06 Setembro 2022
"Reduzido a uma unidade de produção, cada indivíduo que vive do trabalho é estimulado a se compreender como uma unidade de capital humano para promover a produção da riqueza, da qual pouco participará em decorrência da desigualdade estrutural na distribuição dos frutos do trabalho de todos", escreve Clemente Ganz Lúcio, Sociólogo, assessor do Fórum das Centrais Sindicais, consultor, ex-diretor técnico do DIEESE (2004/2020).
O neoliberalismo é a forma atual do desenvolvimento capitalista sob a hegemonia dos muito ricos, em especial da riqueza financeira. Poder econômico e poder político são articulados para promover transformações disruptivas do sistema produtivo para gerar e acumular riqueza em escala global. As mudanças são extensas e atingem todo o sistema econômico, social, cultural e político, com impactos profundos sobre o mundo do trabalho e o sindicalismo. Trata-se de mudanças que o regime de acumulação de riqueza engendra e que promove dimensões de uma outra sociedade.
No curso da globalização a pandemia e seus efeitos econômicos, sociais e políticos aflorou os problemas e abriu oportunidades para mudar a trajetória da história em curso. São sementes lançadas em um solo social global que está contaminado pelos conflitos na Ucrânia e dos EUA com a China e pela catástrofe ecológica. O contexto é de muita adversidade.
Há urgência no muito que se tem para fazer diante das oportunidades e desafios. No Brasil, por exemplo, o processo eleitoral abre espaço para o debate propositivo sobre as escolhas relacionadas ao nosso futuro. Escolhas que podem, e devem, reorientar nosso desenvolvimento para superar as mazelas das desigualdades, da pobreza, da baixa produtividade, do descompromisso social e ambiental. Superar a agenda de transformação neoliberal regressiva em curso, reindustrializando o país, fortalecendo o papel indutor e investidor do Estado, a essencialidade das políticas públicas de saúde e educação, a valorização da negociação coletiva e do diálogo social, entre tantas outras diretrizes fundamentais para o desenvolvimento sustentável.
Para isso é necessário conhecer e compreender o processo histórico do neoliberalismo, de como molda a sociedade atual e induz seu futuro, elaborando a crítica propositiva capaz de superar suas mazelas, tarefa hercúlea e para muitos. Uma das contribuições de qualidade com esse fim foi produzida por Pierre Dardot e Christian Laval no livro “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”.
Já no prefácio os autores indicam que há uma “pane de imaginação” na esquerda, seja para analisar e interpretar e, principalmente, para criar a superação do neoliberalismo.
O fundamento de partida para os autores é que o neoliberalismo, para além de ser um tipo de política econômica ou de ideologia, é um sistema que se espalha pelo planeta e estende a lógica do capital para todas as relações sociais e esferas da vida. A essencialidade neoliberal está no individualismo, na competição e no interesse privado como princípio político e econômico universal, formas que dominam a vida social e que minaram os meios para se promover compensações, contrapartidas e compromissos, elementos estruturantes do sistema econômico e político socialdemocrata que emergiu no pós-guerra em meados dos anos de 1940.
É como se a experiência cotidiana tornasse a todos gazelas e leões, como no provérbio africano: “Todas as manhãs, a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr.”
Estamos submetidos a um cotidiano no qual todos correm, sempre atrasados, na disputa para competir por algo, contra alguém ou contra todos. Nessa corrida, fracassamos como sociedade, como coletivo que promove o bem comum. A solidariedade perde para a competição, o diálogo sucumbe ao conflito, a fraternidade é derrotada pelo ódio, o diferente é humilhado ou eliminado. Nesse tsunami transformador neoliberal ficou muito mais difícil para a ação coletiva reunir e agregar.
No mundo do trabalho, a tecnologia avança em extensão, profundidade e velocidade sem precedentes contra a quantidade e a qualidade dos empregos. As empresas mudam suas estratégias de gestão para responder à competição e para entregar maiores lucros aos acionistas. Os trabalhadores sofrem com a precarização, a insegurança, a desproteção individual, o enfraquecimento dos sindicatos e a desvalorização da negociação coletiva.
Na última década e meia mais de 140 países fizeram reformas laborais, a maioria de cunho neoliberal, flexibilizando formas de trabalho, de contratação, de remuneração, de jornada de trabalho, facilitando a demissão individual e coletiva, retirando poder de representação dos sindicatos, restringindo âmbitos de negociação e de contratação coletiva, desqualificando o direito ao emprego digno.
Reduzido a uma unidade de produção, cada indivíduo que vive do trabalho é estimulado a se compreender como uma unidade de capital humano para promover a produção da riqueza, da qual pouco participará em decorrência da desigualdade estrutural na distribuição dos frutos do trabalho de todos. A mercantilização das relações socais destroem o que é público e coletivo, o que se desdobra na pioria gradativa e contínua da vida, inclusive portas para movimentos reacionários, para surgimento do neofascismo e o enaltecimento do egoísmo e da competição como virtude da modernidade.
Para os autores, além de compreender o sistema neoliberal, presente nas formas de governar, na gestão das empresas, nas políticas institucionais, é preciso urgência na tarefa de superar a ‘pane de imaginação’ que tem levado muitos a tentar governar pela esquerda essa agenda neoliberal. Indicam os autores que é preciso colocar em debate, nesta sociedade real, a prospecção estratégica de outra razão do mundo. Trata-se de um ótimo mote para entrar no debate eleitoral no Brasil.
No atual momento histórico, muitas nações tentam superar o travamento econômico provocado pela crise sanitária, pela insanidade neoliberal e pelos conflitos bélicos e tensões internacionais, recolocando centralidade para o mundo do trabalho, para o papel do Estado e do investimento público, buscando uma industrialização com compromisso socioambiental, através de uma agenda de transição digital e ambiental pactuada, de proteção e modernização das democracias para tratar dos conflitos, do planejamento público, do esforço coletivo compromissado.
Em outubro, temos a oportunidade, como nação, de colocar nosso país em uma nova trajetória. Desde já superando um aspecto da nossa pane de imaginação, oferecendo à sociedade um arranjo político amplo de governança e comprometido com um processo de mudança contínuo e longo, que enfrente e supere as mazelas que assolam nossa vida em sociedade, capaz de promover o desenvolvimento sustentável econômico, social, político e ambiental.
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Um passo para enfrentar a “pane de imaginação”. Artigo de Clemente Ganz Lúcio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU