"Com a falta de desenvolvimento e com os políticos que roubam os recursos que deveriam ser usados para construir estradas e hospitais melhores, as pessoas continuarão a morrer sem motivo em acidentes que poderiam ser evitados ou por ferimentos que poderiam ser curados. Enquanto isso não acontecer, a morte continuará sendo hipervisível, gerando uma sociedade cada vez mais insensível e indiferente ao sofrimento, à morte e ao morrer", escreve Elnathan John, autor e escritor satírico, em artigo publicado por Internazionale, 05-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você conhecia Graham há pouco tempo. Fazia apenas alguns meses desde que você se encontrou com ele na casa de um amigo em comum. Era a pessoa mais idosa na sala com uma bela barba grisalha. Falava pouco, mas quando o fazia, todos paravam para ouvir sua voz baixa de barítono enquanto palavras cuidadosamente escolhidas saíam de seus lábios. Você sempre quis ter amigos homens mais velhos e mais tarde, incentivado por um amigo em comum, deu um jeito de vê-lo novamente.
Ele convidou você para o seu apartamento. Ele cozinhou e vocês dois comeram, beberam e conversaram sobre escrever, política, ativismo. Ele falou sobre um projeto de escrita com o qual estava tendo algumas dificuldades. Então você lhe contou que estava pensando em abandonar o caminho da escrita em tempo integral, pois estava ficando cada vez mais difícil pagar as contas.
Uma semana depois do jantar ele ligou para você. Você atendeu a ligação, alegre.
"E aí, Graham!" E em troca recebeu uma resposta lacônica. Ele tinha visto o seu e-mail, contou. Ele cuidaria disso. Mas agora ele tinha que pegar um avião. E então ele explodiu em lágrimas.
"Meu filho", ele disse. "Meu filho se matou ontem à noite." E então ele começou a se desculpar, garantindo que daria uma olhada ao seu e-mail quando voltasse. Você protestou, reiterando que não havia nada mais importante do que lidar com esse trágico acidente. O fato de que as pessoas peçam desculpas por chorar em público (algo muito mais comum no Ocidente do que na Nigéria, onde você nasceu), parecia absurdo para você.
Uma onda de tristeza tomou conta de você, tudo ficou mais lento até quase parar completamente. Os céus de Berlim, já cinzentos, ficaram ainda mais cinzentos. O filho estava a quilômetros de distância, mas um homem que você conhecia e com quem havia jantado recentemente havia perdido um filho jovem. Fazia três anos desde que você se vira tão perto da morte em Berlim. Dois anos depois de você se mudar para
Berlim, uma mulher do seu bairro, que se distinguia das demais porque sempre lhe cumprimentava, morreu de câncer.
Ainda hoje você desconhece seu sobrenome. Não havia informes espalhados pelo bairro anunciando a sua morte. Seus vizinhos não se reuniram em sua casa para prantear. Nenhum informe de funeral. Ela havia saído do seu bairro e do mundo em silêncio e discretamente, como um grão de açúcar que cai de uma rosquinha.
Você continuou pensando nela por vários dias. Ela sempre pareceu em ótima forma, animada, sempre tinha uma resposta pronta e piscava para você. Você a via quando ela vinha buscar o menino na creche perto do seu apartamento. E aí você percebeu que em dois anos jamais havia ouvido falar de nenhuma pessoa morta na Alemanha. É óbvio, havia pessoas na cidade que morriam todos os dias. Mas você não as via. A morte havia sido removida do olhar público, apagada das conversas educadas.
Esta era uma sociedade com a vida entre as mãos e não era maculada pelo caos que se gera quando alguém morre ou está à beira da morte. O luto era algo privado quanto ir ao banheiro, e o ato de morrer havia se tornado invisível, levado para instituições especiais e limitado a familiares muito próximos. A morte e o morrer foram expulsos do mundo dos vivos. Se isso tivesse acontecido na Nigéria, você pensava, eu saberia que ela tinha câncer, teria ido visitá-la, teria ido ao seu funeral; ser um vizinho teria sido suficiente para justificar a sua presença e as suas lágrimas no funeral.
Na Nigéria, onde você viveu toda a sua vida antes de se mudar para a Alemanha, você via a morte um dia sim outro não. Você observava os detalhes dolorosos e minúsculos de cada aspecto da morte. Você via pessoas devastadas pela doença até partirem, você via pessoas suspeitas de roubar serem espancadas selvagemente na rua, às vezes até a morte, você via motociclistas sem capacete morrendo em acidentes, você via pessoas massacradas em tumultos religiosos, corpos mutilados em choques frontais ou pessoas que pareciam saudáveis ficarem fracas e morrerem.
Sem mencionar as pessoas que adoeciam e morriam de uma coisa qualquer, da malária a todos os tipos de "doenças rápidas", um termo usado pelos nigerianos para indicar o curto espaço de tempo entre uma doença misteriosa qualquer e a morte.
Quando você era pequeno, vivia em uma comunidade de maioria muçulmana que tinha uma pequena ilha cristã onde acontecia todo tipo de coisas proibidas: destilavam-se bebidas alcoólicas locais, vendiam-se e consumiam-se porcos e cães. Como resultado, os porcos criados por essa comunidade cristã muitas vezes vagavam pelos bairros muçulmanos próximos. Sempre que isso acontecia, as crianças gritavam “Alade! Alade!" anunciando a todos o avistamento de um porco. O porco em questão era enxotado e, se capturado, morto a pancadas.
A primeira vez que seu irmão mais novo viu um cadáver ele tinha cerca de dez anos e estava em um carro que atravessava uma cidade devastada por um motim de cunho religioso. Ele viu uma pessoa com o crânio aberto e apontou para ela antes que alguém no carro, você não lembra quem, conseguisse cobrir seus olhos. Às vezes você tenta se lembrar da primeira vez que viu um cadáver. Você não consegue se lembrar de um período de sua vida em que não tenha visto pessoas mortas ou moribundas.
Quando a mulher do seu bairro de Berlim morreu, você tentou desvendar as razões de seu desconforto. Durante dois anos você tinha vivido em um sonho, onde as pessoas não morrem, onde as pessoas doentes e que sofrem acidentes acabam em segurança em boas ambulâncias e as únicas pessoas obrigadas a lidar com cadáveres são profissionais formados para isso.
Quando seu irmão parou de respirar depois que você arrastou o corpo para fora de uma piscina na Nigéria em 2003, não havia número de telefone para ligar, ambulâncias esperando, nem paramédicos e policiais prontos para isolar o local do acidente e poupar o público da visão de seu corpo frio e sem vida. Você teve que implorar a um desconhecido que estava na piscina para levar vocês ao hospital no carro dele. O motorista era jovem e relutante no início, mas quando viu as lágrimas em seus olhos, ele pegou as chaves e disse para você segui-lo. No enterro estavam todos os vizinhos, todos os membros da igreja, todos os amigos dele e os seus e dos seus pais, todos os parentes, até a casa ficar tão cheia de gente que as pessoas tiveram que sair para dar lugar aos outros.
A primeira vez que você matou um animal que não era um inseto, foi para comer. Sua mãe trouxe para casa um frango vivo como costumava fazer pelo menos a cada duas semanas. Ela não confiava em frangos mortos empilhados no mercado. Ela confiava menos ainda em frangos congelados.
Era importante que o abate acontecesse do jeito halal, então ela comprava os frangos de um criador do bairro e os trazia para casa. Você a viu fazer isso, mas agora você estava crescido o suficiente para fazer isso sozinho. Antes você se limitava a ajudá-la a arrancar as penas e limpar as entranhas. Daquela vez ela deixou você enfiar uma faca no pescoço do animal. A faca tinha que ser afiada porque ela não queria que o frango sofresse. Nada do frango era desperdiçado, nem a cabeça, nem as patas, nem mesmo os intestinos.
Quando um vegano perguntou, em uma sala onde você também estava na Alemanha, se as pessoas comeriam carne tendo que matar animais com suas mãos, você caiu na gargalhada.
Depois de alguns instantes, você percebeu que era o único a rir. Você percebeu que nenhum dos outros carnívoros jamais havia matado um animal ou visto alguém fazer isso.
Nos minutos seguintes, você se viu atrapalhado a explicar que a sua risada não era a risada de um louco sanguinário e que matar animais para comê-los não significa atribuir a eles menos valor nem que isso lhe induz a parar de comer carne. Em particular, tendo crescido em um período e em um país onde não havia nenhuma forma desumana de criação de carne, você apreciava cada parte do animal que estava morrendo para nos dar o que comer. Você não acredita que tenha conseguido convencer ninguém.
À medida que os anos passavam junto com você na Europa, você se tornava cada vez menos insensível à morte. Agora, a maioria das mortes de que acaba sabendo são de pessoas que você conhece na Nigéria, na maioria dos casos informados pelo WhatsApp por sua irmã que nunca deixa de lhe dizer se alguém está em fim de vida ou morto.
Quando as mensagens dela aparecem na tela, você se prepara antes de abri-las. Ela nunca avisa antes de enviar fotos de pessoas no hospital ou buracos de bala nas paredes de casa quando os sequestradores tentaram entrar para levar ela e seus filhos. Você não sabe quando ou com que frequência ela lhe contará que esta ou aquela pessoa estão mortas.
Nos últimos dois anos, uma pandemia global que matou milhões de pessoas em todo o mundo, jogou a morte em nossas caras. Infelizmente, especialmente no Ocidente, isso não trouxe a nenhuma forma de saudável luto coletivo.
Pior ainda, a natureza da doença é tal que a morte pelo vírus ocorre no mais completo isolamento. As pessoas morrem sem que seus familiares possam apertar sua mão, sem que os filhos ou os netos possam despedir-se com um beijo.
O luto é uma emoção difícil e leva tempo para poder ser enfrentada. E fica ainda mais difícil quando somos obrigados a fazê-lo sozinhos, longe de olhos que não querem ser obrigados a pensar na mortalidade.
Você imagina constantemente um mundo longe dos dois extremos, não um mundo asséptico, em que a morte e o morrer estejam completamente dissociados dos vivos, mas nem mesmo um mundo em que a morte e o morrer sejam tão hipervisíveis que as pessoas se tornem insensíveis à violência e percam o sentido do valor da vida humana.
Você imagina um mundo onde podemos nos sentar em um espaço compartilhado com a morte, onde podemos contemplar a vida enquanto ela morre, em que o processo de morrer não deve implicar a exclusão da comunidade, em que o luto público é um processo saudável, se não revigorante, em que as pessoas podem contemplar coletivamente a mortalidade.
Quando ocorre uma tragédia coletiva ou uma pessoa famosa morre, você pensa não apenas no luto público, mas no direito de chorar em público uma perda privada; pensa em sociedades que não sejam apenas voyeuristas ou sentimentais, mas permitem a expressão pública da dor.
Na Nigéria e em lugares semelhantes, você sabe que isso só poderá acontecer se o governo melhorar e se a segurança for levada a sério. Porque toda forma de injustiça, seja social, jurídica, econômica ou política, cria um terreno fértil para a justiça do tipo “faça você mesmo”, para protestos violentos e crimes oportunistas e sangrentos.
Com a falta de desenvolvimento e com os políticos que roubam os recursos que deveriam ser usados para construir estradas e hospitais melhores, as pessoas continuarão a morrer sem motivo em acidentes que poderiam ser evitados ou por ferimentos que poderiam ser curados. Enquanto isso não acontecer, a morte continuará sendo hipervisível, gerando uma sociedade cada vez mais insensível e indiferente ao sofrimento, à morte e ao morrer.
Em países como a Alemanha, as culturas devem evoluir para criar um espaço saudável para poder falar sobre a dor privada e a morte. Ninguém deveria se desculpar por chorar em público quando memórias traumáticas voltam à sua mente. Em vez de desviar o olhar com constrangimento, devemos aprender a nos sentar ao lado da morte e olhá-la nos olhos.
Enquanto Graham se coloca em viagem para passar um tempo com sua família e enterrar seu filho, você pensa sobre a natureza imponderável da dor privada. À morte que é parte da vida e ao processo de viver que é também o processo de morrer. Pensa em Graham e na imensa confiança que implica o compartilhamento da própria dor em público.
Você não estranha que ele tenha caído no choro ao telefone com você. Não lhe causa embaraço. E quando ele voltar do funeral, você estará lá. Não haverá limites além dos quais se tornará difícil ou embaraçoso. Se ele estiver taciturno, perdido em seus tristes devaneios, você ficará lá com ele. Se ele quiser chorar de novo, você ficará com ele, você contemplará a mortalidade com ele, você não chafurdará na autocomiseração, mas você manterá a morte no cálice da vida e beberá dele, e depois talvez você também encontrará algo de que rir.