18 Outubro 2022
Naomi Cabral, prostituta transexual argentina, foi encontrada morta em 6 de outubro em um quarto de hotel na costa romana onde costumava receber clientes. Choram por ela os poucos amigos e as colegas. E o Papa. Que quis recebê-la, junto com outras trans na Praça São Pedro no dia 27 de abril passado. O primeiro de uma série de encontros. Para entender o porquê precisamos rebobinar a fita até os dias da pandemia.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 17-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Torvaianica, março de 2020. Uma longa fila de pessoas se forma em frente à porta da paróquia da Virgem Imaculada, uma igreja com vista para o mar. Trabalhadores sazonais, italianos e imigrantes, não sabem mais como conseguir uma refeição. O pároco, Dom Andrea Conocchia, tenta atender a todos, mas as necessidades se multiplicam. Há quem pede um pouco de dinheiro para pagar o aluguel, quem busca remédios, quem só quer recarregar o celular. Na multidão desponta uma transexual argentina, depois uma segunda, uma terceira. Elas passam fome, não têm mais clientes. Mas não há missas e não há ofertas. E então Dom Andrea sugere que escrevam ao Papa. Pouco depois, através do esmoleiro pontifício, cardeal Konrad Krajewski, chegam ajudas alimentares, algum dinheiro para o alugar, até o convite para vacinas contra o Covid diretamente no Vaticano.
“Fomos vacinadas antes dos italianos!” lembra rindo Marcela De Marco, uma trans uruguaia.
Algumas delas começam a pedir a Dom Andrea para ir ao Papa, querem agradecê-lo, cumprimentá-lo, conhecê-lo. O sacerdote pergunta à Irmã Geneviève Jeanningros, uma religiosa francesa que há anos trabalha entre malabaristas e artistas de rua no litoral romano. Acima de tudo, uma velha conhecida de Jorge Mario Bergoglio da época argentina. Depois de alguns dias, ela responde: “O Papa quer se encontrar com todas”. O sacerdote fica espantado: todas "significa uma centena de pessoas!". Como fazer?
A solução existe: a audiência geral de quarta-feira na Praça São Pedro. E em 27 de abril aparece um pequeno grupo: Dom Andrea, Irmã Geneviève e quatro transexuais latino-americanas. Entre elas, Naomi Cabral.
"Ele não nos julgou, nos escutou", lembra Minerva Motta, peruana. Naquele dia Claudia Victoria Salas, argentina, lhe leva empanadas. Quando um novo grupo se apresenta algum tempo depois, Francisco pergunta: “Onde está Claudia? Quero agradecer pelas empanadas”. "Agradeci a ele por me devolver a fé", conta Marcela por sua vez. “Ele me disse: 'Lembre-se de que somos todos iguais perante os olhos de Deus'”. Desde então, o Papa envia cartões e orações para algumas trans.
Desde a primeira audiência, uma ou mais vezes por mês dom Andrea e a irmã Geneviève levam um pequeno grupo de transexuais ao Papa. O fato acontece sem muita publicidade, mas diante dos olhos de milhares de fiéis. “O encontro do Papa com algumas pessoas transexuais é significativo”, observa o Osservatore Romano.
Numa audiência em julho, conta Laura Esquivel, uma trans paraguaia, “senti-me privilegiada: via todas as pessoas na praça e eu estava a 20 metros dele. Ele se comportou como uma pessoa normal. Eu beijei a mão dele, ele beijou a minha”. Agora ela gostaria de voltar, com uma desculpa: "A foto não ficou boa, eu sai com a cara torta". Vamos ver.
A relação dessas transexuais com Deus sempre foi forte, a relação com a Igreja menos. "Às cinco da manhã sempre rezo a São Jorge, meu protetor, o santo da justiça", conta Claudia Victoria Salas. Na igreja, porém, "fazem o sinal da paz, depois saem e te ignoram". Ou pior. "Perdi a fé, agora comecei a frequentar um pouco à igreja", diz Claudia Valentina Tejerina, argentina. E especifica: "Nós somos o que queremos ser, mas há pessoas que hipocritamente se escondem atrás de uma família". Seus clientes são católicos? “Estamos na Itália!”, resume com uma risada.
Minerva conta: "No meu país eu era catequista, participava de um coral... na Europa me afastei porque as pessoas olham para você com maldade". O encontro com o Papa mudou alguma coisa? “A mudança se vive por dentro”, responde Claudia Valentina: “Os outros não sabem que fomos ao Papa, sinto-me mais à tranquila comigo mesma”. Após a pandemia, as trans retomaram a prostituição. Elas não sentem que precisam mudar suas vidas? “Estou pronta para fazer faxinas nas casas, já fui cabeleireira, sei trabalhar na cozinha”, responde Claudia Victoria. "Mas não me querem".
Segundo Marcela, "se você é transexual, todas as portas se fecham: igreja, escola, trabalho, as pessoas te apontam com o dedo". Vocês se sentem pecadoras? “Somos todos pecadores”, responde Claudia Valentina, “e todos somos feitos à imagem de Deus”. Marcela comenta: "Quem está livre do pecado, que atire a primeira pedra, como disse Jesus à Madalena: por isso meu segundo nome é Magda".
Na quarta-feira passada, Irmã Geneviève voltou ao Papa com algumas transexuais e levou-lhe um cartão com a foto de Naomi Cabral e a lembrança daquela primeira audiência. “Rezem, rezem, rezem”, disse Francisco, que quis guardar a foto. O mundo a descartou, ele se lembra dela.
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Naomi, Claudia e as outras trans em peregrinação ao Papa Francisco. “Ele não julga, nos escuta” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU