação que existiam naquele momento.
“A gente chegou aqui como técnicos, mas saímos como estudantes porque aprendemos com a sabedoria dos povos da floresta, dos seringueiros, castanheiros, indígenas e ribeirinhos”, disse Olga Becker.
Foi nesse encontro com Chico que surge o que Olga e Dora, e posteriormente sua vizinha Rosa Roldan, chamaram informalmente de Comitê de Apoio aos Povos da Floresta. Não era algo formalizado, tampouco chegou a ir para o papel.
Era o apoio oferecido pelas três mulheres para Chico e demais companheiros que precisavam de acolhida, pouso e comida na cidade do Rio de Janeiro, onde elas moravam, quando muitas vezes estavam sendo perseguidos ou sob ameaça de morte.
Dona Nice, do CNS (Foto: Camila Araujo/Cobertura Colaborativa)
Presente no evento, a líder quilombola de Enseada da Mata, do Maranhão, Maria Nice Machado Costa, conhecida por Dona Nice, cresceu tendo Chico Mendes como referência na luta por autonomia dos povos e hoje defende a importância de manter a Reserva Chico Mendes de pé, por ser central na defesa de todas as Resex do país.
Precursora entre as unidades de conservação, a Resex Chico Mendes foi considerada a área protegida mais ameaçada e pressionada pelo desmatamento entre agosto de 2022 a julho de 2023, segundo dados do Imazon.
Ela destaca ainda o papel da juventude para trazer autonomia às comunidades tradicionais. “Quem vai ficar no nosso lugar são os jovens e se antes não tinham pessoas de dentro dos territórios para assessorar está luta, hoje temos nossos juízes, advogados, professores e médicos”, diz dona Nice, que é secretária de mulher do CNS.
Para Severiá Idioriê, professora indígena do povo Carajá, que participou das mobilizações pela união dos povos da floresta, é preciso tomar cuidado para não “achar que um salvador da pátria tem que fazer alguma coisa por nós”.
“Nós não podemos ficar acomodados e depender de uma única pessoa. Chico era a figura que articulava, mas é preciso lembrar que havia outras pessoas importantes atuando com ele também”, destaca.
Presidente do Comitê Chico Mendes, que organiza o evento anual, Angela Mendes diz que “a memória de Chico alimenta nossas ideias de um futuro melhor com justiça socioambiental e para todes”.
Em frente ao túmulo de seu pai, na cidade de Xapuri, a filha do seringueiro lamenta que a população do município não se envolva com a luta. “Para mim é triste que a população da cidade não entenda e não se entenda dentro desta história”.
Apesar disso, a socioambientalista diz que o Comitê segue em frente por entender que há tantas pessoas comprometidas na defesa da causa dos povos da floresta. “Devemos seguir sempre nessa nossa determinação de sermos subversivos para lutar contra o sistema, a opressão e contra todos aqueles que nos querem violentados e mortos.”
Ângela Mendes se emociona durante a caminhada até o túmulo de Chico Mendes (Foto: Cobertura Colaborativa)
*A jornalista Camila Araujo contribuiu com a Cobertura Colaborativa da Semana Chico Mendes 35 anos – Empate de Retomada.
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Empate de Xapuri é retomado pela juventude da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU