23 Agosto 2022
“Em todos os lugares, as mulheres negras de fé estão se recusando a aceitar a mentira de que não podemos viver no que sabemos ser verdade sobre quem somos – e isso é considerado sagrado. Somos sexuais, sensuais e espirituais. Somos religiosas, somos instrumentos e justas. Somos humanas e somos santas. E à medida que continuamos a possuir essas verdades para nós mesmas, será o ponto de partida para as gerações de meninas da Igreja que estão vindo depois de nós”, escreve a escritora Candice Marie Benbow, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 20-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Candice Marie Benbow escreve sobre teologia, feminismo negro e estética para diversas revistas dos Estados Unidos da América. Neste ano lançou o livro “Red Lip Theology: For Church Girls Who’ve Considered Tithing to the Beauty Supply Store When Sunday Morning Isn’t Enough” (“Teologia dos Lábios Vermelhos: para meninas da Igreja que consideram pagam dízimo a loja de cosméticos quando o domingo de manhã não é suficiente”, em tradução livre), pela editora Convergent.
“Lord, place me … I want to be centered in thy will” (“Senhor, reconheça-me... quero estar centrada na tua vontade”). Mixadas com os sons do icônico pioneiro da bounce music de Nova Orleans, DJ Jimi, essas palavras, escritas por Elbernita “Twinkie” Clark do famoso grupo gospel The Clark Sisters, fornecem a base de “Church Girl”, uma faixa de destaque no recém-lançado sétimo álbum de estúdio de Beyoncé, “Renaissance”.
Desfocando as linhas entre o sagrado e o profano, o ícone criado em Houston – e a própria garota da Igreja – oferece uma meditação e um hino celebrando a cura, a evolução e o poder da autenticidade.
Faz sentido que Bey recrute The Clark Sisters para tal empreendimento.
Desbravadoras por direito próprio, elas ultrapassaram os limites da música gospel de maneiras que fizeram muitas pessoas da igreja agarrarem suas pérolas. O medo de seu impacto não foi mais evidente do que quando a liderança de sua denominação, A Igreja de Deus em Cristo, proibiu sua mãe, Mattie Moss Clark, que serviu como ministra internacional de música, de se apresentar novamente com suas filhas após o Grammy Awards de 1983. Para eles, as irmãs Clark estavam se tornando muito seculares e, embora ela fosse sua mãe, ela era antes de tudo uma líder dentro da denominação, e representá-las na mais alta ordem importava mais do que qualquer coisa.
E, como “Renaissance” é uma ode à cultura black disco, house e ballroom, uma amostra de Clark Sisters é a escolha perfeita. Como os cristãos queer negros estavam sendo continuamente expulsos da igreja devido a teologias violentas e em busca de santuário, festas e clubes se tornaram um refúgio. Histórias sobre como era estar no meio da pista de dança quando “você trouxe a luz do Sol” caiu deixaram claro que o Espírito Santo está em toda parte. Quando aqueles entre nós não podiam sentir Deus na Igreja, pegamos o Espírito Santo no clube – trilha sonora de cinco irmãs de Detroit que só queriam fazer a vontade de Deus.
Mas talvez seja ouvir a voz de Twinkie por trás de Beyoncé, cantando, “Eu estive de pé e terminei... senti como se tivesse movido montanhas”, que torna essa música de outro mundo. Embora aspectos da história de sua vida tenham se tornado o material do folclore da Igreja Negra, a cinebiografia da Lifetime de 2020, “The Clark Sisters: First Ladies of Gospel”, ofereceu uma visão real de Twinkie Clark. De acreditar que seus sonhos tiveram que ficar em segundo plano em relação aos de todos em sua família, a um negócio obscuro que lhe custou tudo, a amar o homem errado, a um relacionamento às vezes tenso com sua mãe, a uma hospitalização de saúde mental e tudo mais – Twinkie incorporou a luta e a resiliência de todas as garotas da Igreja que querem amar a Deus e suas mães e encontrar uma maneira de amar a si mesmas. E sua personagem, interpretada por Christina Bell, ecoou nossos sentimentos em uma cena em que Clark, interpretada por Aunjanue Ellis, repreende sua filha por dizer que ela está fazendo tudo o que pode para agradá-la e não a Deus. Twinkie confessa dolorosamente: “Não sei a diferença”.
E ainda com “Church Girl”, Beyoncé está nos encorajando a descobrir essa diferença e viver nela. Para abraçar a verdade de que nossas vidas pertencem a nós e a mais ninguém. Que os julgamentos dos outros – embora reais e muitas vezes dolorosos – são apenas ilusões e nunca devem restringir a liberdade que sempre foi nossa:
“I'm warning everybody…
soon as I get in this party…
I'm gon let go of this body…
I'm gonna love on me”.
(“Estou avisando a todo mundo...
assim que eu entrar nessa festa...
vou soltar esse corpo...
vou me apaixonar por mim”).
Algo sobrenatural acontece quando aproveitamos o poder de amar a nós mesmos e resistir às narrativas que dizem que devemos olhar, pensar e viver de uma certa maneira para ser considerada uma mulher cristã.
Mas abraçar essa realidade não é tão fácil quanto parece. Poderia ser por isso que Bey garantiu que, no álbum, “Church Girl” siga o single principal, “Break My Soul” – um hino que nos lembra que esses poderes não vencem, não importa o quão brutais sejam? Que, depois de toda a descolonização de nossa fé e nos afastando de teologias prejudiciais, possamos tomar nossa “nova salvação”, construir nossas próprias fundações e prosperar. Depois de todo o trabalho que fizemos para ficar bem, merecemos dançar. Podemos estourá-lo, soltá-lo e agitá-lo – e cada pedacinho disso é sagrado.
Por mais que eu ame essa música – e para ser bem claro: eu amo – o que eu mais amo é que Beyoncé não apenas dá permissão às meninas da Igreja para dançar, ela também nos defende. Em um mundo onde pastores se tornam virais semanalmente condenando mulheres negras solteiras por respirar e nos acusando de viver de maneiras que diminuem os homens negros, nossa irmã vem em nossa defesa:
“She ain't trying to hurt nobody…
she just trying to do the best she can…
happy on her own…
with her friends, without a man”.
(“Ela não está tentando machucar ninguém...
ela só está tentando fazer o melhor que pode...
feliz, sozinha...
com suas amigas, sem um homem”).
Porque, na plenitude de quem somos – independentemente de nossos status socioeconômicos ou de relacionamento, fomos e sempre seremos suficientes.
Algo está acontecendo. Em todos os lugares, as mulheres negras de fé estão se recusando a aceitar a mentira de que não podemos viver no que sabemos ser verdade sobre quem somos – e isso é considerado sagrado. Somos sexuais, sensuais e espirituais. Somos religiosas, somos instrumentos e justas. Somos humanas e somos santas. E à medida que continuamos a possuir essas verdades para nós mesmas, será o ponto de partida para as gerações de meninas da Igreja que estão vindo depois de nós.
Haverá aqueles que irão protestar contra esta música. Eles vão chamá-lo de demoníaco, sugerir que confirma os rumores dos Illuminati e dizer que nenhuma “mulher de Deus” que se preze deve querer ser uma “menina da Igreja”.
Para isso, eu digo: “Quem se importa?”.
Quando você, como Bey disse, está “finalmente do outro lado” da dor e da mágoa – sorrindo e “nadando pelos oceanos” de suas próprias lágrimas, você realmente não se importa com o que as pessoas pensam. Porque você está viva e livre. E estar centrada em uma vontade que lhe permite florescer nesse tipo de verdade autêntica radical, transformadora de vida, é a única coisa que importa.
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Beyoncé convida as meninas da Igreja para celebrarem sua liberdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU