Religião, laicidade e democracia: cenários e perspectivas. Artigo de Eliseu Wisniewski

Foto: Ryunosuke Kikuno | Unsplash

22 Julho 2022

 

"Dentre as inúmeras contribuições oferecidas pela SOTER em sua trajetória, no contexto atual, a publicação de Religião, laicidade e democracia: cenário e perspectivas constitui em mais uma expressiva contribuição. Os conteúdos das reflexões desta obra construída coletivamente possibilitaram pensar a temática: religião, laicidade e democracia nas suas diversas perspectivas de abordagem, na sua interdisciplinaridade e na sua inegável atualidade" , escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Religião, laicidade e democracia: cenário e perspectivas, de Cesar Kuzma, Maria Clara Lucchetti Bingemer e Andreia Serrato.

 

Eis o artigo. 

 

Religião, laicidade e democracia: cenários e perspectivas foi o tema do 33º Congresso Internacional da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER). Em meio à pandemia da Covid 19 – o Congresso foi realizado de modo remoto entre os dias 12 e 16 de julho de 2021. A intenção do Congresso foi a de oferecer um discurso crítico e reflexivo do contexto que nos envolve, discernindo realidades e apontando horizontes e perspectivas, atendendo a estes objetivos:

 

a) oferecer uma análise do atual contexto social, político e religioso, com atenção à laicidade do Estado e à emergência de novos movimentos sociais, políticos e religiosos que interagem na configuração democrática. Dentro deste cenário, situar a perspectiva das religiões e a responsabilidade que possuem perante este quadro, e da teologia como fonte de interrogação.

 

b) fundamentar os entendimentos sobre a democracia e laicidade para, a partir disso, discutir a questão do Estado, a questão do Direito, aspectos relevantes às liberdades e a causa dos direitos humanos e da liberdade.

 

c) proporcionar uma reflexão sobre a responsabilidade das religiões no atual contexto social, político e religioso, com atenção à garantia do estado democrático e na defesa da laicidade do Estado.

 

d) oferecer um olhar prospectivo sobre o quadro atual, que se tornou mais grave por conta da pandemia da Covid-19, e neste olhar destacar o papel das religiões e da teologia dentro deste cenário e quais seriam as novas perspectivas que se abrem à sociedade.

 

O resultado das conferências aí realizadas foi recolhido no livro: Religião, laicidade e democracia: cenário e perspectivas (Paulinas, 2022, 248 p.), organizado por Cesar Kuzma, Maria Clara Lucchetti Bingemer e Andreia Serrato. Além das contribuições de especialistas que protagonizaram o 33º Congresso da SOTER – no contexto da celebração dos 50 anos da Teologia da Libertação, tendo como referência a publicação do livro de Gustavo Gutiérrez - Teología de la liberación: perspectivas, em dezembro de 1971, em Lima, no Peru, este livro traz na segunda parte (p. 163-235), textos que são verdadeiros testemunhos que fazem justiça e dão o tom dos 50 anos celebrados.

 

Capa do livro Religião, laicidade e democracia: cenários e perspectivas (Foto:Divulgação)

 

Nos textos da primeira parte:

 

1) Pedro A. Ribeiro de Oliveira faz uma análise descritiva do cenário atual de nossa história, atendo-se mais à dimensão estrutural do tempo atual do que à conjuntura, isto é, ao desenrolar do processo político em curso: dois aglomerados de forças políticas ocupando o cenário brasileiro como principais protagonistas: a coalização vitoriosa do golpe de 2016, conduzida pela pequena minoria de muitos ricos e por grupos e setores derrotados, mas que agora estão se articulando e ganham volume (p. 15-31);

 

2) Frei Betto faz considerações sobre a democracia e os direitos humanos -, mais especificamente destaca quais são: a) os pressupostos evangélicos da democracia: a soberania da vida, o direito dos pobres, a partilha, o poder como serviço, direito de acesso às condições de vida; combate às causas da miséria e da pobreza, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, poder como serviço b) os desafios pedagógicos aos direitos humanos, c) a educação em direitos humanos, d) a cultura da tolerância, e) novos e difíceis desafios para a teologia: utopia libertadora traduzida em topias realizáveis no mundos pobres, progressiva conquista de posições hegemônicas, a questão socioecológica, a ênfase que a teologia da Libertação imprime à moral social deve ser estendida à moral pessoal, a questão da enculturação, a interação com os diferentes campos do saber e do fazer, o dever ético de resgatar a esperança dos pobres, a participação dos pores na vida eclesial (p. 33-52);

 

3) Jucimeri Isolda Silveira a partir de uma concepção crítica em direitos humanos, busca identificar na análise de evidências, as consequências do ultraneoliberalismo e de suas políticas de morte, abordando, por isso, aspectos conjunturais e históricos que evidenciam a ampliação de perspectivas reacionárias, racistas e autoritárias, que sustentam as práticas institucionais de morte; as contrarreformas que precarizam condições de vida e de trabalho; as rupturas do pacto federativo e a inviabilização dos sistemas públicos, cujo papel é garantir direitos e mecanismos democráticos (p. 53-73);

 

 

4) Afonso Murad e Daniel Castellanos refletem acerca da responsabilidade pelo cuidado da casa comum em perspectiva filosófica, ecológica e teológica. Com o aporte de Hans Jonas, centrado no princípio responsabilidade, mostram como alguns destes pontos da elaboração teórica desse filósofo foram reafirmados e ampliados pelo filósofo e ativista ambiental Jorge Riechmann. Este indica como podemos desmontar os mecanismos que impedem de assumir a responsabilidade pelo presente e o futuro do planeta. Já o Papa Francisco, na encíclica Laudato Si´, associa a responsabilidade com o planeta à atitude de cuidado e á proposta da ecologia integral. Com pontos de vista distintos, os três assinalam que tal responsabilidade implica uma sensibilidade comunitária, para além dos interesses meramente subjetivos. Ressaltam que a ecologia se liga necessariamente a um humanismo que inclui as futuras gerações (p. 75-101);

 

5) Ladislau Dowbor apresenta elementos para repensar a função da economia na sociedade a serviço do bem comum, ou seja, a economia deve servir para vivermos melhor, e não para que estejamos a seu serviço, implica que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esse triplo objetivo define um novo equilíbrio e outra forma de organização, atendo-se aos seguintes pontos: democracia econômica, democracia participativa, taxação dos fluxos financeiros, renda básica universal, políticas sociais de acesso universal, público e gratuito, desenvolvimento local integrado, sistema financeiros como serviço público, economia do conhecimento, democratização dos meios de comunicação, pedagogia da economia (p. 103-126);

 

6) Ivone Gebara reflete sobre a responsabilidade das religiões na defesa da laicidade do Estado e da democracia, esclarecendo que as palavras e expressões: responsabilidade, religiões, defesa da laicidade, estado e democracia contêm inevitavelmente significados plurais e assim sendo essas palavras convidam ao pensamento. Tecendo observações sobre a não laicidade da esquerda cristã e para as mudanças do contexto histórico e o pêndulo da laicidade chama atenção para a urgência de uma educação religiosa inclusiva – na linha da responsabilidade das responsabilidades das religiões, não apenas na questão da laicidade do Estado, mas na linha da educação para a dignidade humana, educação pra os diretos civis, proclamação renovada de nossas tradições religiosas éticas em conversa com nosso mundo atual, e não como substituto para uma política de Estado. É um convite segundo Gebara a sair do círculo vicioso de partilhar o alimento porque o Senhor nos mandou, mas, porque a fome, a sede e a liberdade: tudo isso é demasiadamente humano (p. 127-143).

 

7) Rudolf Von Sinner elenca quais são os desafios e perspectivas para a religião, laicidade e democracia. Chamando a atenção para a crescente atuação e influência dos evangélicos na politica brasileira, questionando se há um “pudor evangélico” diante das políticas do governo atual, apresentando uma crítica evangélico-conservadora a Bolsonaro, nesta reflexão o autor procura entender, respeitar e, assim, criticar o povo evangélico como contribuição à democracia. Observa que além de análises sociológicas e da ciência política, precisamos de um diálogo e de uma abordagem genuinamente teológicos, que enxerguem não apenas argumentos e aspectos cognitivos, como também afetivos e espirituais (p. 145-162).

 

Na segunda parte os autores fazem a memória da Teologia da Libertação nos seus cinquenta anos:

 

8) Marcelo Barros discorre sobre o Jubileu libertador das Teologias da Libertação e destaca que os cinquenta nos da Teologia da Libertação abre a um novo tempo de graça(p. 165-179);

 

9) Maria Clara Lucchetti Bingemer ressalta que o legado da Teologia da Libertação nestes 50 anos é uma herança de fé e inteligência do amor (p. 181-188);

 

 

10) Geraldina Céspedes nos 50 anos da Teologia da Libertação apresenta algumas chaves necessárias para seguir fortalecendo e recriando a Teologia da Libertação e esta forma contribuir para contribuir na iluminação dos novos cenários e novos tempos da América Latina e do mundo (p. 189-198);

 

11) Roberto E. Zwetsch sob a ótica protestante aborda diferentes momentos de sua trajetória vivencial com a caminhada das CEBs, com o aprendizado da teologia, com a caminhada missionária entre povos indígenas na Amazônia e docência teológica – como tempo de descobertas, de aprendizado e de convivência e tempos da pluralidade das Teologias de Libertação (p. 199-235).

 

Na terceira parte encontram-se dois anexos:

 

1) Elegia a Ivone Gebara (p. 239-241) de autoria de Roberto E. Zwetsch – Ivone Gebara recebeu em 2021 o Prêmio João Batista Libânio em reconhecimento a seus escritos, testemunho de vida, luta e fé;

 

2) Nota da Diretoria da SOTER por ocasião do encerramento do 33º Congresso Internacional da SOTER (p. 243-244). A Nota chama atenção aos graves desafios que avançam sobre a sociedade brasileira, no que diz respeito à política, à democracia, à laicidade, aos direitos humanos e sociais e ao papel que compete às religiões, em especial às Igrejas cristãs.

 

 

Dentre as inúmeras contribuições oferecidas pela SOTER em sua trajetória, no contexto atual, esta publicação constitui em mais uma expressiva contribuição. Os conteúdos das reflexões desta obra construída coletivamente possibilitaram pensar a temática: religião, laicidade e democracia nas suas diversas perspectivas de abordagem, na sua interdisciplinaridade e na sua inegável atualidade. Oportunamente lembram os organizadores desta obra que: “esse tema, trabalhado no Congresso e aqui no livro, não se fecha facilmente. Ao contrário, convida-nos a um olhar atento a novas realidades que surgem a cada dia. Os tempos são difíceis, causam apreensão e incertezas (...), no entanto, também há esperança e nela, mesmo frágeis, surgem forças de vida e resistência (...). Esse Congresso, o tema e os momentos celebrativos nos fazem entender que é possível caminhar, que precisamos uns dos outros, que temos que andar juntos, avançar em projetos que façam garantir democracia e laicidade; e olhar para isso com atenção é um papel que deve ser assumido pelas religiões e pelas teologias que produzimos” (p. 11-12).

 

As análises apresentadas neste livro são, portanto, uma preciosa ajuda para discernir os caminhos da democracia e da libertação. Teólogos, cientistas da religião, associados e associadas da SOTER, bem como o público em geral poderão desfrutar cada uma das contribuições, desejosos de aprofundar o papel das religiões e da teologia dentro deste cenário.

 

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