29 Junho 2022
Para o ser humano que é carne, a carne também pode ser um recurso, que o mantém mais próximo da sua origem não disponível. Também na lógica do Espírito, onde há carne, há esperança.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 26-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um domingo do Tempo Comum, com uma lógica de algum modo autônoma, quem toma a palavra é a Segunda Leitura, a epístola, desvinculada como está do tema que liga o Evangelho, a Primeira Leitura e o Salmo. Precisamente por essa natureza de “lectio semicontinua” – que prossegue autonomamente – o texto proclamado na missa deste domingo, 13º Domingo do Tempo Comum, ciclo C, merece um olhar de grande atenção. Eis o seu texto, com algumas ênfases:
Leitura da Carta de São Paulo aos Gálatas
Irmãos: é para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai pois firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão.
Sim, irmãos, fostes chamados para a liberdade. Porém, não façais dessa liberdade um pretexto para servirdes à carne. Pelo contrário, fazei-vos escravos uns dos outros, pela caridade.
Com efeito, toda a Lei se resume neste único mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Mas, se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros.
Eu vos ordeno: procedei segundo o Espírito. Assim, não satisfareis aos desejos da carne. Pois a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito tem desejos contra a carne. Há uma oposição entre carne e espírito, de modo que nem sempre fazeis o que gostaríeis de fazer.
Se, porém, sois conduzidos pelo Espírito, então não estais sob o jugo da Lei.
Estamos no fim da carta, e Paulo resume a “doutrina sobre a liberdade” em Cristo. Algumas oposições saltam aos olhos:
- liberdade x escravidão
- amor x carne
- servir-se mutuamente x morder-se e devorar-se mutuamente
- Espírito x carne
Da oposição entre liberdade e escravidão, chega-se à oposição entre amor/Espírito/serviço de um lado e carne/morder/devorar-se de outro.
A perícope, na sua integralidade, valoriza uma leitura do “desejo da carne” que assume um significado muito diferente daquilo que estamos acostumados a considerar como “conceito católico”.
O que significa “lutar contra os desejos carnais” de acordo com Paulo?
A resposta a essa pergunta esconde um “grande equívoco”. Para tentar não cair nesse grave mal-entendido, sigamos caminhos diferentes.
a) Se interpretarmos o texto sem sair dele, veremos bem como o “corte” da perícope nos oferece uma leitura do “desejo da carne” em oposição ao “desejo do Espírito”. O único exemplo de desejo da carne é “morder-se e devorar-se”. Poderíamos dizer que se baseia na experiência que a tradição posterior expressou com a tríade: “soberba, inveja e ira”.
b) Se interpretarmos o texto com base em todo o vocabulário paulino, encontraremos “listas” de “desejos da carne”, nas quais muitas vezes se começa a partir da “fornicação e libertinagem”. Isso certamente contribuiu para uma identificação fácil, mas que distorce o sentido da lista e o conceito de pecado. Parar nos “inícios” é uma tentação que é econômica e acomodatícia: reduz a carne a sexo e, assim, confunde quase tudo.
c) Se interpretarmos o texto utilizando a “história das interpretações”, poderemos identificar um formidável modelo de leitura em Dante Alighieri, com a sua disposição dos “pecados” no Inferno e no Purgatório, que, como se sabe, respondem a uma ordem diferente. Vejamo-lo brevemente em um excursus específico.
É possível ler duas explicações diferentes e magníficas, sempre indicadas por Virgílio a Dante, mas em dois contextos diferentes:
a) Inferno, Canto XI
Seis versos são importantes:
Não lembras a lição precisa e plena
na qual a tua antiga Ética trata
destas três transgressões o Céu condena:
incontinência, malícia e a insensata
bestialidade? A Deus a incontinência
menos ofende, e clemência resgata
[trad. Italo Eugenio Mauro, Ed. 34].
O pecado pode ser incluído nessas três “categorias” que vão do menos à mais grave. O próprio Virgílio as interpreta. Podemos reportá-las segundo o esquema dos “sete pecados capitais”:
- Soberba, inveja e ira (malícia e insensata bestialidade, nunca totalmente esclarecida)
- Preguiça, avareza, gula, luxúria (incontinência)
Deve-se notar que, na Comédia, a violência é mais grave do que a incontinência, mas a fraude é mais grave do que a violência.
b) Purgatório, Canto XVII
Onde Virgílio diz, em outros seis versos:
“Nem criador jamais, nem criatura,
meu filho”, começou, “foi sem amor,
natural ou o que o ânimo procura.
O natural nunca erra, enquanto por
mau objeto aqueloutro pode errar,
ou por excesso ou por falta de vigor.
[trad. Italo Eugenio Mauro, Ed. 34]
Essa releitura do pecado é pensada em correlação com o amor. Como o oposto da caridade (no sistema da “Summa Theologiae” de Tomás é assim).
Há, portanto:
- amor natural, que não pode errar (o animal é sem pecado);
- amor de ânimo, ou seja, o amor que envolve uma escolha (animal racional) que tem três problemas:
- amor pelo mal do próximo (soberba o esmaga, inveja olha-o mal e ira o assalta);
- amor pelo bem fraco demais (preguiça como melancolia e depressão);
- amor pelo bem forte demais (avareza, gula, luxúria).
Os três caminhos que percorremos nos permitem identificar uma série de respostas possíveis, que eu retomo aqui de modo esquemático:
- A identificação cultural do “carnal” com o “sexual” é uma versão distorcida da tradição, que a esquece de modo interessado. Quando Paulo fala de “epithumia sarkos” (desideria carnis), ele se refere à lógica humana que altera a relação com Deus e entra na esfera do pecado;
- Uma elaboração do “pecado” – que, neste caso, pode ser sinônimo de carne – permite evitar com uma certa clareza toda identificação imediata do pecado com o âmbito da sexualidade. A sexualidade é uma das dimensões abertas ao pecado, mas, em comparação com outras dimensões do humano, é quase “conservada” pela sua imediatez carnal e pela relativa naturalidade.
- O “desejo da carne” aparece no grau mínimo de gravidade naquilo que a tradição chamou de “gula” e “luxúria”. Precisamente por estar mais diretamente ligada à “carne” (marcada naturalmente pelo apetite no nível da comida e do sexo), essa esfera do pecado é meramente “incontinente”, não exige violência e fraude.
- O “desejo da carne” é mais grave quanto mais unir a violência ou a fraude à sua própria tendência. Assim, em ordem crescente, preguiça, avareza, ira, inveja e soberba são os “lugares por excelência” do “desejo da carne”. Poderíamos dizer que, quanto mais se afasta do desejo animal, maior é a gravidade.
- Aqui, então, está o “grande equívoco”. A oposição à liberdade do Espírito não vem principalmente daquele “desejo da carne” que brota da intemperança em relação à comida ou ao sexo. Estas são fraquezas do corpo, certamente capazes de causar danos à vida própria ou alheia, mas por si sós são sem violência e sem engano. É diferente o impacto que a preguiça e a avareza têm sobre a vida no Espírito. Ainda mais se a ira, a inveja e a soberba ganharem espaço.
Quanto maior o “desejo da carne”, mais “espirituais” e “desencarnados” são os pecados. Soberba e inveja não suportam a carne do outro, esmagam-na e esquartejam-na, anulam-na e destroem-na.
Uma certa hipocrisia cristã e católica se esconde na acepção burguesa do “desejo da carne”: se a confissão “de sexto” chegou a cobrir todo o campo dos atentados à “liberdade do espírito”, e se se acredita que o pior da vida são os “atos impuros”, então a palavra de Paulo permanece incompreendida, e o texto da epístola deste domingo serve apenas para confirmar os nossos piores preconceitos.
Para ficar na órbita do desejo do Espírito, bastaria evitar o “desejo da carne” reduzido a “ato impuro”. É claro que o amor ao próximo também sofre uma ameaça pela gula e pela luxúria. Com o seu poder, a mesa e a cama podem arruinar até os melhores. Ai de nós se negássemos isso. Mas esses não são os problemas maiores, nem de ontem nem de hoje. Não cair na “escravidão”, não ceder ao “desejo carnal” não significa sobretudo permanecer em jejum, permanecer continente e conservar a castidade. Significa, acima de tudo, viver até o fim o amor ao próximo e o serviço recíproco.
O que é, então, o “desejo carnal” que se opõe ao Espírito? Aqui está o pior: não estimar ninguém como digno de fé, desejar profundamente o mal do outro, perseguir o inimigo até a sua destruição, não pagar as justas compensações a quem confia o seu dinheiro ou o seu trabalho a você, desesperar-se com o mundo e as suas promessas, tornando-se indiferente a tudo e a todos, chamar o mal de bem e o bem de mal.
Quem associaria imediatamente ao termo “desejos da carne” a desqualificação do outro, a murmuração mais descarada, as bombas sobre civis inermes, a subjugação do próximo por trabalho ou necessidade, a fraude bancária, industrial ou política?
Se tentarmos ouvir novamente o texto de Paulo agora, depois de ter considerado essa perspectiva, podemos restituir à fé cristã a sua tradição mais verdadeira e mais autêntica, não aquela que costurou sobre ela uma versão burguesa demais e acomodatícia demais das palavras da Escritura e das experiências da tradição.
É inútil achar que o mais decisivo, para um caminho de iniciação cristã ou de matrimônio ou de formação, é a “continência sexual”. O que fala aqui é acima de tudo uma falta de fôlego na tradição: não respeitar as proporções, tornar pequenas as coisas grandes e grandes as coisas pequenas é o fruto de uma interpretação ideológica e unilateral da “epithumia sarkos”, dos “desideria carnis”.
Ousaria dizer, para concluir, que os desejos mais perigosos, comparados aos desejos do Espírito, são aqueles que parecem “menos carnais”. Há uma lógica da carne e do ato “carnal” que defende do pecado grave. É a carne do rosto que, enrubescendo, salva a alma da mentira que proferiu com absoluta segurança. Para o ser humano que é carne, a carne também pode ser um recurso, que o mantém mais próximo da sua origem não disponível. Também na lógica do Espírito, onde há carne, há esperança.
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Liberdade e desejo carnal: o grande equívoco na epístola de São Paulo. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU