Economistas alertam que metas previstas no Regime de Recuperação Fiscal irão estrangular capacidade de implementar políticas públicas.
A reportagem é de Luís Gomes, publicada por Sul 21, 11-07-2022.
O Rio Grande do Sul se prepara para, daqui a menos de três meses, eleger um novo governador. Durante a campanha, os candidatos terão o desafio de apresentar propostas para o desenvolvimento do Estado e para a qualificação dos serviços públicos. Contudo, economistas alertam que, em razão da formalização da adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), o próximo governador do Estado terá pouca autonomia para implementar políticas públicas, uma vez que o RRF estabelece um rigoroso cronograma de meta de superávits e uma permanente supervisão da União para que estas metas sejam cumpridas.
Em 22 de junho, o presidente Jair Bolsonaro homologou o plano de recuperação fiscal do Rio Grande do Sul, etapa que restava para adesão do Estado ao RRF. Em nota, o secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, Marco Aurelio Cardoso, afirmou que a homologação do acordo representava uma vitória para o Estado. “A estratégia do Estado de enfrentar o desajuste fiscal crônico por meio de reformas estruturais viabilizou a estruturação de um plano que compatibiliza a retomada gradual do equilíbrio fiscal do Estado com a recuperação da capacidade de investimento público”, disse.
A adesão ao RRF permite que o Estado retome o pagamento da dívida com a União, suspenso desde 2017 em razão de uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), da qual o governo abriu mão oficialmente em maio. Durante todo o período que o pagamento das parcelas permaneceu parado, o Estado acumulou uma nova dívida de R$ 14,2 bilhões a título de encargos da dívida, que não estão contabilizados no valor principal que voltará a ser pago gradativamente. Pelo acordo firmado no RRF, estes R$ 14,2 bilhões poderão ser refinanciados ao longo de 30 anos.
Outro “benefício” concedido ao Estado pela adesão ao RRF é a possibilidade de contratação de empréstimos com garantia da União para renegociação de outros passivos. Este mecanismo permitirá ao governo, por exemplo, a contratação de um empréstimo de US$ 500 milhões junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o pagamento de precatórios — a aprovação da operação depende de uma lei que está prevista para ser votada na Assembleia Legislativa nesta semana.
Como contrapartida, o RS foi obrigado a promover a privatização de empresas públicas, a realizar a reforma da Previdência dos servidores, a reduzir os incentivos fiscais, a promover a reforma administrativa que acabou com vantagens temporais (como triênios e quinquênios) dos servidores, a se comprometer a quitar o passivo de R$ 15,2 bilhões (auferido ao final de 2021) em precatórios até 2029, e a adotar um teto de gastos estadual. Este teto de gastos estabelece que o crescimento das despesas do Estado será limitado à inflação no período entre 2022 e 2031. Na prática, significa a limitação por um período de dez anos da concessão de reajustes salariais, da realização de concursos públicos e de investimentos aos patamares atuais, independente do crescimento econômico do Estado.
De acordo com dados da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), a dívida do Estado com a União atingiu a marca de R$ 75,7 bilhões em abril de 2022. O estoque da dívida, descontadas as amortizações que aumentarão gradativamente a partir da retomada dos pagamentos, é reajustado anualmente pelo índice de inflação medido pelo IPCA mais 4% de juros. Este indexador, contudo, não pode ser superior à taxa de juros Selic, estipulada pelo Banco Central, e que atualmente está em 13,25% ao ano. Caso o IPCA + 4% supere a Selic, o Estado poderá quitar o menor valor.
Antes da suspensão do pagamento das parcelas em 2017, o Estado assinou em 2016 o acordo com a União que mudou a taxa de correção da dívida, que era a inflação medida pelo IGP-DI mais 6% ao ano, para inflação medida pelo IPCA mais 4% ao ano (indexador que permanece até hoje), retroagindo até 2013. Com a mudança, o Estado, que pagava a título de amortização da dívida 13% de sua receita corrente líquida, o limite que havia sido estabelecido na renegociação da dívida em 1998, mas ainda assim não conseguia sequer pagar os juros acrescidos anualmente, conseguiu reduzir o valor projetado para ser pago em 2017 de R$ 4,8 bilhões para R$ 2,1 bilhões.
Com a adesão ao RRF, em 2022, o RS irá pagar R$ 734 milhões para a União a título de amortização da dívida. Em 2023, este valor sobe para R$ 1,847 bilhão e vai aumentando gradativamente até chegar a R$ 8,120 bilhões em 2031, que é considerado o valor integral da parcela atualmente. A partir daí, não está calculada a parcela anual de amortização, mas a previsão da Sefaz é de quitação da dívida com a União em 2048.
Tabela mostra a evolução da parcela anual da dívida com a União a ser paga pelo RS até 2031. (Fonte: Sefaz | Sul 21)
Levando em conta que o RRF permitiu a incorporação de dívidas com terceiros (BNDES, Bird, BB e BID) no mesmo cronograma anual de pagamentos, o RS passará a pagar, em 2022, R$ 921 milhões a título em dívidas, valor que aumentará gradativamente até chegar a R$ 8,636 bilhões em 2031.
Tabela mostra a evolução da parcela a ser paga pelo Estado somando a dívida com a União e débitos a terceiros incorporados na renegociação. (Fonte: Plano de recuperação fiscal | Sefaz | Sul 21)
Segundo nota da Sefaz encaminhada à reportagem, as parcelas crescem à medida que o RS vai ganhando fôlego financeiro para quitá-las. Ou seja, a expectativa é que, até 2031, o Estado tenha obtido fôlego financeiro suficiente para quitar suas obrigações com a folha do funcionalismo, com as chamadas outras despesas correntes (ODCs), realizar investimentos e quitar integralmente a parcela da dívida com a União e com terceiros, o que hoje não é possível.
Economistas ouvidos pela reportagem questionam, no entanto, a viabilidade do Estado alcançar este fôlego e o “preço” a ser pago para honrar os compromissos com a dívida.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Unisinos, Marcos Lelis avalia que o Regime de Recuperação Fiscal é inviável de ser implementado na prática. “Você ficar 10 anos sem dar aumento para funcionário público e sem fazer concurso público, a gestão pública vai ficar praticamente inviável. Soma os cortes de investimentos, a gente inviabiliza a logística no Estado. Isso pode ter um impacto muito significativo no processo de desenvolvimento do Estado. Então, provavelmente, ali na frente, a gente vai ter que ter uma renegociação, porque é inviável implementar esse tipo de acordo no mundo real”, diz. “Imagina tu ficar 10 anos sem contratar policial, sem contratar enfermeiro, sem contratar professor. Tu vai ter aposentadorias ao longo desses anos. E, além disso, não poder dar aumento, tu vai perder qualidade”, complementa.
Já Adalmir Marquetti, professor de Economia da PUCRS, pontua que a adesão ao RRF representa uma perda de autonomia do governo em razão do acordo estabelecer que o cumprimento das metas de superávit necessárias para o pagamento da dívida será acompanhado pelo Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal (CSRRF), que é formado por um representante da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), por um representante do Tribunal de Contas da União (TCU) e por um indicado pela Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz). Este conselho, na prática, poderá vetar a contratação de novas despesas e determinar que o governo faça cortes orçamentários para se adequar às metas de superávit.
“Todas as políticas que tu for fazer, vai ter que conversar com um burocrata da comissão tripartite. Vai se acentuar no Rio Grande do Sul a redução da capacidade dos estados de fazer políticas públicas”, diz. “O governo do Estado já investe muito pouco. O que vai acontecer é que vai passar a investir menos ainda. A qualidade dos serviços públicos vai ser afetada. Como a gente vai melhorar a qualidade da educação no RS, como vamos ter recursos para melhorar a qualidade dos serviços?”, questiona.
Caso as metas de superávit sejam descumpridas, o RS terá de voltar a pagar o valor integral das parcelas da dívida com a União.
Marquetti também pontua que a simples aplicação dos indicadores de correção da dívida aos atuais R$ 75,7 bilhões fazem com que a dívida siga aumentando muito acima das amortizações feitas pelo Estado, uma vez que a aplicação da taxa Selic (hoje inferior ao IPCA mais 4% de juros) representaria um acréscimo de mais de R$ 10 bilhões à dívida em um ano. “Essa dívida vai ter que ser renegociada ali adiante, porque não tem condições de pagar”, diz o professor, que defende que seja feita uma nova contabilidade para que ao menos os indexadores do acordo firmado em 2016 retroajam à renegociação original com a União em 1998 e não apenas a 2013.
Antes de abrir mão para adesão ao RRF, a auditoria da dívida era defendida pelo próprio governo do Rio do Grande do Sul, que questionava a prática do anatocismo, cobrança de juros sobre juros, entre entes federativos, o que é vedado pela Constituição Federal, mas aplicado no acordo da dívida com a União. Apesar de o Estado ter aberto mão de sua ação, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS) ainda mantém outra ação que questiona esta prática.
Presidente do Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do RS (Ceape), Filipe Leiria pontua que o governo atual vem passando uma mensagem contraditória em relação a estas metas de superávit. Um exemplo disso é o fato de que a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) aprovada pela Comissão de Finanças e Planejamento da Assembleia estabelece uma meta de superávit de R$ 663 milhões para 2023, enquanto o Plano de Recuperação Fiscal estabelece uma meta de superávit de R$ 4,953 bilhões para o próximo ano.
“A pergunta que se faz: qual é a meta? Na nossa avaliação, o Estado está prorrogando o momento em que vai ter que dizer onde vai cortar o orçamento. Como a LDO estabelece números mais macro, não desce para o nível de projetos e atividades do orçamento, o que cada secretaria vai fazer ou não, nesse momento não se enfrentou a questão. Essa é uma pauta indigesta em ano eleitoral, mas o próximo governante terá que enfrentar”, pontua.
Além disso, Leiria questiona a razoabilidade do Estado de alcançar estes superávits, uma vez que, conforme as planilhas do Plano de Recuperação Fiscal, o Estado precisará alcançar crescentes superávit durante o período de vigência do RRF, até alcançar R$ 12,146 bilhões em 2031.
Tabela divulgada pela Sefaz mostra a evolução da meta de superávit que o RS terá de alcançar até 203. (Fonte: Sefaz | Sul 21)
“Com todos os problemas que temos na saúde e educação, com a meta de ter que pagar o saldo de precatórios até 2029, não me parece exequível, se levado a sério o acordo. Ou, se for levado a sério, o próximo governante vai ter que, como um dos seus primeiros atos, emitir um decreto de contingenciamento para dizer onde vai cortar para bater a meta”, diz. “A verdade é que o governante que senta na cadeira do Piratini tem pouco poder de discricionariedade sobre o orçamento e terá menos ainda em função da retomada gradativa do pagamento da dívida”.
Conforme Relatório de Avaliação atuarial de 2022, elaborado pelo IPE Prev, o Estado deverá chegar ao final de 2022 com 70.032 servidores ativos civis, sendo a maioria deles professores, profissionais de saúde e policiais civis. Desses, 17.032 (24,32%) chegaram ao final do ano com condições de se aposentar, já considerando uma média de três anos de abono permanência, período adicional que o servidor pode permanecer no cargo mesmo já tendo condições de se aposentar. Isso significa que cerca de um quarto dos servidores civis não estarão mais prestando serviços essenciais à população. Contudo, a realização de concurso até 2030 só poderá ocorrer com o parecer favorável do Conselho de Supervisão. “O Estado vai sofrer uma redução e não há instrumentos para recompor isso. A qualidade dos serviços nessas áreas tende a precarizar”, diz Leiria.
Neste sentido, o presidente do Ceape diz que falta transparência para sociedade sobre o que será cortado, quantitativamente e qualitativamente, em termos de serviços públicos. “É esse debate que o governo vem evitando desde o início desse processo o RRF”, diz.
Por outro lado, Leiria avalia que a queda de investimentos em serviços públicos deve resultar em um descumprimento da aplicação de percentuais mínimos da receita corrente líquida previstos na Constituição em educação e saúde. No caso da saúde, especialmente, isso pode gerar a um processo de crescente judicialização do orçamento estadual. “O cidadão tem o seu direito à saúde assegurado e na Constituição não tem nada que diga que isso está subordinado ao RRF, nem poderia. Aqueles cidadãos que tiveram condições de acesso à Justiça, vão cada vez mais judicializar os seus direitos.”
Outra “dor de cabeça” que será criada para o governo, na avaliação de Leiria, é em relação aos chamados duodécimos, os repasses feitos pelo Poder Executivo aos outros poderes (Legislativo e Judiciário) e para alguns órgãos constitucionais, como o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública (DP) e o Tribunal de Contas (TCE). Estes repasses são calculados pela previsão da receita de arrecadação líquida. Leiria avalia que, para o cumprimenta das metas, será necessário que os demais poderes realizem cortes orçamentários. “Nós vamos ter um tensionamento na relação entre os poderes. Cada poder vai ter que ajustar mais. O desdobramento disso, a gente não sabe ao certo”, diz.