21 Abril 2023
“Uma cidade pensada, organizada e desenvolvida para um varão, adulto, trabalhador, é muito incômoda, até hostil, para quem não é varão, para quem não é adulto e para quem não é trabalhador”, diz o pedagogo Francesco Tonucci, que dedicou sua vida a promover os direitos das crianças. E propõe, precisamente, em oposição às cidades nas quais os automóveis são os donos do espaço público, cidades adaptadas a todos os que ficam à margem dessa norma com que foram erguidas: não apenas as crianças, mas também as mulheres, os idosos e as pessoas com deficiência, entre outros.
Tonucci também é chargista e autor de vários livros e artigos. Atualmente, é pesquisador associado do Instituto de Ciências e Tecnologias da Cognição do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. É o idealizador e gestor do projeto internacional “Cidades das Crianças”, que acontece em vários países da Europa e da América Latina. Com o pseudônimo “Frato”, assina charges satíricas sobre educação, cidade, brincar e infância, que nos convidam a questionar o sistema e a sua transformação.
Esteve na Argentina no fim de março a convite da Secretaria Nacional da Criança, do Adolescente e da Família, no âmbito de um trabalho conjunto sobre o direito de brincar e a construção da cidadania de crianças e adolescentes. Nesse contexto, manteve esta conversa com o Página/12, após participar de uma conferência no Centro Garrigos, situado no Bairro La Paternal, de Buenos Aires. Tonucci fala fluentemente o espanhol. Fiel ao seu estilo, explicou que é assim porque não lhe ensinaram o idioma; ele o aprendeu viajando pela Espanha.
A entrevista é de Sonia Santoro, publicada por Página/12, 17-04-2023. A tradução é do Cepat.
Quando se deixa de ser criança? Deixa-se de ser criança?
São essas frases que têm muitas possibilidades de resposta. Porque uma das garantias de respeito pelas crianças é não se esquecer da própria infância. Nisso acho que tenho boa memória.
Como era?
Lembro-me muito tanto do bom e do ruim que foi a experiência da infância. Toda a minha briga com a escola vem de uma experiência escolar bastante... não é que eu sofri coisas estranhas. Sofri o que quase todas as crianças sofrem: tédio. A sensação de que estavam roubando o meu tempo. A escola primária para mim é uma etapa quase esquecida. O ensino médio foi bastante sofrido. E depois as coisas melhoraram porque eu estava encontrando meu caminho.
A escola está em crise há muitos anos. Você vem falando sobre isso há muito tempo também. Qual deveria ser o papel da escola?
Se faço esta pergunta sobre o papel dos pais, não é tão difícil de responder. Acho que quase todos os pais estão dispostos a dizer: o nosso papel é ajudar nossos filhos a crescer. Crescer significa desenvolver-se. Creio que esse é o papel da educação.
E hoje podemos dizer que não sou eu a pensar dessa maneira. Hoje é a lei que diz isso. Porque a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 29, diz exatamente o seguinte: a educação deve ter como objetivo desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da criança em todo seu potencial.
Portanto, o que a escola não deve fazer é desenvolver um programa. Porque o programa vem de fora. São disciplinas: literatura, matemática, história, geografia. E a proposta da escola é que as crianças aprendam, não se desenvolvam. E não é a mesma coisa. Significa que existe uma fonte externa que sabe o que ensinar. E depois os alunos têm que mostrar que aprenderam. É para isso que existe a avaliação.
Numa interpretação mais correta e legal, creio que a avaliação deveria ser feita sobre a escola. Porque se conseguiu ajudar cada menino e menina a desenvolver suas habilidades, suas atitudes, quais seriam suas vocações, que não podem ficar apenas entre a matemática e a literatura, como normalmente acontece... Se um aluno tem boas notas em matemática e língua, não tem problemas escolares. Pode não ser capaz de colocar a linha na agulha. Ou pode não ser capaz de desenhar nada. Ou mover-se com graça com uma música. Não se suspendem alunos por isso. Essa é uma ideia de educação escolar que nada tem a ver com leis ou com o bom senso. Porque depois fica evidente que o que devemos esperar é que cada um seja fiel a si mesmo, desenvolva suas habilidades, pois esta é a garantia de ser feliz no final.
Você mencionou o desenho. Que lugar teve em sua vida?
O desenho é uma das linguagens que todas as crianças desenvolvem quando têm quatro, cinco, seis anos. Nesta fase, pesquisas em várias culturas do mundo mostram que todas as crianças desenham e desenham mais ou menos no mesmo nível. Assim como todas as crianças falam. O dramático é que quando entram na escola têm que se calar. Calar, isto é, o que sabem fazer de melhor, que é falar, não podem fazer. E também não podem desenhar, porque normalmente é o professor, a professora, que diz o que deve desenhar e como. Copiando desenhos ou colorindo desenhos que os adultos lhes passam, as crianças percebem que não sabem desenhar. E de fato, se eu consultar um público adulto, quantos pensam que não sabem desenhar? Provavelmente a maioria. E isso é um absurdo.
Na minha vida, o desenho tem sido a linguagem fundamental. Sempre pensei que nasci para ser artista, não para ser educador. Depois a vida me conduziu por outro caminho. E essa parte da minha personalidade, claro que sobreviveu, porque não tinha outro jeito.
Desenho sempre e levo o desenho a sério, pinto, tenho esculturas, cerâmicas, etc. Esta é uma parte secreta, uma parte que permaneceu pessoal, que quase ninguém conhece. E isso das charges tem sido uma mediação.
Eu desenhava antes de escrever, como toda criança, repito, mas já dava para perceber que eu sabia desenhar. Lembro que no jardim de infância as professoras vinham ver os desenhos que eu fazia na lousa.
E na escola não conseguiu desenvolver a arte de desenhar?
Na escola não se interessavam pelos meus desenhos. Sempre tive notas máximas em desenho. Mas não era importante. Não contava nada. Contava que tinha alguns problemas em matemática; mais tarde, no ensino médio, em álgebra. E isso foi meu tormento, três anos chorando quase todas as tardes sobre esses deveres de casa que eu não sabia fazer. Eles sempre me diziam: “Não se preocupe, agora faça como dizem para fazer, depois você entenderá”. Tenho 83 anos, não entendi nada e vivi do mesmo jeito.
O que é o projeto “Cidades das Crianças”?
Deveria ser a cidade, e ponto. A cidade, para ser uma cidade, deveria ser de todos. E de alguma maneira a cidade se chama das crianças como uma provocação. Quer dizer, a cidade perdeu seus habitantes, a maioria ou todos os seus habitantes. Por que na Europa as cidades foram reconstruídas dessa forma depois da última guerra, quando se encontravam em uma situação totalmente nova? Minha primeira lembrança de criança, aos três anos, é do bombardeio da minha cidade. Eu vivia em Fano, uma pequena cidade de 60.000 habitantes, no meio do Adriático.
Quando as cidades foram reconstruídas, foram feitas sob medida para um cidadão que podemos qualificar como varão, adulto e trabalhador. E a demonstração de que essa foi a escolha se dá pelo poder que o carro tem hoje na vida da cidade moderna. Ele é praticamente o verdadeiro dono da cidade. E claro, uma cidade que é pensada, organizada e desenvolvida para um varão, adulto e trabalhador, é muito incômoda, até hostil, para quem não é varão, para quem não é adulto e para quem não é trabalhador. Que são a grande maioria na cidade, porque estamos falando de crianças, mulheres, idosos, deficientes, pobres e estrangeiros. E provavelmente, os privilegiados, os homens adultos e trabalhadores, também não serão felizes, se seus filhos, suas esposas e seus pais sofrerem.
É difícil imaginar outro tipo de cidade. Quais seriam as pistas para criá-la?
Pelo contrário, é difícil imaginar uma cidade assim, feita para poucos. Mas é o que vemos. Temos algumas características que não existiam antes. As crianças não saem de casa, os idosos não saem de casa. Lembro com muita tristeza o depoimento de um amigo de Roma que me dizia: “Minha avó não sai mais de casa porque o semáforo não dá tempo para ela atravessar a rua”. Sempre senti essa frase impressionantemente violenta. E por que o tempo do semáforo é tão curto? Porque as pessoas estão com pressa. Por favor, uma cidade deve reconhecer que uma pessoa idosa tem muito mais direito de atravessar a rua do que você de estar com pressa. E claro, esse é um exemplo para dizer o quanto a cidade é inadequada.
E se passarmos para as crianças, é um fato impressionante. Hoje, as crianças pagam um custo social, pessoal, cultural e cognitivo muito alto pelo fato de não poderem cumprimentar os pais e dizer: “Vou brincar com os meus amigos”.
Existe muito medo de pais e mães.
Exatamente. Hoje temos um problema, o medo atingiu um nível muito alto e o que mais me preocupa é que se perdeu a relação com o perigo. Não é uma reação ao perigo, é um medo e ponto, por si só. As cidades de hoje são um pouco mais seguras do que as cidades de outrora. Mas o medo de hoje é maior do que o medo de ontem. Isso é extremamente perigoso porque se você perder a relação com o perigo, isso se torna uma paralisia.
Como isso afeta as crianças?
Fatalmente, porque a questão é que as crianças têm que desenvolver sua autonomia com a idade. Outro dia estávamos no Brasil, em Jundiaí, São Paulo, e nos reuníamos com o Comitê das Crianças. E conversando com elas perguntei se podiam ir sozinhas para a escola, se podiam sair de casa. Uma menina me disse: “Não, não posso porque tenho onze anos e os meus pais decidiram que só posso sair quando tiver completado doze anos”. Esta é uma declaração dramática.
Você disse que elas devem começar a sair de casa aos seis anos.
A autonomia é um processo que começa com o corte do cordão umbilical. A partir deste momento se separam. Isso, a separação, a independência, é um elemento essencial da autonomia. E penso que é muito importante que os pais tenham consciência de que a autonomia de suas filhas e filhos tem que crescer a cada dia. Por exemplo, um costume que acredito que devemos abandonar é colocar as crianças pequenas em cercadinhos. É muito cômodo. Também coloquei meus filhos em cercadinhos. Não sabia, não tinha refletido sobre essas questões. Mas, por que o cercadinho limita? Porque você pode colocar uma criança ali, com poucos meses, com todos os seus brinquedos por perto, e nada acontece com ela.
Claro.
Exatamente, esse é o problema. Algo sempre tem que acontecer com as crianças. Qual é a proposta? Eu sempre digo, um cobertor. Custa menos. E colocamos a criança ali. Assim, a criança pode olhar e quando pode, movimentar-se, engatinhar ou fazer como as serpentes. E vai à aventura. Pode deslocar-se. Pode arriscar. Este risco é um componente essencial. Portanto, quando dizia, acredito que as crianças devem sair de casa antes dos seis anos, simplesmente abrimos a porta. E batemos na porta ao lado onde mora outra criança e ficam brincando ali na frente de duas portas abertas. O problema é que estão fora de casa.
A partir dos seis anos pensamos que é possível irem para a escola com os amigos. Me dizem: “Mas a escola é longe”. Aqui também temos que matizar. O que significa longe? Um quilômetro não é nada para uma criança. Uma criança que brinca percorre quilômetros.
E a outra coisa é: por que escolhemos uma escola que fica longe? Quando me pedem conselhos na hora de escolher escolas, a primeira coisa que sempre digo é: a escola mais próxima de casa. Esta é a melhor.
O que precisa ser mudado?
A prática. Sempre digo que o maior presente que podemos dar a uma criança é dizer a ela: “Amanhã você pode ir sozinha para a escola”, ou “Por favor, vá comprar pão”. Eu sei que temos medo. Minha mãe também tinha medo. Ela me dava conselhos, me dizia: sempre olhe para os dois lados antes de atravessar a rua. Temos que ajudar a família a entender que essa superproteção tem um custo muito alto. Tudo o que as crianças não puderam experimentar ao vivenciar a questão dos riscos como uma possibilidade em sua dimensão – encontrar um obstáculo e encontrar uma forma de superá-lo ou evitá-lo –, é adiado para a adolescência e aí aparecem problemas difíceis.
E com a pandemia piorou.
Bem, a vida dos adolescentes foi dramática. A vida dos pequenos não mudou muito. E por isso as crianças praticaram a viveram bem em casa com os pais. Eu reclamava muito quando diziam: “As coitadas das crianças não podem sair de casa”. Mas mesmo antes da pandemia já não podiam sair de casa. E por isso, depois da pandemia, continuam a não sair de casa.
E o que acontece com as tecnologias que cooptaram as crianças e também os adultos?
É um problema que tem muitas faces. A tecnologia é uma riqueza, um recurso impressionante. E por isso acho que falar mal da tecnologia é hipocrisia, por um lado. Por outro lado, a tecnologia está tornando a vida muito mais fácil. Alguém diz, bem, é por isso que é boa. Por isso é boa e por isso é má. Porque, ao simplificar tudo, diminuiu muito as necessidades cognitivas. E há estudos, que espero que estejam errados, que dizem que as novas gerações terão uma inteligência inferior à nossa.
São instrumentos maravilhosos, mas devem permanecer como instrumentos. Não podem ser a alternativa. Por exemplo, os pais consideram o telefone celular como uma potencial garantia de autonomia. Dizem: “Vou deixá-lo porque está com o celular”. Portanto, o celular vai baixando na idade. Hoje este é um maravilhoso chocalho. Mas nas mãos de uma criança pequena, este instrumento é fisicamente perigoso. E depois chega a ser perigoso pelo equívoco que provoca, porque dá essa sensação de liberdade, que não é liberdade, é controle. Porque os pais controlam de longe.
A outra consequência muito grave desses instrumentos é que, já adolescentes, se convencem de que a vida virtual é mais fácil do que a vida real. E renunciam à vida real.
É um pouco como aconteceu antes com a televisão, que tinha o papel de babá econômica. Não é tão perigosa pelo que propõe, mas pelo que exclui. Porque todo o tempo que uma criança passa na frente da televisão, ela não está correndo, não está brincando, não está encontrando amigos. E está ficando obesa.
Você está otimista em relação a essas mudanças que devem ser feitas?
Eu não tenho escolha. Ser pessimista, na minha idade, seria fatal.
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“A cidade é hostil para quem não é homem, adulto e trabalhador”. Entrevista com Francesco Tonucci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU