Voltar ao Evangelho para falar de Cristo ou com Cristo?

Foto: Cathopic

27 Mai 2022

 

"A função primordial da Igreja continua sendo obedecer a missão que lhe foi confiada: anunciar a Boa Nova, pregar o Evangelho e, nas disputas internas que geram pontos de tensão, fazer exatamente o que recomenda Bento XVI e o Papa Francisco: voltar ao Evangelho, sempre voltar ao Evangelho e fazer o exercício hermenêutico e prático para ser fiel a Cristo".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

A Igreja, por vezes, é acusa, seja nos debates filosóficos e teológicos, seja no discurso corrente do dia a dia, de ser dogmática, autoritária e presunçosa por sua insistência na questão da Verdade, isto, é na proclamação da existência de um Deus uno e trino e o que se segue disso. Todas essas palavras são empregadas em um sentido negativo e, quando não analisadas de perto, apenas contribuem para que os recém chegados, sem nem conhecê-la, ou a ignorem por completo ou repitam afirmações sem sequer refletir sobre elas, ignorando, igualmente a Cristo.

 

Essa posição é vista em muitos círculos e de formas variadas e não é consequência somente do desenvolvimento técnico-científico, do materialismo, do psicologismo, do naturalismo e da virada linguística que ocorreu no século XX, ou do progresso industrial e tecnológico ou da secularização, embora tudo isso tenha contribuído a seu modo para criar um caldo cultural no qual a existência de Deus ou deixou de ser uma questão para muitos ou o próprio Deus - apesar de todo o "progresso científico" - se transformou em um "ser-conceito" no qual coabitam definições confusas e contraditórias entre si por falta de distinções ao analisar a matéria em questão. Essa posição, ao contrário, faz parte da história da humanidade e da própria Igreja que, enquanto foi desenvolvendo a si mesma na missão de ser fiel ao mandamento de Cristo para ela própria, confrontou-se, interna e externamente, com posições divergentes sobre como interpretar os mistérios de Cristo e sua Palavra, com outros entendimentos sobre quem é Deus e, inclusive, com posições radicalmente descrentes.

 

 

Nos últimos séculos, no entanto, parece que as "novidades científicas" passaram a ter um peso determinante e, em alguns casos, definitivo em algumas interpretações teológicas - e também em outras áreas, que usam recursos teológicos como arcabouços para a formulação de suas próprias teses - que não optaram por fazer uma hermenêutica no sentido de melhor compreender o que Deus nos comunica e espera de nós através da sua Palavra, mas de ler a própria Palavra não mais como a Palavra de Deus dirigida à humanidade.

 

Apoiadas no desenvolvimento científico, muitas interpretações reduziram e subordinaram a Palavra a fatos históricos, arqueológicos, antropológicos, psicológicos ou a transformaram tão somente em um gênero literário, como mito, no sentido de uma estória fundadora que nos transmite valores para bem viver em sociedade e servir de fundamento para o desenvolvimento das artes. Embora do ponto de vista filosófico, de cada ciência em particular e das artes, essas sejam posições plenamente aceitáveis, defensáveis e ricas em suas contribuições, elas partem de um ponto contrário ao que a Igreja, na missão que lhe cabe, ensina sobre Deus e sua Palavra.

 

O exercício racional dessas teologias - e demais teses intelectuais - parte de dois pressupostos diferentes dos da Igreja: Deus uno e trino não existe e tampouco o texto da Sagrada Escritura foi inspirado pelo Espírito Santo e precisa ser interpretado e compreendido igualmente com o auxílio da terceira pessoa da Trindade, para ser fiel aos mistérios e ensinamentos de Cristo. Diante das Sagradas Escrituras, alguns teólogos não sentem necessidade de interrogar-se sobre a possibilidade da Verdade acerca da existência do Deus uno e trino e de sua Palavra dirigida à humanidade, mas a leem e a reduzem ao método histórico-crítico, literário, psicológico, social, artístico, como igualmente o fazem muitos dos especialistas dessas áreas particulares. Outro tipo de leitura diferente é aquele que parte da existência de Deus, lê a Palavra como inspiração do Espírito Santo e a confronta e interpreta também à luz das demais ciências ou atividades que emergiram com o desenvolvimento científico a fim de, a partir de uma hermenêutica, atualizá-la para o tempo presente, ao qual a própria Igreja adere.

 

 

Neste caldo cultural, em que vozes negam a existência de Deus e sua Palavra de muitas formas, fazendo uso de muitos recursos, não é de se estranhar a indiferença de pessoas que, embora batizadas, nem sequer sabem quem é Cristo e sua Igreja, ou ainda o número daqueles que já nasceram em um contexto cultural onde Deus é um mito, como uma inspiração poética para encontrarmos respostas para as perguntas que não têm respostas porque nos ultrapassam, ou como um recurso psicológico que nos ajuda a enfrentar os dilemas e sofrimentos do dia a dia.

 

Se o Deus uno e trino, ao fim e ao cabo, não existe, para que se ocupar dele ou perder tempo com esse tipo de questão ou raciocínio que, na interpretação de muitos, não é nem visto como a busca humana por Deus, mas como uma loucura que foi fonte de guerras, disputa e poder? Para que participar da celebração Eucarística do sacrifício de Cristo pela humanidade se isso é somente um mito e tampouco Ele escuta ou reage às nossas preces? Afinal, a humanidade avançou tanto cientificamente, que chega ser ridículo se ocupar desse tipo de questão - que é destinada aos fracos, como se fracos fosse um grupo seleto da humanidade. Menos sentido ainda faz seguir Jesus. Não faltam filosofias que aos olhos contemporâneos são muito mais atrativas do que voltar-se para um mero homem que viveu em uma região do mundo que até hoje é marcada por dominação, êxodos e guerras.

 

Diante desse contexto, cabe, sim, à Igreja, responder e entrar no debate cultural, mas, sua função primordial continua sendo obedecer a missão que lhe foi confiada: anunciar a Boa Nova, pregar o Evangelho e, nas disputas internas que geram pontos de tensão, fazer exatamente o que recomenda Bento XVI e o Papa Francisco: voltar ao Evangelho, sempre voltar ao Evangelho e fazer o exercício hermenêutico e prático para ser fiel a Cristo. Neste caso, a Igreja pode fazer tudo que está ao seu alcance, com criatividade, deixando-se guiar pelo Espírito Santo, tal como tem feito o Papa Francisco diariamente ao convidar os cristãos a fazerem a experiência com Cristo. Não é suficiente falar da Igreja, dos seus erros e acertos, da liturgia, do Evangelho, de Cristo; é preciso falar com Cristo. Falar com Cristo, como repete o Papa. Não sejamos surdos!

 

 

Em última instância, querer converter-se a Cristo é uma questão de adesão pessoal, de crer ou não crer com o coração, por mais elaboradas que sejam as reflexões filosóficas e teológicas para nos ajudarem a tomar uma decisão racional. A todos nós que buscamos ter uma fé esclarecida, as palavras de Jesus não podem ser ouvidas sem causar uma certa dor: "Disse-lhe Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram" (João 20:29). Mas como diz o salmista e repete o sucessor de Pedro, o convite é feito a todos e a misericórdia é infinita: "Provai, e vede que o Senhor é bom".

 

 

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