Insights do 1º programa de educação intercultural bilíngue da Guiana

Crianças na sala de aula da escola de Educação Intercultural Bilíngue da Guiana. (Foto: Acervo dos autores)

03 Novembro 2023

"A lição mais importante aprendida é que os professores e o ensino reflexivo são vitais para qualquer iniciativa educacional. (...) Em essência, a educação intercultural bilíngue responde à necessidade de práticas educativas inclusivas e culturalmente relevantes que atendam a diversas origens linguísticas e culturais".

O artigo é de Mureen Aguiar, padre Joel ThompsonMedino Felician Abraham.

Mureen Aguilar é diretora da creche Maruranau, escola piloto do programa Educação Bilíngue de Qualidade (QBEP). Ela tem 25 anos de experiência docente em nível infantil e é formada em Educação pela Universidade da Guiana.

Joel Thompson é padre jesuíta guianense, vive na Paróquia Aishalton, localizada no sul de Rupununi, interior da Guiana. Atua como pároco assistente de 14 comunidades indígenas e como líder da equipe da Organização de Educação Bilíngue Intercultural. É mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science, pós-graduado em Teologia e Filosofia e formado em Engenharia Elétrica.

Medino Felician Abraham é irmão jesuíta, vive na Paróquia Aishalton. Desenvolve trabalhos socioeducativo e pastorais com o povo Wapichan. É formado em Pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e mestre em Sociedade e Fronteiras pela Universidade Federal de Roraima – UFRR.

Eis o artigo.

Na Guiana existem nove grupos diferentes de povos indígenas que compõem a nação e habitam no interior do país. Esta população indígena soma 80 mil habitantes. este número representa 10% da população. De nove grupos, um total de oito ainda mantêm suas línguas e costumes. Somente o grupo Arawak se encontra em via de extinção. Desses oito grupos, existe um povo que tomou a iniciativa de preservar sua língua ao longo dos anos, com a ajuda dos jesuítas e do Ministério de Educação.

"É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”, diz um provérbio frequentemente atribuído a Confúcio. Nesta coluna, em vez de lamentar as conhecidas deficiências da educação no interior do país, oferecemos alguns insights úteis de uma pequena iniciativa bilíngue intercultural que envolve a comunidade dos alunos indígenas no Rupununi, região sul guianense, conhecida como Programa de Educação Bilíngue de Qualidade (QBEP). O QBEP comemorou em setembro de 2023 o seu 5º aniversário e é um esforço colaborativo entre o Ministério da Educação, as comunidades Wapichan do Rupununi Sul e os jesuítas que atendem as comunidades há mais de 100 anos.

Surgimento

Retomando os esforços anteriores do povo Wapichan para revitalizar a sua língua e promover a alfabetização, estes estabeleceram as bases para o desenvolvimento do atual programa educativo no Sul de Rupununi. Entre 2009-2011, os jesuítas que atuam com os indígenas no Rupununi facilitaram reflexões em nível de base para identificar as necessidades das comunidades. A partir destas reuniões, o desejo de uma educação de qualidade e culturalmente relevante surgiu como uma prioridade devido ao fraco desempenho acadêmico sustentado das crianças (particularmente no 6º ano) e à lenta perda de línguas e culturas indígenas em algumas comunidades. Estas reflexões de base faziam parte do que Paulo Freire chamou de conscientização, ou seja, desenvolver uma consciência crítica do próprio contexto educativo através da reflexão e da ação.

Uma pergunta crítica que surgiu do processo de reflexão foi: “O que é uma educação de qualidade para as comunidades indígenas?” As comunidades queriam que os seus filhos se orgulhassem da sua herança cultural e linguística e que usassem o seu conhecimento para dar sentido às suas vidas e ao mundo que os rodeia. Eles também queriam que seus filhos se destacassem academicamente e tivessem orgulho em sua identidade indígena.

Educação intercultural bilíngue

A ideia de desenvolver uma educação intercultural bilíngue (EIB) na região do sul de Rupununi foi proposta depois de conhecer as iniciativas de EIB na América Latina, que, como a Guiana, tem comunidades indígenas trabalhando para afirmar sua identidade cultural.

A educação bilíngue para povos indígenas foi introduzida pela primeira vez na década de 1930 por professores que trabalhavam no Equador, México e Peru. Foi inicialmente vista como um instrumento de assimilação, e a maioria dos governos latino-americanos implementaram estratégias de transição precoce para que as crianças indígenas pudessem fazer a transição para a língua dominante mais rapidamente.

Contudo, à medida que os povos indígenas começaram a contestar mais vigorosamente os programas de assimilação no fim da década de 1970 e no início da década de 1980, ocorreu uma mudança de programas de transição para modelos de manutenção e desenvolvimento. Isto marcou uma mudança de políticas de cima para baixo sobre a educação indígena para abordagens mais populares, o que levou à participação ativa de grupos indígenas na direção, concepção e avaliação de programas linguísticos.

Mapa com a localização das escolas nas comunidades Indígenas no sul do Rupununi, Guiana. (Imagem: Divulgação)

Essas propostas educacionais incorporaram línguas e culturas indígenas ao currículo. Isso permitiu que os alunos aprendessem usando sua língua materna e, ao mesmo tempo, adquirissem proficiência na língua nacional designada (por exemplo, espanhol). Estes programas iniciais de IBE procuraram responder às disparidades educacionais que as comunidades indígenas enfrentam e promover a preservação cultural e a identidade. Apesar do debate contínuo sobre estes programas, rapidamente foram reconhecidos como uma solução para os problemas gêmeos da preservação cultural e do fraco desempenho acadêmico.

A Educação Bilíngue Intercultural não se concentra apenas na língua, mas coloca uma ênfase igual ou maior nas práticas culturais, conhecimentos e cosmovisão dos povos indígenas. Esses aspectos não estão incluídos na entrega e na concepção do currículo. Isto afasta-se dos modelos de educação bilíngue mais antigos, que viam as línguas indígenas como uma forma de melhorar a alfabetização na língua nacional e não como tendo valor em si mesmas.

O QBEP enfatiza a importância da língua materna das crianças (Wapichan no Sul Rupununi). Não o vê como um mero veículo para a aquisição do inglês. Começar na língua materna é consistente com a regra de ouro da educação, de passar do conhecido ao desconhecido. O QBEP acredita que, de acordo com essa regra, as crianças serão mais capazes de compreender conceitos, valorizar a sua própria cultura e língua, aumentar a autoconfiança e a autoestima e desenvolver o amor pela escola se a sua língua materna for usada tanto em escola e em casa. Trata-se uma educação com dignidade.

Uma abordagem intercultural incentiva os alunos a abraçar e compartilhar sua herança cultural enquanto apreciam, aprendem e respeitam as culturas dos outros. Dado o contexto multicultural da Guiana, é necessária uma abordagem à aprendizagem intercultural para todos, indígenas ou não. Ao longo da história, presume-se que os povos indígenas tiveram que aprender com os não indígenas, enquanto o contrário raramente acontece. Durante o processo de conscientização no Rupununi, muitas comunidades indígenas reconheceram que possuem um conhecimento profundo que pode ser compartilhado com o mundo, especialmente em ecologia.

Educação intercultural bilíngue no sul de Rupununi, região fronteiriça com Brasil

Em julho de 2018, foi assinado um Memorando de Entendimento entre o Ministério da Educação (MoE) e a Organização de Educação Bilíngue Intercultural (IBEO) para permitir um projeto piloto de dois anos do programa em creches em Maruranau, Sawariwau e Karaudarnau. Apesar das dificuldades causadas pela pandemia, o programa continuou e, devido ao feedback positivo, o Ministério da Educação decidiu expandir o programa para outras escolas infantis de South Rupununi em breve. O QBEP ingressa no nível primário no 1º ano este mês e espera ingressar no 2º ano em 2024. Quais foram os principais insights e sucessos do programa? Elaboramos três abaixo.

Participação da comunidade

A primeira percepção foi reconhecer a importância de envolver as comunidades indígenas na direção, concepção, implementação, produção de materiais e avaliação do processo educativo e curricular. As comunidades devem participar de todos os aspectos do programa para que este seja um movimento genuinamente popular. A participação significativa é essencial para garantir que o conteúdo do currículo e dos materiais didáticos seja relevante para as comunidades.

A comunidade indígena reconhece que uma parte essencial do processo educativo que faltava era o seu envolvimento. Eles sentiram que o seu conhecimento e sabedoria fortaleceriam a identidade indígena dos seus filhos e os conectariam mais estreitamente a eles. As comunidades também reconheceram que o modelo de educação que lhes era apresentado precisava ser desafiado, o que Paulo Freire chamou de modelo “educação bancária”.

Crianças do lado de fora da sala de aula, vestidas com seus uniformes. (Foto: Acervo do autores)

Neste modelo educacional, a educação passa a ser um ato de depósito de conhecimento, sendo os alunos os depositários enquanto o professor é o único depositante. Como única fonte de conhecimento, o professor faz depósitos e os alunos recebem, memorizam e repetem pacientemente o que é ensinado. Este modelo contrasta com as formas indígenas de transmissão de conhecimento, que tendem a ser comunitárias e baseadas na investigação. Assim, por exemplo, as crianças aprendem a cultivar e a fazer pão de mandioca, não lhes sendo dito o que fazer, mas sendo levadas para a roça e imersas na atividade desde pequena.

Através do programa, os pais envolveram-se mais na educação dos seus filhos e ajudam os professores na criação de materiais didáticos para a sala de aula. Esse maior envolvimento fomentou o amor pela escola e pela leitura nos alunos. Os membros da comunidade trazem materiais como sementes, cestos de ité e peles de animais do seu ambiente local para os professores usarem como materiais de aprendizagem. Os avós também foram convidados para a sala de aula para compartilhar seus conhecimentos tradicionais. Histórias, músicas, materiais didáticos e ilustrações para o programa são todos feitos por equipes das três comunidades. A participação dos pais e da comunidade nas iniciativas da IBE promove a solidariedade intergeracional e fortalece a comunidade.

Aprendizagem baseada na investigação

A segunda ideia é que a pedagogia é tão essencial quanto um currículo culturalmente relevante. Não é apenas o que é apresentado, mas como é apresentado. O entusiasmo, a capacidade reflexiva e a confiança das crianças aumentam quando é utilizada uma abordagem baseada na investigação. A aprendizagem baseada na investigação coloca a criança, e não o professor, no centro do processo de aprendizagem.

Reconhece que as crianças já possuem bastante conhecimento e observam o mundo desde o nascimento. A abordagem os incentiva a explorar o mundo sendo questionados e fazendo perguntas sobre as coisas que observam. Os professores do programa reconheceram que uma abordagem baseada na investigação, combinada com a utilização da língua materna da criança, provoca mais interação e participação nas crianças. Por exemplo, caminhar ao ar livre para identificar as cores da natureza, principalmente das frutas, é muito mais emocionante e delicioso do que identificar as cores na sala de aula.

Ensino reflexivo

Finalmente, a lição mais importante aprendida é que os professores e o ensino reflexivo são vitais para qualquer iniciativa educacional. O nível de confiança dos professores na pedagogia, na cultura e em falar uma língua indígena ajuda os alunos a avançar. O programa viu o benefício de criar um espaço onde os professores podem refletir regularmente sobre a sua experiência como facilitadores da EIB. Refletir sobre as atitudes em relação ao ensino, ao ambiente doméstico e de aprendizagem e à prática em sala de aula cria confiança e relacionamento entre os professores. O processo de reflexão do QBEP permite que os professores considerem o contexto mais amplo fora da sala de aula e como isso afeta a aprendizagem. Fatores como se as crianças têm ou não acesso a livros em casa e se estão bem alimentadas ajudam os professores a planejar as suas aulas.

Em essência, a educação intercultural bilíngue responde à necessidade de práticas educativas inclusivas e culturalmente relevantes que atendam a diversas origens linguísticas e culturais. Ela fornece aos alunos uma base sólida em sua língua e cultura nativas, ao mesmo tempo que os equipa com as habilidades para interagir e prosperar em suas comunidades e na sociedade em geral.

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