15 Mai 2023
"A política de juros altos do Banco Central tem sido um contrassenso. Pode desestabilizar toda a economia, agravar nossa terrível concentração de renda e desorganizar as contas públicas e privadas. Além de impedir o Brasil de seguir uma trajetória de crescimento acelerado, na trilha do que propõe FF/TMM, pondo em risco a credibilidade do sistema bancário. Contribui também para manter a inflação e o custo de vida altos, na medida em que o custo dos juros para as empresas produtivas desestimula a produção e a oferta de bens e serviços - mais uma vez, de forma concreta, e não subjetiva", escreve José Carlos de Assis, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e ex-professor de Economia Política e Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
Li recentemente um artigo supostamente originário do campo progressista atacando a nomeação de Gabriel Galípolo para a estratégica diretoria de Política Monetária do Banco Central. Segundo o artigo, sua presença ali seria um risco para a estabilidade da economia, porque ele se filia à corrente da Política Monetária Moderna (TMM), uma teoria econômica que se opõe vigorosamente ao neoliberalismo.
O artigo, cujo nome da autora prefiro não citar por causa de sua evidente ignorância em Economia, contém um duplo erro. Primeiro, o próprio Galípolo, infelizmente, negou que segue a TMM. Segundo, caso o novo diretor do BC fosse mesmo um adepto dela, o Brasil teria ao menos uma estreita janela aberta, no Copom de larga maioria neoliberal, para uma política de desenvolvimento econômico sustentável. Seria uma vantagem, não um risco. Mesmo que um voto só não fosse suficiente para mudar a estúpida política de juros altos do Banco Central.
De fato, como tenho sustentado em vários artigos sobre política fiscal-monetária, a TMM – que prefiro chamar de Teoria de Finanças Funcionais, conforme batizada por seu fundador, Abba Lerner –, seria o “mapa do tesouro” para o Brasil escapar do marasmo econômico e dos riscos sociais com que se defronta, e partir para o desenvolvimento sustentável acelerado. Temos todos os recursos para isso. Só nos faltam as decisivas condições político-partidárias. É que o sistema financeiro, a grande mídia, a classe dominante em geral, e a maioria do Congresso odeiam a TMM!
Ajudei a introduzir no Brasil a Teoria de Finanças Funcionais – ou TMM. Fiz isso mediante a tradução do livro de L. Randall Wray, um notável economista norte-americano de vanguarda, com o título de “Understanding Modern Money”. Dei-lhe o nome em português de “Moeda e Trabalho Hoje”, porque oferece provas inequívocas da viabilidade do pleno emprego pela manipulação não inflacionária da moeda.
O livro foi de grande sucesso entre jovens universitários que decidiram dedicar suas carreiras à divulgação das Finanças Funcionais. O nome é ótimo: são as finanças públicas que têm uma função objetiva na economia! Desse movimento finalmente nasceu o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) em 2020. O IFFD tem um site na internet (https://iffdbrasil.org/) e mantém um atualizado debate sobre política econômica brasileira e internacional.
A essência de FF/TMM é mostrar que, depois do fim do padrão ouro, nenhum estado que emite a própria moeda corre o risco de quebrar financeiramente. Claro, pode quebrar lá fora, se não conseguir pagar compromissos em moeda externa. Já dentro do país, se planejar adequadamente os investimentos, compatibilizando o longo com o curto prazo, não há limites efetivos inclusive para o déficit público. A única condição é que haja suficiente disponibilidade de recursos reais internos para sustentar os investimentos e capacidade de pagamento externo (como é o nosso caso).
O risco de inflação, no contexto das finanças funcionais, decorre, pois, fundamentalmente do planejamento do investimento público. Para impedi-la basta estimular a produção a fim de que a demanda monetária de curto prazo não pressione excessivamente a oferta correspondente de bens e serviços. Esse é um ponto essencial a ser compreendido, pois confronta diretamente o entendimento monetarista sobre as causas da inflação, atribuídas exclusivamente à expansão monetária.
Essas relações são objetivas, ou seja, decorrem de fatos observáveis e que podem ser medidos concretamente, como se exige da abordagem que se pretenda científica de qualquer evento. Aí surge mais um ponto de confronto com os economistas de mercado, ou neoliberais, que baseiam suas teorias em verdadeiras apelações subjetivas, fundadas em “expectativas” ditas racionais, impossíveis de serem medidas, e não em fatos reais.
É o caso da credibilidade financeira de um país, isto é, da avaliação de sua capacidade de pagar a dívida pública. A forma objetiva de fazer essa avaliação não é simplesmente observar o tamanho da dívida, mas compará-la com a capacidade de pagamento do Estado, representada pelo Produto Interno Bruto (PIB). O relevante, portanto, é a relação dívida/PIB. Enquanto a dívida estiver crescendo a uma taxa menor que o crescimento do PIB, a capacidade de pagamento estará concretamente garantida.
Entretanto, se a dívida pública (ou privada, como se verá abaixo) estiver crescendo a uma taxa superior ao crescimento do PIB, por conta de uma taxa de juros excessivamente alta, certamente haverá razão objetiva para descrédito na capacidade de o devedor cumprir seus compromissos. Isso só não acontece, na prática, como se viu antes, porque, no caso do Estado, ele não quebra em sua própria moeda. Mas acontece, concretamente, uma piora na já iníqua distribuição da renda nacional, pois são os titulares privados da dívida pública, ricos e privilegiados, que se apropriam dos juros pagos pela rolagem dela.
Os fatos não são diferentes para a dívida privada junto ao sistema bancário. A relação relevante é a mesma: quase 80% das famílias brasileiras estão endividadas; já sua capacidade de pagamento tem caído drasticamente, especialmente nas classes assalariadas e de menor renda. Como as famílias “não emitem” dinheiro, tendem a quebrar; e, quebrando em série, acabarão enfraquecendo financeiramente os bancos. Claro, as empresas estão fora dessa conta. Mas as taxas de juros, para elas, estão igualmente acima do crescimento das receitas, e também tendem a quebrar, como aconteceu com as Lojas Americanas e está acontecendo com outras lojas de varejo, e, agora, com a própria Light, que está tentando pedir concordata.
Em resumo, a política de juros altos do Banco Central tem sido um contrassenso. Pode desestabilizar toda a economia, agravar nossa terrível concentração de renda e desorganizar as contas públicas e privadas. Além de impedir o Brasil de seguir uma trajetória de crescimento acelerado, na trilha do que propõe FF/TMM, pondo em risco a credibilidade do sistema bancário. Contribui também para manter a inflação e o custo de vida altos, na medida em que o custo dos juros para as empresas produtivas desestimula a produção e a oferta de bens e serviços – mais uma vez, de forma concreta, e não subjetiva.
A presença de Galípolo no BC é, pois, desestimulante pela negativa que faz, e não pelo que ele poderia representar caso fosse um adepto de FF/TMM, como acha a articulista que citei no início do artigo. Além disso, como ele é apenas um entre a esmagadora maioria de neoliberais que continuará na direção do banco, será irrelevante sua participação na definição da política monetária, embora venha a ser o titular da cadeira. Roberto Campos Neto continuará com a cínica sabotagem do governo Lula usando o fetiche das chamadas “expectativas racionais” sobre inflação e juros futuros, a base da economia neoliberal, para impor ao país a mais “irracional” das políticas econômicas de nossa história.
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Os racionais irracionais. Artigo de José Carlos de Assis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU