23 Setembro 2023
"A Igreja de Jesus tenta, como pode, viver uma liberdade linguística que inclua uma responsabilidade a ser sempre reinventada. É claro que mesmo estas, em si, são apenas palavras. Mas é exatamente sobre elas que estamos discutindo", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Riforma, 22-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jesus, até onde sabemos pelo Novo Testamento e pelas pesquisas críticas, utilizou a linguagem de uma forma extremamente criativa: isso pode ser afirmado apesar das fontes, que são na maioria gregas e reelaboradas pela igreja primitiva, não nos permitam acessar às suas palavras na língua (aramaica), nem na forma em que foram originalmente proferidas. Os dados verificáveis, no entanto, permitem-nos considerar que, apesar de não ter recebido uma formação regular como doutor da lei, sabia transitar com facilidade por uma multiplicidade de gêneros: da discussão sobre a Torá à máxima de sabedoria, da exortação moral ao registro profético. A sua “especialidade”, porém, eram as parábolas: breves contos geralmente retirados da vida cotidiana, que falavam de Deus com uma eficácia muito específica, não afirmando doutrinas concluídas, mas sim mobilizando a capacidade interpretativa de quem ouvia. Para os contemporâneos, exatamente como para as gerações sucessivas, era e é impossível compreender as palavras de Jesus sem inseri-las na sua ação: não apenas a alternativa entre dizer e fazer lhe é completamente estranha, mas também os dois elementos vivem num entrelaçamento originário, que ajuda a constituir a identidade profunda da pessoa do pregador galileu.
O uso da linguagem, e das linguagens, inclusive as do corpo, é uma das dimensões da liberdade de Jesus. A relação com a ação, além disso, mostra bem que essa liberdade gera consequências de amplo alcance, com as quais tanto o próprio Jesus como as pessoas que, de diversas formas, o encontram, devem acertar as contas.
Em outras palavras, não particularmente originais, mas creio inevitáveis, a liberdade de Jesus gera responsabilidade. A linguagem humana não é onipotente, mas tem seu próprio poder que pode ser libertador, mas também venenoso. Um aprofundamento mais específico, que aqui não é viável, deveria considerar o uso metafórico do termo “Palavra” para indicar a relação do Nazareno com o Pai.
A igreja cristã, e de modo muito particular aquela da Reforma, é, portanto, chamada pelo seu Senhor a uma relação intensa com as palavras, expressa segundo as coordenadas que indicamos.
A igreja recebe como dom uma liberdade radical nas suas próprias linguagens. Não consiste apenas na retomada do amplo espectro comunicativo próprio de Jesus, que em todo caso constitui em si uma tarefa fascinante e exigente (quem já tentou sabe que não é tão simples, por exemplo, inventar boas parábolas), mas está autorizado a experimentar também formas de comunicação características das culturas nas quais a fé está encarnada. A preconceituosa advertência para “não exagerar” com a liberdade deve ser rejeitada: a liberdade, incluindo a liberdade linguística, nunca é demais, no máximo, pode ser pervertida. Liberdade não pervertida é aquela responsável. Aqui a discussão se torna delicada e também muito ampla. Eu posso apenas me limitar a algumas sugestões, relativas a um código de linguagem comum: aquele do politicamente correto.
O recente livro do general Roberto Vannacci constitui uma defesa, indireta e involuntária, mas muito eficaz, das razões do “politicamente correto”.
As tutelas que tal código oferece vão muito além das boas maneiras (o que é de qualquer forma sempre melhor que o seu oposto) e dizem respeito à vida das pessoas: a violência linguística autoriza e, em muitos casos, produz, mesmo diretamente, aquela física e socialmente organizada. O politicamente correto ajuda a entender porque e em que sentido o “Vannacciano” corresponde para o italiano ao mesmo que a pornografia para a sexualidade. Por essa razão, lutar contra a liberação, por exemplo, jornalística e, pior ainda, institucional (as redes sociais, ao contrário, são praticamente incontroláveis), de uma linguagem embrutecida constitui uma tarefa civil de primordial relevância.
Por outro lado, o politicamente correto, e mais ainda o culto, por vezes bastante servil, do qual pode ser objeto, não é isento de ambiguidade. É possível acreditar ou fazer acreditar que ele, por si só, seja suficiente para promover a mudança; ou codificá-lo autoritariamente em uma determinada forma, para culpabilizar os réprobos que não se adaptam a ele com o devido zelo: cada regime tem o seu próprio politicamente correto.
A Igreja de Jesus tenta, como pode, viver uma liberdade linguística que inclua uma responsabilidade a ser sempre reinventada. É claro que mesmo estas, em si, são apenas palavras. Mas é exatamente sobre elas que estamos discutindo.
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A palavra humana: bênção e ambiguidade. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU