12 Mai 2023
No rastro de cada dor, divisão e raiva em nossas vidas está um memorando ardente: Deus está trabalhando. A Igreja vai ficar bem, e nós também. Estamos exatamente onde precisamos estar.
A opinião é do irmão jesuíta Joe Hoover, SJ, em artigo publicado em America, 08-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há nenhuma guerra civil na Igreja Católica, há apenas o Deus Todo-Poderoso nos peneirando como trigo. Não há nenhum cisma à frente, apenas um ordenamento adequado de nós mesmos nos lugares certos para a salvação das nossas almas. Há apenas a obra árdua e dura de Deus para nos purificar para nos tornarmos os filhos e filhas de Deus que realmente devemos ser.
Tudo o que é difícil, triste e doloroso na Igreja – ou em qualquer lugar das nossas vidas – é apenas uma chance para alinharmos as nossas vontades com a vontade de Deus. É tudo uma oportunidade para reformular a nossa visão dos problemas humanos como meras sementes plantadas na vinha por Deus. Empurrando o solo da angústia humana, algo bom está a caminho. Sempre está.
Em entrevista à revista Slate no início de fevereiro, o jornalista David Gibson fez uma espécie de avaliação do estado da política interna da Igreja, em particular no que se refere ao Papa Francisco e especialmente após a morte do Papa Emérito Bento XVI. “Quando você tem uma Igreja de 2.000 anos, há quase um precedente para tudo”, disse Gibson. “Você volta um milênio e pode encontrar qualquer coisa. Mas esse nível de oposição, esse baixo nível de calúnia, esse nível de manobra e manipulação é realmente extraordinário na história da Igreja Católica. (...) Sempre houve divisões e diferenças, esse tipo de coisa. Mas agora está realmente amplificado.”
E as preocupações que circulam em alguns ambientes em relação a Francisco? Em questões de moral sexual e de recepção da Comunhão, ele é acusado de ser um defensor pouco leal da doutrina e da tradição da Igreja. Alguns acham que ele tirou a autoridade dos bispos e entregou a administração da Igreja a uma espécie de empresa de consultoria conhecida como “sínodo”. Outros veem um traço autoritário em suas restrições à celebração da missa tradicional em latim.
Uma das declarações que parecem cristalizar a crítica em torno de Francisco veio do cardeal George Pell, que, em um memorando divulgado após sua morte, disse: “Este pontificado é um desastre em muitos dos aspectos ou na maioria deles; é uma catástrofe”.
Essa luta interna da Igreja pode ser muito desanimadora. As lideranças em pé de guerra umas contra as outras. Está todo mundo se divertindo no quintal, e, de repente, o mundo parece inseguro! E a tradição, a unidade, e a magnífica barca de Pedro? Parece estar tudo pegando fogo!
* * *
Ou não?
Todo desafio, todo ato destrutivo, todo momento de indignação, na Igreja ou em qualquer lugar, pode ser virado do avesso. Todos eles podem ser reenquadrados como mais uma chance de Deus para nos mostrar que ele é mais misterioso e poderoso do que qualquer coisa que possamos compreender. Deus está trabalhando, Deus está sempre trabalhando.
Talvez eu esteja escrevendo isso principalmente para nós da mídia católica, imersos na política da Igreja, com os olhos sempre voltados para o funcionamento interno do projeto romano. Talvez eu esteja escrevendo isso apenas para mim. Não gosto dos conflitos e não gosto de ver alguém que eu admiro ser atacado, como o papa.
Porém... “Minhas boas almas! Nada falta para vocês”, escreveu certa vez o jesuíta francês Jean-Pierre de Caussade, do século XVIII. “Se vocês soubessem realmente o que são esses eventos que vocês chamam de infortúnios... vocês ficariam profundamente envergonhados e se desculpariam por suas queixas e blasfêmias.”
De fato, as coisas estão tão feias quanto parecem? Realmente existe tanta angústia e divisão dentro da hierarquia da Igreja Católica? Em 2018, eu escrevi que achava que não havia. Em 2023, na sequência do memorando do cardeal Pell, o jornalista John Allen Jr. disse que a maioria dos fiéis comuns não é obcecada pela política eclesial. A maioria dos católicos, eu imagino, não centra suas vidas em todos os debates sobre os quais nós, na mídia católica, derramamos muita tinta (em uma pesquisa de 2021, por exemplo, quando questionados sobre as novas restrições à missa em latim, 65% dos católicos entrevistados disseram que “nem tinham ouvido falar da polêmica”).
Quanto ao Twitter católico, que foi descrito como um show de horrores, apenas 20% dos estadunidenses usam o Twitter, e apenas metade desses usuários consomem 80% do conteúdo. Isso significa que é bem provável que as opiniões dos católicos no Twitter representem uma pequena fatia da população católica em geral. A Igreja estadunidense pode não ser tão raivosa e vituperadora quanto o uso do Twitter pode indicar.
A maioria de nós está simplesmente procurando por sustento espiritual. Queremos homilias melhores. Queremos uma Igreja que olhe para nós e se preocupe conosco.
Seja como for: como jornalistas, pensadores, líderes da mídia católica e da Igreja, o nosso trabalho particular é explorar, defender, pesquisar, examinar e relatar. No entanto, quando colocamos nossos olhos principalmente naquilo que é miserável, pensamos que o mundo é miserável. Nosso projeto maior é manter nossos olhos no prêmio.
E qual é o prêmio aqui? O prêmio é encontrar a vontade de Deus.
Seria fácil se a tão usada frase inaciana “encontrar Deus em todas as coisas” se limitasse a localizar as impressões digitais do divino nas pétalas empoeiradas de uma flor do campo amarela que ondula do lado de fora de uma capela de pedra em uma clareira de uma floresta.
De fato, “encontrar Deus em todas as coisas” pode ser um trabalho árduo e humilhante. E nem mesmo um trabalho árduo a ponto de ser autossatisfatório: ou seja, vestir a armadura da misericórdia de Cristo para um dos condenados à morte, alguém que, embora tenha cometido atos de violência indescritíveis, geralmente reside longe o suficiente a ponto de ser bastante fácil sentir compaixão por ele ou ela.
Não, buscar Deus não é apenas para essas pessoas e lugares. Somos chamados a “encontrar Deus” em todos os lugares. Ter compaixão e compreensão até mesmo pelo bispo que estabelece medidas que restringem as crianças trans de usarem seus pronomes preferidos em uma escola católica. Talvez ele não tenha nada contra os estudantes trans. Talvez ele esteja apenas fazendo o seu melhor. Talvez ele até esteja certo.
Somos chamados a ter um coração interior de misericórdia e paz para com o bispo que restringe a missa em latim nas nossas paróquias.
É aqui que a coisa fica real. É aqui que “alinhar a nossa vontade com a vontade de Deus” chega perto dos nossos ossos: quando se trata de questões teológicas pelas quais temos um interesse profundo e sincero; quando envolve aquelas questões que nos levarão a uma angústia veemente, caso haja qualquer resultado diferente daquele que exigimos de Deus.
Buscar a consolação de Deus em circunstâncias difíceis não significa que estamos correndo para o reino sombrio da “espiritualidade” como uma forma de contornar habilmente os difíceis problemas eclesiais. Ser dócil ao espírito de Deus não é abraçar uma ingenuidade passiva que desejaria afastar toda argumentação política e se resignar à injustiça.
Na verdade, significa praticamente o oposto. É olhar para esses problemas bem nos olhos e, então, ir ao encontro de uma força – a própria Força – que pode nos ajudar a enfrentar mais poderosamente os próprios problemas que nos atormentam. “Ir a Deus” não é negar ou encobrir a dor e a mágoa. Em vez disso, é trazer para a nossa dor e sofrimento o Eterno Curador da própria dor e do próprio sofrimento.
Paralelamente aos ataques contra o papa, há uma esperança de seus defensores de que ele permaneça na cátedra de Pedro por mais alguns anos: o tempo suficiente para poder nomear a maioria dos cardeais que desejam uma Igreja no “estilo Francisco”. Aqueles que amam Francisco, que encontram nele uma enorme esperança e solidariedade e que também pensam nessas coisas querem que Francisco “domine o conclave” com seus homens. Certamente, tal grupo elegerá um papa que pensa como Francisco.
E se isso falhar? E se o próximo papa – mesmo eleito pelos “cardeais de Francisco” – for diferente de Francisco? E se estiver menos focado no amor implacável e na misericórdia de Cristo e mais nos aspectos doutrinários da fé? E se o próximo conclave eleger alguém assim?
Bem, boas notícias. Porque esses católicos mais uma vez terão que se apoiar, confiar e lançar todas as suas preocupações para Rei em pessoa, em vez de a um número qualquer de papas que servem ao Rei. Teremos que confiar mais profundamente em Cristo como nosso modelo e salvação, em vez de em um pontífice que insistimos que é moldado à nossa própria imagem.
* * *
“Deus nunca se cansa de nos perdoar”, disse Francisco na primeira oração do Ângelus de seu pontificado. “Mas às vezes nos cansamos de pedir perdão a Ele.” Não é que Deus se canse ou se desespere em relação à Igreja. Somos nós que estamos cansados ou apenas com medo de entregar todos os problemas da Igreja nas mãos de Deus.
Somos a Igreja da teologia simplista que você encontra em camisetas e em quadros nos lares cristãos: “Nada vai acontecer hoje que você e Deus juntos não possam resolver”. Somos a religião de exortações alegres como: “Deus está no controle!”
As pessoas que realmente acreditam nesses lemas são capazes de resolver todos os problemas em suas vidas e de confiar que Deus realmente pode lidar com eles. Dizer coisas como “Deus está no controle” cria a crença, a crença vivida de que – você sabe – Deus está no controle. Na verdade, isso está a 1.000 quilômetros de distância de algo simplista. Isso afasta o ressentimento, o mais venenoso dos estados humanos, e nos liberta.
O momento mais doloroso da visita do Papa Francisco à República Democrática do Congo no início de fevereiro ocorreu quando ele ouviu homens e mulheres que sofreram atos indescritíveis de violência durante as guerras civis daquele país. “O papa ouviu um jovem contar como vira seu pai ser cortado em pedaços, e sua mãe, estuprada”, escreveu Gerard O'Connell na revista America. “Ele ouviu uma jovem contar que, aos 16 anos, ela e outras pessoas eram estupradas várias vezes ao dia por grupos de homens armados que as obrigavam a comer os corpos das pessoas que os homens armados matavam. Ele ouviu que mulheres jovens eram mutiladas e viu o que restava das mãos delas.”
Quero repetir isso, apenas para deixar que isso penetre em mim: essas mulheres foram estupradas várias vezes e depois forçadas a comer carne humana.
E, quando se sentaram junto com o papa, ocorreu o seguinte: “Ele escutou em silêncio enquanto elas colocavam os instrumentos de seus torturadores aos pés da cruz e diziam que perdoavam aqueles que lhes haviam feito tanto mal”.
Nós também somos essa Igreja: pessoas que depositam os instrumentos de seus torturadores aos pés da cruz.
Se esses homens e mulheres puderam perdoar seus agressores por esses crimes terríveis, se eles puderam “encontrar Deus” em lugares tão impossíveis, quem somos nós para fazer algo menos? Se as mulheres congolesas horrivelmente brutalizadas puderam encarnar de forma tão dramática a misericórdia radical de Cristo, quem somos nós para nos apegar a qualquer tipo de raiva e fúria? Em relação a qualquer um, em relação a qualquer coisa?
Isso não significa dizer àqueles que debatem em torno da política eclesial: “Supere isso. Contemple as vítimas de tortura e reavalie seus próprios problemas”.
Ao mesmo tempo, é também dizer isso. As coisas realmente poderiam ser muito, muito piores. Veja o que Cristo fez na vida desses homens e mulheres congoleses, a misericórdia que ele inspirou. Podemos dar meio passo na direção que eles seguiram?
No rastro de cada dor, divisão e raiva em nossas vidas está um memorando ardente: Deus está trabalhando. A Igreja vai ficar bem, e nós também. Estamos exatamente onde precisamos estar.
As palavras de Teresa de Ávila não precisam andar paralelamente em nossas vidas espirituais, relegadas apenas à busca da serenidade pessoal. Elas também são um guia para a política religiosa:
“Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.”
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