10 Agosto 2022
Em um tuite, Francisco lembra o dia de hoje que a ONU dedica aos povos indígenas para não esquecer a dívida que temos com eles pela exploração e colonização das terras. "Apoiar estes povos - comenta da Amazônia o padre comboniano Dario Bossi - não pode ser uma questão de solidariedade folclórica, mas é a forma que temos de defender o Planeta"
A reportagem é de Gabriella Ceraso, publicada por Vatican News, 09-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A milhões de pessoas pertencentes aos povos indígenas que habitam quase um quarto da superfície da terra - guardiões e protetores da criação mas, ainda assim, mais ameaçados do que outros pelas mudanças climáticas e pelo trabalho de exploração humana da Terra - são dirigidas hoje as palavras de Francisco. O papa, em um tuite, retoma alguns dos conceitos reafirmados em sua recente viagem ao Canadá em sua “peregrinação penitencial” junto aos povos indígenas que habitam aquela imensa terra à qual a colonização causou tanto mal.
“Como é precioso aquele senso de familiaridade e de comunidade que é tão genuíno entre os povos indígenas! E como é importante cultivar bem o vínculo entre os jovens e os idosos, e preservar uma relação saudável e harmoniosa com toda a criação!”
Quão precioso é este sentido de família e comunidade tão genuíno entre os #PovosIndígenas! E como é importante cultivar bem o vínculo entre os jovens e os idosos, e manter uma relação sadia e harmoniosa com toda a criação!
— Papa Francisco (@Pontifex_pt) August 9, 2022
A ocasião é o Dia Mundial dos Povos Indígenas, dedicado em particular este ano pela ONU ao papel da mulher nas diversas comunidades, sua espinha dorsal e suportes fundamentais na transmissão e conservação do conhecimento tradicional ancestral. "Para construir um futuro justo e sustentável - escreve Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas para a ocasião - que não deixe ninguém para trás, as vozes das mulheres indígenas devem ser amplificadas". "Reafirmamos - ecoa o Alto Representante da União Europeia Josep Borrell - nosso firme compromisso em favor do respeito, proteção e exercício dos direitos dos povos indígenas sancionados na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e pelo direito internacional dos direitos humanos".
E precisamente sobre os conceitos de direito, respeito, cuidado e também de reconciliação e cura, em relação a um passado e um presente ainda de colonização, Francisco no Canadá plasmou muitos de seus discursos, que podem ser estendidos a todos os povos indígenas existentes no mundo a que se dirige este dia, pois marca a primeira reunião do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Povos Indígenas e seus direitos, realizada em 1982.
Também a Amazônia, o grande pulmão verde do mundo, é habitada e cuidada, sempre que possível, ainda por povos indígenas. Com o padre Dario Bossi, missionário comboniano na Amazônia oriental, reconstituímos alguns pontos marcantes do magistério de Francisco, reescrito no Canadá e dedicado aos indígenas que - diz o missionário - "nos provocam a uma conversão radical, a única que pode salvar o planeta".
Povos indígenas: guardiões do grande valor da harmonia, do bem viver. Foi assim que o Papa falou no final de sua viagem ao Canadá e nos fez conhecer melhor muitos aspectos. Hoje é um dia que a ONU dedica a essas populações, como você descreveria sua vida e seus valores, que é seu tesouro?
Cada cultura colhe imensas riquezas, cultivadas a partir dos territórios que identificam um povo e transmitidas de geração em geração. O mundo de hoje, porém, está se transformando em uma imensa “monocultura”, tanto do ponto de vista da produção agrícola quanto da homogeneização das culturas.
É absolutamente crucial resgatar a pluralidade e a convivência das culturas, resistir ao único modelo do consumismo e ao seu círculo vicioso, que extrai, vende e descarta matérias-primas e pessoas. A cultura dos povos indígenas está entre as mais preciosas para nós, porque nos provoca a redescobrir profundas conexões entre a vida humana e todo o restante da criação.
Seu tesouro está na visão que não separa o ser humano de todos os outros seres, animados e inanimados, com os quais nos relacionamos. Aqui na Amazônia dizemos que são esses povos que preservam a tecnologia mais sofisticada, aquela que há milênios permite uma convivência integrada e não destrutiva entre as comunidades humanas e a floresta.
Ao contrário, a nossa tecnologia, considerada de ponta, está cavando o túmulo da vida, saqueando os territórios e exterminando a biodiversidade. Os povos indígenas, com seu profundo misticismo e percepção da presença viva de Deus nas relações entre todos os seres criados, nos provocam a uma conversão radical, a única que pode salvar o Planeta.
Ainda hoje - disse o Papa durante a peregrinação penitencial ao Canadá - existe o colonialismo, uma colonização ideológica que tenta sufocar o apego natural aos valores dos povos indígenas. Pode-se dizer isso também da Amazônia? Quais são os perigos hoje e como evitá-los?
Quando estávamos preparando o Sínodo da Amazônia, no longo e capilar exercício de escuta das comunidades, havia um forte apelo à “descolonização da fé”. As pessoas o diziam de muitas maneiras, pedindo que a presença da Igreja fosse sobretudo de escuta, de respeito, de inculturação profunda e paciente, dando prioridade ao clamor dos povos e da terra e aproximando-se das comunidades como o Senhor fez no Êxodo, que desceu para caminhar junto com seu povo, e como Jesus fez, que se encarnou em uma cultura e percorreu pacientemente por suas luzes e sombras.
Em vez disso, ainda hoje, muitas vezes identificamos a evangelização com a “plantatio Ecclesiae”, uma Igreja com rosto ocidental, em seus ritos, estruturas e protagonistas. Repensar a Igreja com rosto amazônico significa rever a formação sacerdotal e religiosa, apostando nas pessoas leigas que respiram e vivem a profundidade e o mistério da cultura e da mística dessas terras e águas. A colonização ideológica está muitas vezes ligada a interesses políticos e econômicos, pois abre caminho para outras formas de conquista da Amazônia.
A Igreja, ao invés de defender a vida das pequenas comunidades e da floresta, pode ser cúmplice daqueles que destroem e saqueiam, abençoar grandes projetos de morte e de monocultura, aliar-se a escolhas políticas que discriminam os povos indígenas e se tornam responsáveis pelo genocídio e ecocídio.
É preciso vigiar atentamente esse perigo. Recentemente, no Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) celebrado em Belém, porta de entrada para a Amazônia oriental, uma forte presença inter-religiosa e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) denunciaram a conivência dos fundamentalismos religiosos com a morte da floresta, das culturas e dos povos amazônicos.
O rosto da Igreja hoje entre os povos indígenas: as perguntas dos missionários sobre seu próprio testemunho e sobre as modalidades de anúncio É possível ser Igreja “casa de reconciliação”?
Reconciliação, reparação e regeneração são palavras-chave para a presença da Igreja na Amazônia e, mais amplamente, entre os povos indígenas. O Cuidado da Criação, da Casa Comum, é a missão desta Igreja Samaritana, que unge com o óleo da aliança, da presença, do respeito e da denúncia profética as feridas da Terra e dos corpos ameaçados e machucados dos pequenos, que defendem seus territórios. Temos experiências muito bonitas, na Amazônia, de uma Igreja a serviço da vida. Estou pensando no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que há 50 anos defende a causa dos povos indígenas e mostra a eles o rosto de um Deus de compaixão e justiça.
Estou pensando na evangelização dos missionários em Roraima, que com um caminho paciente construíram comunidades cristãs indígenas, no profundo respeito por sua cultura, e contribuíram para a formação de líderes que agora assumem o protagonismo na vida de fé e na as grandes escolhas sócio-políticas. Penso nas Pequenas Irmãs de Jesus e na sr. Genoveva, 60 anos de evangelização silenciosa e profundamente inserida no povo Tapirapé do Araguaia.
E não podemos esquecer o testemunho de grandes profetas, como dom Pedro Casaldáliga, que nos mostrou que não existe reconciliação para os povos indígenas sem o seu direito à terra. E os muitos mártires, como o padre Ezequiel Ramin, “amigo do peito” dos povos indígenas em Rondônia, mortos pela opção da Igreja local a serviço da justiça.
Começa hoje em Quito a contagem regressiva 80x25, para contar os dias que faltam para alcançar o objetivo global de proteger 80% da Amazônia até 2025. Que apelo gostaria de lançar, também em nome dos povos indígenas?
Estamos realmente no limite, enfrentando o ponto sem volta para a Amazônia. Se o limite de desmatamento de 20% for ultrapassado, entraremos em um círculo vicioso de desertificação irrefreável desse bioma. O Fórum Social Pan-Amazônico declarou a emergência climática para a Amazônia e da Amazônia para o mundo.
Povos indígenas e povos tradicionais são os guardiões da floresta viva e demonstram que seu direito à terra e à autodeterminação em seus territórios garante a preservação dos ecossistemas e da biodiversidade. No Brasil, por exemplo, a resistência indígena é hoje o movimento mais organizado e forte da sociedade civil, reivindicando direitos humanos e da natureza e denunciando um modelo econômico-político míope e autorreferencial de destruição deliberada da Amazônia.
Apoiar os povos indígenas hoje não pode ser uma questão de solidariedade folclórica, mas deve ser uma opção em defesa de seu direito à terra e à vida. É a forma mais eficaz de proteger a Amazônia e todo o planeta.
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Povos indígenas, o Papa: seu senso de comunidade é genuíno e precioso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU