22 Agosto 2023
Ela fez tudo antes do seu tempo. Protestou contra a guerra (a Primeira, aquela mundial); foi para a faculdade e trabalhou como repórter quando às mulheres - estadunidenses - mal era permitido aprender a ler e escrever. Levou uma juventude boêmia, viveu em fétidos apartamentos, amou, abortou, abraçou doutrinas socialistas e marxistas, conheceu Trotsky, John Fitzgerald Kennedy, Diego Rivera, foi presa várias vezes. Depois se converteu ao catolicismo. E continuou lutando. Pela justiça social, pela paz, pelos direitos, pelos mais fracos. Até pelo meio ambiente. Incômoda e coerente até o fim, Dorothy Day (1897-1980). E agora que se passaram mais de quarenta anos de sua morte e exatamente noventa desde que fundou o movimento “The Catholic Worker” [o trabalhador católico], agora que a sua causa de beatificação chegou ao Vaticano e que o século XXI se alinhou com sua extraordinária modernidade, ler sua primeira autobiografia, com o prefácio inédito escrito pelo Papa Francisco, significa reencontrar mais uma vez a santidade no radicalismo.
A reportagem é de Annachiara Sacchi, publicada por La Lettura, 02-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A jornada juvenil de uma rebelde. Está escrita na forma de carta para seu irmão mais novo (John) Ho trovato Dio attraverso i suoi poveri. Dall’ateismo alla fede: il mio cammino interiore ("Encontrei Deus por meio dos seus pobres. Do ateísmo à fé: minha jornada interior", em tradução livre). Dirigindo-se a um “tu” sempre anônimo, a autora fala (também) a ex-companheiros de esquerda, explica o motivo de sua virada católica, vista como uma traição à causa radical. “Tentarei traçar para ti os passos que percorri até aceitar aquela fé que, acredito, sempre esteve no meu coração”. Aqui estão eles.
Ho trovato Dio attraverso i suoi poveri. Dall’ateismo alla fede: il mio cammino interiore, Dorothy Day (Libreria Editrice Vaticana, 2023). Foto: Vatican Media
Dorothy Day nasceu no Brooklyn em 08-11-1897. Pai jornalista esportivo de origem escocesa-irlandesa, de religião mornamente protestante. A garota, leiga, estuda, é brilhante, em 1914 entra na Universidade de Illinois, a liberdade a “inebria”, admite, ela se inscreve no Partido Socialista.
Depois de dois anos sai da universidade e volta para Nova York (fica pouco tempo na casa dos pais, não se dá bem com o pai), procura emprego como repórter, anda pelas ruas de Lower Manhattan, frequenta os bairros dos italianos e dos judeus, escreve para o jornal socialista “The Call”. Experimenta de tudo: a pobreza, as pancadas dos policiais, a fome, a vida noturna. Seu espírito de luta a leva a desfilar em frente à Casa Branca com as sufragistas. Aqui é presa, começa dez dias de greve de fome.
Alma inquieta. Quando a guerra começa, Dorothy passa um ano como enfermeira voluntária no King's County Hospital, onde conhece o carismático Lionel Calhoum Moise. Ela se apaixona e, aos vinte e um anos, fica grávida. Renuncia à criança, mesmo que não haja aceno sobre o aborto no livro.
“Ela nunca quis falar sobre isso, sentia o estigma em torno do assunto”, explica Robert Ellsberg, editor do livro publicado pela Lev, bem como chefe da editora católica Orbis Books e editor dos diários e cartas de Day. “Dorothy”, conta ele, “mudou minha vida”. A partir de 1975, quando, como estudante em Harvard, Ellsberg teve uma experiência profissional no “The Catholic Worker”, o jornal fundado por Dorothy (antes, aos treze anos, Robert fotocopiou com seu pai Daniel os Pentagon Papers, os documentos ultrassecretos que revelaram as estratégias do governo dos EUA a respeito da guerra do Vietnã e que o pai Daniel, falecido em 16 de junho último, passou para os meios de comunicação americanos).
"Logo", conta Ellsberg, "virei editor-chefe do periódico, Dorothy me fez sentir em casa. Trabalhei com ela nos últimos cinco anos de sua vida. Ela era idosa, mas como sempre apaixonada e lúcida. Exortava-nos a ser livres, a levar adiante os nossos ideais sem pedir permissão de ninguém". Como ela tinha feito. Especialmente em seu caminho para Deus. Durante toda a minha vida, escreve Day: “tenho sido atormentada por Deus” e pela sensação “que a existência deve conter uma dimensão mais profunda e espiritual”. Compreende isso nos períodos difíceis – nesse ínterim tentou o suicídio, casou-se, esteve um ano na Europa, terminou com o marido, foi presa novamente, mudou-se com a irmã para Nova Orleans para depois chegar em 1925, apaixonada por Forster Batterham (no livro é Fred, a autora usa muitas vezes pseudônimos), em Staten Island – mas especialmente naqueles serenos.
Day escreve: “Encontrei Deus através da alegria e do agradecimento, não através da dor”. Pelo contrário. “Melhor dizer que eu o encontrei através dos seus pobres e num momento de alegria recorri a ele”. E a felicidade para Dorothy chega quando nasce sua filha, Tamar: tornar-se mãe a leva ao ato de fé. E a separar-se do pai da menina: “É impossível falar-lhe de religião. Um muro divide-nos imediatamente”. A separação é inevitável, ele não quer se casar com ela. Dorothy fica sozinha com a filha e a batiza. Em 28-12-1927, ela também é acolhida na Igreja Católica. Pelo resto dos seus dias dedica-se à causa da justiça social, iluminada pela fé.
“A vida de Dorothy Day, como ela mesma conta nestas páginas, é uma das possíveis confirmações daquilo que o Papa Bento XVI já defendeu com vigor e que eu mesmo recordei em várias ocasiões: ‘A Igreja cresce por atração, não por proselitismo’”, observa o Papa Francisco na parte inicial de seu prefácio. Uma atração, a de Dorothy pela Igreja, constelada de encontros e revelações, mas também de experiências no movimento radical. "Ao tornar-se católica", acrescenta Robert Ellsberg, "Day não vira as costas a tudo o que havia de bom e nobre nesses princípios: o espírito de solidariedade, o respeito pelos pobres e oprimidos, a estima pela dignidade do trabalho, a disponibilidade de sofrer por uma causa, o espírito do idealismo e a capacidade da indignação. À luz dos Evangelhos, esses aspectos encontravam uma referência mais ampla". Esse percurso espiritual é confirmado por uma célebre frase da própria Dorothy: “Eu disse, às vezes levianamente, que a massa complacente dos burgueses cristãos que negavam Cristo nos seus pobres me levou para o comunismo e que foram os comunistas e os que trabalhavam com eles que me fizeram buscar Deus”.
A autobiografia Ho trovato Dio attraverso i suoi poveri (publicada em 1938) é uma espécie de premissa à seguinte, de 1952, Uma longa solidão. "Mas esse primeiro rascunho dedicado à conversão", analisa Ellsberg, "tem algo de muito poderoso e genuíno". Lança as bases para as batalhas subsequentes de Dorothy: em 01-05-1933, ela funda com Peter Maurin o “Catholic Worker”, o movimento dedicado ao acolhimento dos pobres e sem-teto. The Catholic Worker também é o periódico de referência para o subproletariado católico estadunidense. Daquelas páginas repercutem as batalhas de Dorothy (“Sinto saudades dela todos os dias”, admite Ellsberg): contra a bomba atômica, a Guerra Fria e a do Vietnam, o racismo, todas as formas de violência. As manifestações e orações continuam. A última prisão de Dorothy foi em 1973, quando participa na Califórnia dos piquetes da greve dos trabalhadores agrícolas mexicanos. Uma grande multidão comparece ao seu funeral.
Declarada “Serva de Deus” em 2000, mencionada em 2015 pelo Papa Francisco entre os pilares da identidade estadunidense em seu discurso ao Congresso dos EUA, para Dorothy Day a causa de beatificação está em andamento em Roma. Ellsberg tem certeza: “Ela se tornará uma santa. Lutou contra a miséria, as discriminações, a poluição. Caminhava na direção que a Igreja está caminhando agora. Os tempos finalmente, coincidem”.
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A socialista de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU