Ivan Illich e o Deus que brinca com o ser humano

Ivan Illich. (Foto: Adrift Animal | Wikimedia commons)

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23 Dezembro 2022

Hoje se passaram 20 anos desde aquele 2 de dezembro de 2002, 20 anos desde a morte de Ivan Illich, o genial e quase inclassificável intelectual, no cruzamento de várias disciplinas, identidades e pertencimentos culturais: historiador, filósofo, pedagogo, medievalista, teólogo da libertação, polemista, padre católico, utópico etc., alguns dos quais não agradariam e já não agradavam ao próprio Illich. Portanto, a editora Armando fez bem em propor novamente um clássico illichiano como “Rovesciare le istituzioni. Un messaggioo unasfida’?” (2022), que ela publicara pela primeira vez em 1973, com tradução e posfácio de Attilio Monasta.

"Rovesciare le istituzioni. Un ‘messaggio’ o una ‘sfida’?", relançado em 2022. (Foto: divulgação)

O comentário é do escritor italiano Gianni Vacchelli, em artigo publicado em Avvenire, 01-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Vale a pena lembrar que o título original do livro, lançado em 1970, é menos “beligerante” – Celebration of Awareness. A call for institutional revolution –, e precisamente na “celebração da consciência” reside talvez uma chave para compreender a crítica radical de Illich e sua mensagem de libertação, nesse sentido “revolucionária” e cheia de “radicalismo humanista”, como escreve Erich Fromm, seu amigo e admirador, no magnífico prefácio: sim, porque ler e reler Illich é sempre uma imersão poderosa e subversiva em uma consciência que desperta.

E, na sua escrita seca, nervosa e afiada, sempre há, de modo evidente ou não, um senso de celebração, de alegria, de brincadeira muito séria, que nos faz redescobrir que “a raiz é o ser humano”. Afinal, o próprio Illich recordava: “Devemos ser homens que brincam, porque sabemos que Deus mesmo não poderia ter criado o mundo para outra finalidade senão brincar com ele”.

Voltar a “Rovesciare le istituzioni” mais de 50 anos depois de sua publicação é uma experiência forte e também aqui capaz de nos derrubar e nos colocar novamente de pé, no sentido próprio de revolução. As palavras de Illich não são mais apenas proféticas, mas, infelizmente, já bem realizadas diante dos nossos olhos. Basta abrir o volume aqui e acolá: “Um desafio está sendo lançado para nós hoje: despedaçar os sistemas sociais e econômicos que dividem o mundo em superprivilegiados e desprivilegiados”; e ainda: “Devemos reconhecer que o esforço voltado para a autorrealização, para a poesia, para o jogo, é parte essencial do ser humano uma vez satisfeita sua necessidade de alimentação, vestuário, habitação, mas também devemos reconhecer que o nosso compromisso com essa autorrealização é profundamente obstaculizado pelas estruturas anacrônicas da era industrial. Todos somos responsáveis e culpados ao mesmo tempo”.

Encontramos aí uma crítica profunda da modernidade, que, como lembra Angelo Gaudio, em seu livro “Illich. O profeta da pós-modernidade”, reeditado para a ocasião pela editora Scholé, é para Illich em geral “uma utopia equivicada e contraproducente”. Decorre daí a crítica à civilização industrial, ao capitalismo da escassez e à correspondente antropologia do homo miserabilis, à tecnologia e aos sistemas que nos envolvem, que nos fazem perder o sentido da distância e que “nos obrigam a consentir com a nossa progressiva autodestruição”, bem como o duro ataque a todas as instituições que se esclerosam e se burocratizam, assumindo o monopólio da realidade e do humano.

Illich é radical, mas não ingênuo: não pensa em um retorno bucólico, em uma supressão da escola, em um ludismo reativo e retroativo: de fato, ele defende a dignidade e a liberdade do humano, a criatividade e a alegria de existir, porque somos seres espirituais e encarnados, e da Encarnação viemos.

E é aqui que o papel das instituições muitas vezes se torna opressivo e, paradoxalmente, anti-humano, desencarnado, também do ponto de vista da corruptio optimi pessima. No livro, encontram-se também páginas célebres e discutidas sobre a crise da Igreja Católica, sobre a “extinção do padre”, sobre o “lado obscuro da caridade”, sobre a “utilização do Evangelho a serviço do capitalismo”, mas também aqui o centro não é a demolição, que estaria “em contradição com as leis da sociologia, assim como com a sua missão divina”, mas a libertação, porque uma Igreja pobre, menos empresarial, menos burocrática está mais próxima e mais a serviço do Reino. A herança de Ivan Illich não é apenas extraordinariamente atual na sua inatualidade, mas deve ser redescoberta e ampliada.

A impressão é que ainda não somos contemporâneos desse grande intérprete da crise da modernidade, mas também desse celebrador da alegria e da consciência. Suas intuições nos esperam. Illich talvez não seja tanto um profeta pós-moderno, mas sim um professor, é claro, e um companheiro de viagem, um amigo que nos convida à esperança, porque “hoje o ethos prometeico ofuscou a esperança. A sobrevivência da espécie humana depende de sua redescoberta como força social”. Escutemo-lo.

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