20 Dezembro 2022
"Os progressos da exegese, da arqueologia, da história e da reflexão teológicas recolocam em questão uma parte da doutrina católica. O imobilismo da instituição poderia acelerar sua implosão", afirma Guy de Longeaux, sociólogo e realiza atividades de pesquisa hermenêutica sobre o Novo Testamento e sobre a história das origens cristãs na Ecole pratique des Hautes Etudes, seção de ciências religiosas, em artigo publicado por Le Monde, 18-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Rumo à implosão?", "sobre o presente e o futuro do catolicismo" (ed. Seuil, 2022) [em tradução livre], o livro-entrevista de Danièle Hervieu-Léger a Jean-Louis Schlegel, enumera as inúmeras e graves razões que podem afetar negativamente o futuro da Igreja Católica. Segundo os autores, um dos aspectos mais perigosos é a sacralidade do padre, que deve necessariamente ser do sexo masculino e celibatário, uma sacralidade que o separa dos demais e lhe confere um poder exclusivo (clericalismo). Outro aspecto é a identificação da imagem da Igreja com a paróquia territorial.
A sacralidade do poder e o fundamento territorial de sua imagem social são manifestações da "exculturação" - expressão de Danièle Hervieu-Léger - do catolicismo em relação ao mundo contemporâneo. Um aspecto significativo dessa exculturação, sobre o qual o livro não se debruça, poderia ser, de fato, a mais grave ameaça à sobrevivência do catolicismo.
Trata-se de sua doutrina, ou seja, da própria fé católica, ou pelo menos de seus enunciados, que se mantiveram inalterados por décadas e se tornaram ininteligíveis num mundo voltado à insígnia do espírito crítico e da ciência. No momento em que a fé perde sua relevância aos olhos de nossos contemporâneos, a Igreja não tem mais razão de existir para eles. Consequentemente, mesmo uma Igreja liberta das pesadas deficiências descritas pelos autores não evitaria a "implosão".
Aos olhos de um observador externo, a Igreja pode legitimamente reivindicar ser o único juiz do que ela ensina, mas quando vêm à tona certos fatos que contradizem este ou aquele elemento de seu ensinamento, ela pode mantê-lo tal como é? Com Copérnico e Galileu, foi necessário renunciar às interpretações dos textos bíblicos segundo os quais se afirmava que o sol girava em torno da terra. Com Darwin, foi preciso considerar os relatos bíblicos da Criação como simbólicos e não mais realidade.
Paul Ricoeur usou esta expressão: “Toda época comporta um credível disponível”. Em 16 de agosto de 2020, ouvi um padre católico explicar na televisão que a Festa da Assunção comemora “a ascensão de Maria ao céu em corpo e alma”. Claro, essa tradição, que surgiu com os Padres da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo, foi uma crença popular legitimada pela Igreja, que a tornou festa litúrgica por volta do século VIII.
Mas que, em 1950, a pedido da maioria dos bispos, que refletem a crença dos fiéis, a Assunção tenha sido transformada em dogma, só pode surpreender e prejudicar a Igreja que se encontra vivendo no espírito crítico de nossa época. Um dos presságios, talvez o mais evidente, da "implosão" é o abandono silencioso de muitos jovens católicos assim que terminam sua catequização, com exceção evidentemente das famílias mais tradicionais - aquelas que se destacam mais, mas que são uma minoria.
Assim como abandonaram o Papai Noel da infância, na adolescência se afastam do que lhes parece mítico na catequese que receberam, por exemplo, as representações de um Jesus como "Filho de Deus", "Deus feito homem", "nascido de uma virgem”, “realizador de milagres”, “que caminha sobre a água”, “que transforma água em vinho”, “que reaparece fisicamente após a sua morte”.
Não existe, para a Igreja, uma evidente necessidade de atualização de seu corpus dogmático?
Pergunta arriscada, que certamente produziria uma deflagração interna muito forte. Eu havia lido em um livro de Marcel Gauchet, certamente no "Desencantamento do Mundo" que ele não via, em nossa época, nenhum teólogo da estatura de Tomás de Aquino, capaz de repensar toda a teologia cristã (no século XIII , face à filosofia de Aristóteles que dominava o pensamento).
No entanto, alguns tentam. O jesuíta Joseph Moingt, falecido em 2020, é um deles. Em seu último livro, L'esprit du christianisme” (Temps présent, 2019), ele escreveu: “A linguagem dogmática... não é mais crível, porque não leva em conta nem a nova historiografia do Antigo Testamento, que questiona a revelação que a Igreja pretende encontrar ali, nem novas exegeses do Novo Testamento, admitidas por grande número de estudiosos, que já não permitem mais afirmar, por exemplo, que Jesus tenha se proclamado Filho de Deus (no sentido do dogma), nem que teria morrido voluntariamente para expiar os pecados dos homens". “A Igreja, escreve ele, tem um problema com a verdade”.
Já se disse desse teólogo que ele estava realizando uma verdadeira revolução copernicana na forma de expressar a fé ao reformular criticamente noções como a revelação, a encarnação, a onipotência de Deus, a ressurreição... Moingt questiona a ordenação sacerdotal e a concepção hierárquica da Igreja, não previstas por Cristo.
Seu último livro, como os anteriores, quase não suscitou reações, como se se preferisse ignorá-lo a discuti-lo.
Além das tribulações que atualmente a abalam e dos pesados obstáculos institucionais descritos no livro de Danièle Hervieu-Léger, a Igreja não deveria temer também que seu imobilismo dogmático acabe por arruinar sua imagem social e acelerar a sua “implosão”?
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“Sobre a necessidade de atualizar seu corpus dogmático, a Igreja Católica simplesmente não nos ouve” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU