02 Agosto 2023
“Fiz o sinal da cruz com a relíquia no peito do filho que verdadeira e ingenuamente julguei estar morto pela palidez do rosto e pela frieza dos membros. Mas assim que acabei, posso dizer que a criança ressuscitou e voltou da morte para a vida, porque logo de imediato deu um grito e começou a chorar um pouquinho". Era uma manhã de janeiro de 1624, Frei João de Messina testemunhou no processo de beatificação e jurou que sim, bastou-lhe colocar aquele pedaço do hábito de Frei Benedito no menino de três anos que acabara de falecer e todos ao redor começaram a chorar e gritar que havia acontecido um milagre.
A reportagem é de Gian Antonio Stella, publicada por Corriere della Sera, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como duvidar? Foram 223, conta a historiadora Giovanna Fiume, autora do livro Il Santo Moro: o processi di canonizzazione di Benedetto da Palermo (O Santo Mouro: os processos de canonização de Benedito de Palermo, em tradução livre, editado por Franco Angeli), os homens e mulheres, entre os quais dez médicos, trinta e nove frades, doze terciárias e doze padres que correram para dar testemunho perante a comissão eclesiástica sobre as assombrosas virtudes daquele que o povo de Palermo já havia feito “santo súbito”. E foram catalogados 90 casos de pessoas agraciadas com milagres para 44 tipos de doenças: “13 casos de paralisia dos membros, 10 de mortos ressuscitados, 9 de hérnia, 7 de hidropisia, 7 de cegueira, 6 de fístulas e postema, 6 de complicações do parto, 5 de escrófula...” E assim por diante.
Livro de Giovanna Fiume, "Il Santo Moro". (Foto: Divulgação)
No entanto, foram precisos mais de dois séculos, desde sua morte em 1589 até 1807, para o frade siciliano, beatificado em 1743, fosse oficialmente dotado com bula papal da auréola já há tempo colocada em todas as imagens iconográficas. A começar por aqueles na América do Sul onde El Santo Negro está desde sempre entre os santos católicos mais populares e amados. A ponto de a notícia do incêndio que recentemente devastou a igreja em Palermo que abrigava as relíquias do santo, ou seja, o convento de Santa Maria di Gesù, nas encostas do Monte Grifone em que se encontra o famoso Cipreste de São Benedito, um dos mais antigos da Itália e que sobreviveu às chamas, tocou o coração de milhões de fiéis de meio mundo, de Cuba às Filipinas.
Mas vamos começar do início. Nascido em 1524 em San Fratello, nas montanhas Nebrodi, na província de Messina, Benedito era filho de dois dos muitos escravos africanos que foram parar na Sicília na época do “tráfico” que no Mediterrâneo envolveu, segundo o historiador Robert Davis, mais de um milhão de pessoas no total, em uma e na outra margem. O Padre Cristofalo "criador de vacas e homem de bem" pertencia à família Manasseri, sua mãe Diana à família Larcan e, segundo a "história local" elaborada aos poucos por hagiógrafos como Antonino Randazzo, eram “descendentes da Etiópia” mas “embora fossem negros, eram bem nutridos e eram bons cristãos e tementes a Deus”. A ponto de o rapaz, aos vinte anos, conhecendo casualmente um eremita franciscano “já com fama de santidade”, Geronimo Lanza, escolheu deixar tudo e segui-lo em várias peregrinações até vestir o hábito e tornar-se terciário (aqueles que "estão no mundo") justamente no convento de Santa Maria di Gesù.
Onde, apesar de ter tarefas humildes como de cozinheiro, ele evidentemente ganhou entre os mais humildes a fama de homem de grande fé em contato direto com “lá em cima”, a ponto de exercer ao redor um fascínio impensável. Ainda mais, na época, para um negro descrito, por cândida pureza religiosa, com palavras entusiasmadas: "Nosso santo negro é branco em Deus."
O certo é que com sua fama de santidade o frade conquista Palermo a ponto de, escreve Giovanna Fiume, “já em 1608 as suas imagens são vendidas na cidade e em 1611 a Inquisição autoriza seus retratos ‘com esplendores na cabeça’ até que em 1562 o senado de Palermo ‘decidiu incluir o frade, ainda não canonizado, entre os santos padroeiros da cidade’ e pede ao Papa que volte a acelerar o processo de beatificação”. E da Sicília espanhola o nome do “santo escravo e negro” irradia-se e se espalha por todo o mundo colonial católico, especialmente espanhol e português. Até ganhar para o “poverello” de origem africana, como recordou Vincenzo Consolo no Corriere, uma série de definições: “El negro más prodigioso” e “Mouro Etíope, Lírio Negro, Flor Exótica, Idiota erudito, Ignorante sábio, Negrillo precioso, Varon insigne, Prodigioso Negro de los Cielos…”.
Não só, é preciso dizer, pela estatura do homem de fé. Mas porque, explica a historiadora, era o exemplo de virtude perfeito para apontar a todos os escravos, os negros, os servos dos senhores: “O exemplo de um escravo obediente, piedoso, trabalhador e sempre sorridente” na certeza de que, por mais que o mundo seja cruel e a escravidão terrível, toda injustiça, toda prepotência, todo abuso será de qualquer maneira compensado pelo Paraíso conquistado na "estrada dos padecimentos". E tanto dá certo essa ideia no mundo colonial que a certo ponto em 1716, diante das perplexidades de uma parte da Igreja que não vê com bons olhos a veneração de São Benedito e junto com alguns resquícios de antigos cultos africanos, padre Alessio della Solitudine desconfia dos perplexos: “A veneração dos Etíopes Cristãos é do mais alto grau (...) por ser este santo de sua Nação e reconhecer que eles também podem ser santos: os pais colocam o nome de Benedito em seus filhos para melhor estimulá-los à devoção" e se esta fosse abolida, os negros assumiriam que "a proibição fora promovida por vergonha e desprezo dos mesmos, pela cor negra, ou ainda acreditariam que ninguém da nação negra poderia alcançar o grau de santo".
Uma tese que por insistência, ainda que décadas depois, vingou. E ainda hoje São Benedito, para os ibéricos San Benito, é venerado não só em Buenos Aires onde fica justamente o município que leva o nome da Abadia San Benito de Palermo (o bairro onde viveu Jorge Borges), mas em toda a América do Sul, desde o Lago Maracaibo na Venezuela até o Nordeste brasileiro, onde São Benedito é também o Santo da libertação, da alegria, da dança.
Fica um pouco para trás, ao contrário, justamente em Palermo. Onde todas as honras populares são reservadas para Santa Rosália. Que tem até duas celebrações festivas. O Festino de Santa Rosália que em meados de julho acaba de celebrar o 399º aniversário do fim da peste de 1624 e a subida (a famosa “Acchianata”) ao Santuário do Monte Pellegrino onde, segundo a lenda, estava localizada a mítica gruta que no século XII teria hospedado a jovem moça em fuga do noivo que o pai lhe arranjara. Um santuário de ouro reluzente. Digno de uma santa branca, virgem e siciliana nomeada após a peste como Primeira Padroeira, deixando de lado as quatro "Santuzze" anteriores (Santa Oliva, Santa Cristina, Santa Ninfa e Santa Ágata), mas acima de tudo São Benedito. Santo sim, mas “poverello”...