03 Mai 2023
"Amar, seja capivaras ou seres humanos, implica um constante esforço para garantir a liberdade e a autonomia do outro. Tal esforço não diz respeito, de maneira alguma, a recusar uma postura de afeto assentada em uma ética do cuidado. Trata-se, por outro lado, de um constante exercício de cultivo das potencialidades do outro. E isso, em determinadas situações, significa apenas não impedi-lo de ir", escreve Gabriel Miranda, doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e investigador de pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos. Ensaísta e poeta, seus últimos livros são “Escritos de amor e outros versos” (editora d3srazão, 2021) e “Em defesa da dialética: ensaios sobre o Brasil” (LavraPalavra Editorial, 2023).
Território privilegiado – mas não exclusivo – dos poetas e dos bêbados, o amor é uma dessas palavras a respeito da qual todo mundo tem algo a dizer. Sentimento variado e polissêmico: ama-se de várias formas e se compartilham muitos significados a respeito do que seria ou não seria amar. É devido a essa profusão de sentidos e acepções que podem se produzir encontros belíssimos ou desencontros frustrantes. E, também por isso, não raras vezes o que se propaga como “amor” se torna um terreno movediço, propício a armadilhas e violências das mais variadas.
Ora, é recorrente a utilização disso que chamam de “amor” como uma carta branca para explícitas e sutis atitudes violentas. Em nome do “amor” se desenvolvem práticas de controle e coação da liberdade e autonomia do outro, muitas vezes disfarçadas de proteção, carinho e zelo. Quando as situações extrapolam os limites tolerados socialmente, são ditas coisas como “O amor me fez perder a cabeça”. Já noutras ocasiões, nada é dito e o silêncio e o ar de normalidade tratam de tornar opacas as manifestações simbólicas – mas nem por isso menos nocivas – da violência.
Forjados sob as bases de uma sociedade que gira em torno da produção, circulação e consumo de mercadorias, as maneiras subjetivas e concretas de nos relacionarmos também parecem ter padecido aos imperativos da propriedade privada. Assim, nas relações românticas, amar se confunde com o binômio possuir-controlar.
Soma-se a isso o fato de que somos, de longa data, ensinados a aprender que o verbo amar se confunde com o verbo sofrer. Afinal, tanto “o amor é ferida que dói e não se sente” quanto “todo grande amor só é bem grande se for triste”. E muito antes de Camões e Vinicius, o livro bíblico de Coríntios já anunciava que o amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.
Dessa maneira, amar o outro se converte em não amar a si. Nesse jogo perverso, o amor se torna o ato de se sujeitar e, caso esse assujeitamento seja rompido, game over. Contudo, se apenas amo o outro quando o tenho sob controle, não o amo, amo aquilo que ele pode me oferecer. Opera, portanto, uma lógica utilitarista – a mesma que rege nossa relação com os produtos que consumimos no cotidiano: se não me é mais útil, descarto, abandono, deixo de lado.
A recente história – da qual, juro, esforcei-me para me manter distante –envolvendo uma capivara que ganhou destaque nas redes sociais, assim como toda a produção midiática construída a fim de apresentar uma narrativa carismática em torno do caso, nos oferece, além de cenas indigestas, algumas lições interessantes sobre a cultura brasileira contemporânea. Vemos, por exemplo, como a extrema direita, representada principalmente na figura de uma deputada estadual, conseguiu capturar a pauta e transformá-la em mais uma estratégia de demonização do Estado e dos serviços públicos.
Influenciador Agenor Tupinambá e a capivara Filó. (Foto: Reprodução Instagram)
Mas também temos, e é isso que interessa a este texto, um exemplo representativo da maneira como se concebe o amor para um largo conjunto de brasileiros. Em síntese, o sujeito que explora a imagem da capivara na internet diz que a ama e o exército de pessoas que rapidamente se organizaram nas redes sociais para defender a manutenção da exploração do animal silvestre se valem igualmente do “amor” como justificativa para que a situação de violação se mantenha.
Não creio que, além daqueles que pretendem utilizar o episódio para deslegitimar instituições públicas como o Ibama, existam muitos outros mal-intencionados. Mas o que me chama atenção é que a técnica de manipulação do outro utilizando o “amor” como mediação adquiriu, nesse caso, uma grande proporção. Afinal, em justificativa do pretenso amor, insistem em violar a legislação ambiental e submeter um animal silvestre aos imperativos de um homem, que deseja seguir lucrando por meio da exploração da imagem da capivara. O “amor” que está em cena não quer a liberdade, mas, ao contrário, objetiva manter o sujeito “amado” refém dos desejos daquele que “ama”, em um circuito fechado onde há apenas um protagonista.
Amar, seja capivaras ou seres humanos, implica um constante esforço para garantir a liberdade e a autonomia do outro. Tal esforço não diz respeito, de maneira alguma, a recusar uma postura de afeto assentada em uma ética do cuidado. Trata-se, por outro lado, de um constante exercício de cultivo das potencialidades do outro. E isso, em determinadas situações, significa apenas não impedi-lo de ir.
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Sobre amores, violências e capivaras. Artigo de Gabriel Miranda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU