03 Dezembro 2022
Nas últimas semanas, o palco romano apresentou o que se poderia chamar de “conto de dois países”, já que tanto os bispos alemães quanto os belgas realizaram suas tradicionais visitas ad limina ao Vaticano, embora com atmosferas notavelmente diferentes.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 30-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quando os alemães estiveram na cidade, de 14 a 18 de novembro, noticiou-se como uma versão eclesiástica do tiroteio no O.K. Corral – manchetes com “confronto”, “impasse” e “cabo de guerra” estavam presentes na maioria das coberturas.
Em questão, é claro, estava o Caminho Sinodal alemão, um diálogo nacional envolvendo bispos e leigos sobre uma variedade de questões polêmicas, incluindo sexualidade, mulheres, sacerdócio e poder na Igreja. Desde o início em 2019, o exercício deixou o Vaticano nervoso, pois poderia produzir resultados em desacordo com o ensino da Igreja, e esta foi outra chance para as autoridades do Vaticano encorajarem os alemães a diminuir o ritmo.
No final, os alemães basicamente disseram “obrigado, mas não” a uma proposta do Vaticano para uma “moratória” no Caminho Sinodal, insistindo, entre outros pontos, que por ser um exercício conjunto entre bispos e leigos, os bispos sozinhos não podem apenas decidir encerrá-lo. Ao que tudo indica, o processo continuará a se desenvolver em direção a uma sessão final atualmente marcada para março de 2023.
Enquanto isso, os bispos belgas iam e vinham em sua própria visita ad limina uma semana depois, de 21 a 26 de novembro, sem nada do “sturm und drang” que cercava a presença alemã, apesar de o fato de os belgas estarem em sintonia com seus colegas alemães em pelo menos um ponto altamente contestado: a bênção das uniões de casais homossexuais.
No final de setembro, os bispos belgas de língua flamenga emitiram um documento sobre o cuidado pastoral de casais homossexuais, que incluía um rito com uma oração e uma “bênção” diante das famílias e amigos do casal.
Esse documento parecia contradizer diretamente um decreto de março de 2021 da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, que proibia expressamente a bênção de uniões homossexuais.
“Qualquer forma de bênção que tende a reconhecer suas uniões como tal” é proibida, afirmou a congregação, porque “a bênção manifestaria não a intenção de confiar tais pessoas à proteção e ajuda de Deus, mas para aprovar e encorajar uma escolha e um modo de vida que não pode ser reconhecido como objetivamente ordenado aos planos revelados de Deus”.
Muitos observadores acreditaram na época que o decreto era uma resposta a uma tendência crescente em relação à prática de oferecer tais bênçãos, especialmente na Alemanha, onde a questão se tornou especialmente aguda após a legalização civil do casamento gay em 2018.
Apesar do fato de que os bispos de língua flamenga na Bélgica tenho praticamente copiado uma página do manual alemão, não havia nenhuma sensação de conflito ou grande drama pairando sobre sua recente visita a Roma. Entre outras coisas, não houve uma cúpula tensa com autoridades do Vaticano no final, seguida por uma declaração conjunta de 600 palavras que quase parecia um teste de Rorschach para ver o que se queria ver.
De fato, durante uma coletiva de imprensa posterior, os belgas pareciam quase tontos de entusiasmo com a experiência, especialmente a sessão com o Papa Francisco: “Inesquecível”, “Impressionante”, “Que experiência!” e “Que papa nós temos!”, estavam entre os destaques de suas reações.
O cardeal Jozef De Kesel, arcebispo de Mechelen-Bruxelas, não negou que diferentes perspectivas foram expressas ao longo do caminho, mas insistiu que o principal era uma atmosfera de respeito e escuta. Dom Lode Van Hecke, bispo de Gent, expressou-se desta forma: “Fiquei impressionado com a abertura e o esforço sincero para nos atender em nossas diferenças, porque a Bélgica é um país pequeno, mas complicado, como todos sabem”, disse ele.
Então, por que o contraste entre a Alemanha e a Bélgica em termos de recepção do Vaticano?
Por um lado, as fontes dizem que os belgas envolvidos na preparação do documento sobre o cuidado pastoral de casais homossexuais se esforçaram para manter o Vaticano informado em todas as etapas, durante a redação, antes da publicação e na fase de implementação. Isso não quer dizer que alguém no Vaticano deu luz verde ao projeto, mas pelo menos ninguém em Roma ficou surpreso com o que estava acontecendo.
Também pode ajudar o fato de Kesel ter sido cuidadoso com seu vocabulário, não se referindo em público a uma “bênção” para casais homossexuais, mas a um “momento de oração em que pedimos a Deus que nos ajude e nos proteja”. Dom Jean-Luc Hudsyn, bispo de Brabante, fez uma observação semelhante, dizendo que a abordagem com as autoridades do Vaticano foi “reler nossos textos oficiais com eles, e não o que alguns queriam que eles dissessem”.
Em segundo lugar, a Bélgica tem uma população católica estimada em cerca de 7 milhões de pessoas, dividida entre falantes de flamengo e francês, com uma taxa de comparecimento à missa geralmente fixada em cerca de sete por cento. A Alemanha tem uma população católica de aproximadamente 23 milhões de pessoas e, por causa do sistema Kirchensteuer (“imposto da Igreja”) no país, está entre as Igrejas nacionais mais ricas do mundo, inclusive sendo uma das maiores empregadoras privadas da Alemanha. Por causa de seus recursos, o catolicismo alemão é um grande doador – e, portanto, também uma grande influência – para as Igrejas locais em todo o mundo em desenvolvimento.
Em outras palavras, a Alemanha simplesmente tem um significado global de influência que a Bélgica não tem, o que provavelmente ajuda a explicar por que as autoridades do Vaticano ficam mais preocupadas com os acontecimentos alemães do que com os belgas.
Duas outras observações parecem pertinentes.
O simples fato da questão é que, apesar da diferença de tratamento – os alemães receberam um pouco de frieza, os belgas um abraço caloroso e amoroso – em nenhum dos casos o Papa Francisco realmente ordenou que qualquer um dos grupos se retirasse. Em vez disso, a impressão é que, apesar de quaisquer reservas que alguns de seus assessores vaticanos possam ter, o pontífice se contenta em deixar que esses desenvolvimentos aconteçam.
Se é um caso de imprudência papal ou o julgamento astuto de um CEO que sabe quando intervir e quando recuar, pode estar nos olhos de quem vê, mas por enquanto os resultados práticos são praticamente os mesmos.
Nos próximos meses, Francisco terá a chance de dar um veredicto de fato sobre o estado do catolicismo belga, já que De Kesel já tem mais de 75 anos, a idade normal de aposentadoria, e três outros prelados se juntarão a ele no verão de 2023. O que Francisco decidir fazer sobre essas vagas deve nos dizer muito sobre para onde ele quer que a Igreja belga vá.
Em segundo lugar, também parece justo dizer que os dias em que um decreto da Congregação para a Doutrina da Fé era tomado como definitivo, significando a última palavra sobre um assunto na igreja, pareceria ter acabado.
Se duas Conferências Episcopais podem romper abertamente com os termos de tal decreto sem consequências aparentes, então parece que uma decisão da Doutrina da Fé nos dias de hoje equivale a um daqueles avisos de viagem emitidos pelo Departamento de Estado dos EUA. Isso não significa que você não pode ir a um determinado lugar, apenas significa que o governo está dizendo que achamos que você não deveria – depois disso, como você organiza suas férias é com você.
Para aqueles com idade suficiente para se lembrarem de quando a Doutrina da Fé era conhecida no Vaticano como “la suprema”, ou a “congregação suprema”, por causa de sua autoridade incomparável, é realmente uma grande mudança.
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Visitas alemãs e belgas ao Vaticano são um “conto de dois países” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU