20 Mai 2023
Professor, filósofo, escritor, um dos maiores especialistas mundiais em Giordano Bruno, uma eminência no que se refere ao pensamento e literatura no Renascimento... Mas, para além de tudo isso, Nuccio Ordine (Diamante, Calábria, 1958) é um herege.
É alguém que não tem problemas em ir contra a corrente, em dizer enfaticamente que a mentalidade mercantilista e utilitarista que se impõe, há décadas, está destruindo nossas sociedades, que defende com firmeza a utilidade da cultura (muitas vezes, tachada de inútil), que não deixa de proclamar o enorme valor dos clássicos e da educação pública, e que diz diretamente aos seus alunos que não estudem pensando em conseguir um bom emprego, mas que devem se formar naquilo pelo qual sentem paixão.
Por “sua defesa das humanidades e seu compromisso com a educação e os valores enraizados no pensamento europeu mais universal”, Ordine acaba de receber o Prêmio Princesa das Astúrias de Comunicação e Humanidades 2023. Conversamos com ele.
A entrevista é de Irene H. Velasco, publicada por El Confidencial, 14-05-2023. A tradução é do Cepat.
Você sempre defendeu a importância da cultura. O que a cultura nos dá e o que nos falta quando não a temos?
A cultura é o líquido amniótico no qual nossa humanidade pode ser cultivada, onde pode crescer. Sem cultura, há barbárie. Há algumas páginas maravilhosas a esse respeito de Benedetto Croce; existe a preciosa carta que, no Renascimento, o cardeal Bessarion enviou com sua biblioteca de manuscritos gregos e latinos ao Doge de Veneza, em que dizia que sem cultura a humanidade seria um grupo de bárbaros. A cultura é o que nos permite ser humanos.
É por isso que defende com unhas e dentes a importância da educação pública?
Sim. A escola e a universidade, a educação pública, são fundamentais. Por isso, dediquei o prêmio Princesa das Astúrias a todos os professores que, em silêncio, mudam a vida de seus alunos nos lugares mais pobres do mundo.
Para mim, essa é a verdadeira missão da escola e da universidade: oferecer às pessoas que não têm possibilidade de acesso ao saber a oportunidade de estudar, de ser melhores e de dar o salto social, econômico e cultural.
O que não funciona no sistema educacional atual?
O sistema educacional olha cada vez mais para o mercado, e esse é um erro gravíssimo. Os jovens são levados a acreditar que devem estudar para aprender um ofício, uma profissão e, então, poder ganhar a vida. Mas, para mim, isso é uma perversão da educação. Eu considero que o principal objetivo da educação deveria ser oferecer aos jovens um instrumento para serem melhores.
É preciso amar a cultura, não pela recompensa de conseguir um bom salário, mas pela cultura em si, porque a cultura nos permite ser melhores. Por outro lado, está claro que quem for melhor exercerá sua profissão com mais força e, ao mesmo tempo, com maior consciência ética.
Nesse sentido, o discurso que Boris Johnson fez aos estudantes britânicos, há alguns meses, quando ainda era primeiro-ministro, foi realmente terrível, foi absolutamente antieducativo. Ele disse aos jovens que escolhessem disciplinas universitárias que lhes permitissem ganhar dinheiro. E isso significa corromper os jovens. Porque quando alguém escolhe, por exemplo, estudar medicina para ganhar dinheiro, porque essa carreira oferece perspectivas de trabalho, então, exercerá a profissão de médico para ganhar dinheiro.
E o que você diz aos seus estudantes?
Eu sempre digo aos meus alunos que estudem disciplinas que amam, que lhes apaixonam, porque são justamente essas disciplinas que amam que lhes permitirão se realizar na vida, ser felizes e exercer sua profissão com uma forte consciência ética.
Considera que o sistema educacional se prostituiu? Vemos, por exemplo, como proliferam as universidades privadas que custam os olhos da cara e que propagandeiam que seus estudantes terão empregos bem remunerados, quando saírem com um diploma debaixo do braço...
Exato, é isso. Dizer isso para mim é uma gigantesca forma de corrupção. A publicidade de muitas universidades e escolas de negócios é realmente perversa e daninha, dizem aos alunos que, quando se formarem, poderão ganhar 70.000 euros por ano. Para mim, insisto, isso é uma forma terrível de corrupção. Mas, estamos assim.
Em 2018, para avaliar as escolas primárias da Itália, foi realizado um exame com os alunos desse ciclo, com crianças de 7 a 9 anos. A primeira pergunta era: quanto dinheiro você ganhará quando crescer? E a segunda: com esse dinheiro, conseguirá comprar tudo o que deseja?
Eu escrevi um artigo no Corriere della Sera classificando como absolutamente indignas e vergonhosas perguntas assim, em um exame nacional para avaliar as crianças da escola primária. Houve reações de solidariedade, mas eu esperava uma verdadeira avalanche de protestos contra o Governo, e isso não aconteceu.
Eu penso que aqueles que formularam essas perguntas tinham que ter sido demitidos. Mais ainda, tinham que ter sido presos. Essas perguntas eram gravíssimas, essas perguntas corrompiam os estudantes.
E de quem é a culpa de termos chegado a esta situação?
A culpa é do neoliberalismo que faz os jovens acreditarem que a dignidade dos seres humanos se mede pelo dinheiro que ganham. Isso não é verdade, é uma mentira gigantesca. Existem pessoas que ganham pouco dinheiro e têm uma dignidade imensa, e há pessoas que ganham muitíssimo e não têm dignidade.
Por isso, defendo o trabalho dos professores e lhes dediquei o meu prêmio. Porque hoje, em nossa sociedade, o trabalho dos professores não tem mais a dignidade econômica e social que tinha há 40, 50 anos. Eu nasci em um pequeno povoado da Calábria, uma região muito pobre, e lá, 40 anos atrás, um professor era alguém muito respeitado dentro da sociedade. Hoje, no entanto, não é assim.
Por que os professores não gozam de reconhecimento social, hoje?
Porque hoje há desprezo pelo saber, ao passo que antes o saber era respeitado. Pense, por exemplo, no ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ou no ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. São dois ignorantes que sempre exaltaram o dinheiro como a principal forma de dignidade humana e sempre desprezaram a cultura.
Bolsonaro, por exemplo, desprezou os movimentos ambientalistas que lhe diziam que não tinha o direito de cortar as árvores da Amazônia. Ele dizia que essas árvores são do Brasil e que cortá-las era bom economicamente para o país. Mas, cortando essas árvores, Bolsonaro estava cortando o pulmão de todo o planeta.
Caminhamos para o suicídio coletivo, onde a acumulação de dinheiro é vista como um fim, como o objetivo final, e não como um instrumento para viver bem. Trata-se de acumular por acumular. Nesta sociedade completamente dominada pela obsessão pelo dinheiro, a cultura, a literatura, a música, a filosofia e a arte são mais necessárias do que nunca.
Ler um livro, ouvir um concerto de Mozart ou admirar As Meninas de Velázquez não significa perder tempo, ao contrário, significa ganhar tempo. Significa alimentar o nosso espírito, tornar este mundo de hoje mais humano.
Sem cultura, sem uma boa educação pública, somos mais manipuláveis pelos políticos?
Claro. Onde há pessoas que não têm a capacidade de analisar criticamente os fatos, é mais fácil manipulá-las, seja pela internet ou por outras pessoas. As pessoas que são capazes de raciocinar por si mesmas, que não seguem as modas e que têm cultura são pessoas livres.
Quando perguntavam a Aristóteles para que servia a filosofia, ele respondia que a filosofia não servia para nada porque a filosofia não é servil, não está a serviço de ninguém, porque o que a filosofia ensina é a liberdade. Maquiavel dizia que o mundo se divide entre quem sabe e quem não sabe, quem não sabe é escravo de quem sabe. É por isso que é necessário combater a ignorância.
A ignorância é uma fortaleza sem ponte levadiça para sair. Hoje, a classe política é ignorante porque o nível cultural da sociedade caiu, porque as escolas e universidades já não cumprem a função cultural que tinham há 30, 40 anos. Hoje, só precisam produzir em massa soldadinhos de brinquedo a serviço do consumismo, frangos de corte que saem da granja iguais e prontos para o mercado de trabalho.
Como as escolas e as universidades deveriam ser?
As escolas e as universidades deveriam ser laboratórios críticos nos quais, como dizia Kant, os falsos valores dominantes da sociedade são criticados. Ao contrário, a escola e a universidade, hoje, não criticam os valores dominantes, elas os ampliam.
Quando se diz, por exemplo, que não se pode ensinar sem tecnologia e que as lições que um professor dá são obsoletas, está se dizendo uma enorme estupidez, porque a vida de um estudante não pode ser mudada por uma tela, uma plataforma digital ou uma máquina como o ChatGPT, não. A vida de um estudante só pode ser mudada por um bom professor que o transmita paixão e cultura.
Com uma cultura sólida, com uma boa escola pública, talvez não tivesse ocorrido a ascensão dos populismos que, nos últimos anos, estamos vendo?
Estou convencido de que os populismos que dominam as campanhas eleitorais no mundo fomentam o ódio entre os pobres, estimulando aqueles que pagam pelas crises econômicas a se levantar contra outros pobres, os imigrantes. Provavelmente, não veríamos essa disseminação da ignorância populista, se houvesse boas escolas públicas e universidades públicas que formassem cidadãos solidários.
Contudo, a única coisa que se ensina hoje nesses centros é a competição, que é preciso ser o primeiro para poder ganhar dinheiro, que o saber é algo instrumental para ganhar dinheiro, quando os jovens deveriam estudar por amor desinteressado. Essa é uma batalha que os professores que vão contra a corrente continuam travando.
Convido meus colegas professores a se tornarem hereges, a ensinar a heresia nos colégios e universidades, a combater a ideia de que devemos formar consumidores passivos e acríticos. Não, o que devemos fazer é formar jovens capazes de dizer não, capazes de criticar com força os falsos valores desta sociedade.
Você é um dos maiores especialistas mundiais em Giordano Bruno, censurado pela Inquisição e condenado a morrer na fogueira. Hoje, com a chamada cultura do cancelamento, também vivemos tempos obscuros?
Muito obscuros, obscuríssimos. Eu estou muito preocupado. Não sei como é possível entender que a história não pode ser reescrita, que a história não pode ser cancelada. A história pode ser criticada, mas não cancelada.
Tenho medo desses grupos de censores que nasceram nas universidades americanas e que já estão se espalhando também pela Europa. Tenho medo desses grupos de pais que dizem que certas páginas de obras clássicas não podem ser lidas porque ofendem a sensibilidade desta ou daquela pessoa.
Para mim, é uma loucura instituir censores que, como nos tempos da Inquisição, purgam os clássicos, os censuram. Essas pessoas não entendem nada da força revolucionária dos clássicos.
Eu sempre leio para os meus alunos Orlando Furioso, de Ariosto, um texto importantíssimo que foi um dos que inspiraram Dom Quixote de Cervantes. Em Orlando Furioso, há alguns versos, algumas canções, em que há ataques ferozes contra as mulheres. Mas, em outras canções e versos, encontra-se forte apoio à paridade de direitos entre homens e mulheres, algo de uma enorme modernidade.
Censurar a misoginia para não ofender a sensibilidade de alguns leitores é uma estupidez. Ariosto dava conta dos terríveis ataques que as mulheres recebiam e, justamente nesses ataques, é possível ver o erro das críticas ao mundo feminino. Além disso, os versos em que Ariosto elogia as mulheres revertem esses ataques.
É escandaloso que sejam criados índices do que devemos ler e do que não devemos ler. Isso acontecia nos regimes ditatoriais, aconteceu no período da Inquisição, quando a Igreja Católica censurou a leitura dos textos de Galileu, Giordano Bruno, o Decameron de Boccaccio... A cultura do cancelamento me horroriza, vai nos levar a um profundo abismo.
As novas tecnologias nos tornaram mais ignorantes? Na internet, todo o saber do mundo está ao alcance de qualquer pessoa...
Sim, na internet está todo o saber do mundo, é verdade. Mas, só quem sabe pode encontrá-lo, não os que não sabem. A internet é uma mina de ouro para quem tem cultura e conhecimento. Para quem não sabe, é uma mina de fake news e falsidades.
Eu digo aos meus estudantes, como exemplo, que procurem na internet coisas sobre Giordano Bruno, onde há muitas falsidades e asneiras sobre ele. Como alguém que não sabe nada sobre Giordano Bruno pode avaliar se uma página contém informações valiosas sobre Bruno ou apenas bobagens?
Por curiosidade: o que Nuccio Ordine pensa do Papa Francisco?
Gosto muito do que o Papa Francisco está fazendo em defesa da ecologia e, sobretudo, em defesa dos grandes, verdadeiros e essenciais valores que tornam a humanidade mais humana: a solidariedade entre as pessoas, a luta contra a desigualdade, o apoio aos direitos civis e, acima de tudo, suas críticas ao capitalismo predatório.
Hoje, vivemos uma época em que, como dizia Hannah Arendt, perdemos todo o direito a ter direitos. Quarenta anos de neoliberalismo esmagaram completamente todos os direitos que trabalhadores e cidadãos tinham conquistado em anos de luta. Quarenta anos de neoliberalismo esmagaram a rede de hospitais, esmagaram a rede de escolas e universidades públicas. A pandemia nos fez entender que os dois pilares da dignidade humana são exatamente o direito à saúde e, portanto, a uma saúde pública, e o direito ao conhecimento, ao saber, ou seja, a escolas e universidades públicas.
Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, fez um estudo maravilhoso sobre Kerala, que já foi o estado mais pobre da Índia. Contudo, depois dos extraordinários investimentos que foram feitos para financiar a saúde e a educação públicas, Kerala protagonizou um salto econômico extraordinário. Hoje, é o estado com a maior renda per capita de toda a Índia.
Isso nos ensina que dedicar dinheiro às escolas, às universidades e à pesquisa científica não significa jogar esse dinheiro. Significa construir um futuro de desenvolvimento econômico e social.
Chegados a este ponto, o que pode ser feito, o que deveríamos fazer?
Os governos, sem dúvida, deveriam agir. Mas os governos são surdos. O grande Andrea Camilleri, o criador do comissário Montalbano, contava uma anedota maravilhosa. Dizia que havia iniciado um incêndio em uma floresta e todos os animais fugiam. O último a escapar foi o rei dos animais, o leão, que refletia sobre o que poderia fazer para salvar a floresta, mas, como não encontrava resposta, também estava saindo.
Enquanto corria, distanciando-se do incêndio, viu um pequeno beija-flor que voava na direção contrária, rumo ao fogo. “O que está fazendo, maluco? Não vê que a floresta está pegando fogo?”, gritou o leão. “Claro que estou vendo”, respondeu o beija-flor. “É por isso que vou até lá, porque carrego no bico uma gota de orvalho deixarei cair sobre o fogo”. Cada um de nós pode colocar a sua gota para tentar apagar esse incêndio. E se todos agirmos assim, provavelmente as coisas vão mudar.
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“Convido meus colegas professores a se tornarem hereges”. Entrevista com Nuccio Ordine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU