A melancolia, o tédio e a alegria. Tchékhov escreveu sobre nós

Tchékhov em 1890, com 30 anos de idade | Foto: Reprodução

03 Mai 2022

 

"Apesar de os contos, peças teatrais e novelas de Anton Tchékhov terem sido escritos entre 1880 e 1904, ano da sua morte, aos 44 anos, eles retratam as características humanas, sejam comportamentais, psicológicas ou sentimentais, com a fidelidade e o bom humor de qualquer um que ri ao observar a condição humana, e com a sutileza de alguém que vê e tenta comunicar mais do que os olhos estão enxergando enquanto atravessa 'a estepe'".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

Em 2007, quando Antônio Abujamra dirigiu a peça "Tchékov e a Humanidade", ele declarou o seguinte sobre o escritor russo Anton Tchékhov: "Ele não escreveu há mais de cem anos, ele escreveu ontem sobre nós aqui, sempre".

 


Anton Tchékhov (Foto: Reprodução)

 

Apesar de os contos, peças teatrais e novelas de Tchékhov terem sido escritos entre 1880 e 1904, ano da sua morte, aos 44 anos, eles retratam as características humanas, sejam comportamentais, psicológicas ou sentimentais, com a fidelidade e o bom humor de qualquer um que ri ao observar a condição humana, e com a sutileza de alguém que vê e tenta comunicar mais do que os olhos estão enxergando enquanto atravessa "a estepe" - título de uma das suas novelas -, tipo de vegetação de regiões temperadas e subtropicais. Como disse o professor e tradutor Rubens Figueiredo, nos textos de Tchékhov é possível perceber uma "maturidade precoce, expressa na forma de controle emocional e observação rigorosa".

 

 

 

Talvez o próprio autor se incomodasse com tanta objetividade e crueza na redação da sua observação, mas os curtos diálogos entre as personagens revelam com espontaneidade nossas diversas facetas, comportamentos, o jeito com que lidamos com as diferentes circunstâncias da vida e nossas disposições internas em relação ao outro. Sobre sua própria obra, Tchékhov comentou: "O tema é bom. Trabalho com animação, mas, por falta de hábito de escrever textos longos e por medo de introduzir coisas demais, acabo caindo no excesso contrário: cada página acaba parecendo tão compacta quanto um conto curto, as cenas se amontoam, se apertam, ofuscam umas às outras e diluem a impressão do conjunto".

 

 

O subtítulo de A estepe - História de uma viagem -, resume Figueiredo, "sintetiza a situação central: a viagem de um menino que parte para estudar em outra cidade e, para isso, viaja alguns dias pela estepe. Mas também denota o caráter híbrido do texto: ao mesmo tempo, um relato de viagem, uma narrativa ficcional, um estudo de tipos característicos da região, a pintura de quadros da natureza - animais, plantas, clima -, retratos das atividades econômicas, das relações sociais, da diversidade cultural, das mudanças de comportamento em curso. Tudo captado ora pela percepção do menino, ora pelo olhar direito do narrador". Esse olhar, acrescenta, é o do próprio autor, em uma viagem a Taganrog, sua cidade natal.

 


Capa do livro A estepe (Foto: Reprodução)

 

As almas das diferentes persongens que aparecem ao longo da narrativa - mujiques, fazendeiros, proprietários de estalagens rurais e seus funcionários, mulheres, mães, comerciantes, padres, carroceiros, crianças -, são uma amálgama entre "a habitual secura de homem de negócios", a "benevolência" e a "inquietude" de Ivan Ivánitch Kuzmitchóv, comerciante de lã, e a admiração do padre Khristofor Siríiski, que "contemplava o mundo de Deus com olhos úmidos e sorria tão largo, que o sorriso parecia alcançar as abas da cartola".

 

Enquanto uma conjunção de pensamentos, preocupações e sentimentos se misturavam no olhar de "ódio" que Kuzmitchóv dirigia ao padre Khristofor Siríiski, "contraindo os ombros com impaciência", "irritado", toda vez que o sacerdote recitava seus salmos e, "depois de cada 'glória', respirava fundo, fazia um ligeiro sinal da cruz e, em voz intencionalmente alta, para que os outros também se persignassem, dizia três vezes: '- Aleluia, aleluia, aleluia, glória a ti, Deus!'", para o sacerdote, somente duas coisas eram certas na vida, além da morte: "a obediência vale mais do que o jejum e as preces" e "a matéria nutre a carne, mas o alimento espiritual nutre a alma".

 

 

Tchékhov não se perde em rodeios e em questões paralelas; vai direto ao ponto quando se trata de manifestar o perfil psicológico, social e espiritual de suas personagens. As poucas falas de cada uma dizem muito sobre suas personalidades: a bondade e a maldade de Deniska, cocheiro de 20 anos de idade que "ainda não deixara de ser um menino" e "adorava soltar pipa, caçar pombos, brincar de jogar pedrinhas para o ar, apostar corrida e sempre se metia nas brincadeiras e nas brigas das crianças", ao mesmo tempo em que "gostava de atiçar e dar umas chicotadas"; o desprezo de Solomon por todos que apareciam na estalagem do irmão, julgando-os como se fosse o juiz de todos os homens, com um olhar "malicioso" e "com sua voz surda e rouca por causa do ódio que o sufocava"; a aspereza do misterioso e esquivo velho Varlámov, homem de negócios que estava "sempre rodando" e era um dos responsáveis por fazer "o mundo girar" porque "já estava de pé" quando os galos ainda não tinham cantado, mas, por seu pouco trato e muito dinheiro, causava "raiva" nos demais, que o consideravam um "velho bruto", "bruto que é uma desgraça! Mas é um homem bom, correto... Não ofende ninguém sem motivo... Correto..."; a maternidade da esposa judia de Moissei Moisséievitch, dono de uma estalagem, que alimentava o jovem Iegóruchka - menino de nove anos que estava em viagem -, como se fosse seu próprio filho, e da velha que cuidou de Iegóruchka durante uma tempestade, enquanto falava e sofria consigo mesma por causa da gente que estava na estepe durante o temporal e repetia o nome do "Senhor Jesus Cristo" entre uma fala e outra - as duas compartilhavam da dor do menino e de sua mãe por causa da separação de ambos -; e a "indiferença" com que o próprio Iegóruchka olhava para os lados depois de não chorar mais.

 

 

A melancolia e o tédio sufocavam o espírito de todos diante da vida, ao verem sempre "a mesma coisa - o céu, a planície, as colinas"-, mas a alegria também surgia juntamente com o inesperado, com o "orvalho" e o "sol" que, "se animando para florescer novamente", alterava tudo que estava "um pouco pardo, avermelhado e meio morto por causa do calor escaldante". Nos momentos em que se despiam de suas "distinções sociais" por um instante para as refeições conjuntas, as conversas expressavam esses dois estados de espírito:

 

"Enquanto comiam, todos conversavam. Daquela conversa, Iegóruchka entendeu que seus novos conhecidos, apesar das diferenças de idade e personalidade, tinham uma coisa em comum: todos tinham um passado maravilhoso e um presente ruim; sobre o passado, todos, sem exceção, falavam com entusiasmo; já, sobre o presente, se exprimiam quase com desprezo. O russo ama recordar, mas não ama viver; Iegóruchka ainda não sabia disso e, antes de toda papa ser devorada, ele já estava convencido de que, em redor da panela, estavam pessoas ultrajadas e maltratas pelo destino".

 

Em um desses encontros, o carroceiro Pantelei, que trabalhava com os mercadores, dormia com os cavalos enquanto os senhores tinham direito a um quarto, e "já estava na idade de morrer", dava seu testemunho sobre todo o tipo de gente que encontrou em suas andanças: "gente malvada, santa, correta" e os "pecadores, que nem dá para calcular... Rainha e Mãe do Céu, tenha piedade e nos salve...".

 

 

 

Iegóruchka, com tão pouca idade, ao mudar de cidade para estudar, completamente longe de todos com quem conviveu desde seu nascimento, já sentia que uma parte da vida estava ficando completamente para trás e se afligia de tal modo que nem conseguia pensar no que seria a vida dali para frente.

 

Como conselho para o que estava por vir, ouvia as palavras do padre Khristofor, que depois de estudar tudo que era possível, no modo antigo, optou por ter uma carreira menos brilhante e retornou para casa para assistir aos pais em sua velhice:

 

"Cuidado, estuda com atenção e diligência para ter proveito. (...) Preste a atenção, Geórgi [Iegóruchka], Deus o guarde de esquecer sua mãe e Ivan Ivánitch. Os mandamentos dizem para respeitar a mãe e, quanto a Ivan Ivánitch, é seu benfeitor e substituto do pai. Se você tiver êxito nos estudos e, Deus nos livre, passar a não suportar e desdenhar as outras pessoas sob o pretexto de que são mais tolas do que você, então a desgraça, a desgraça cairá sobre você!"

 

Quanto ao menino de apenas nove anos, "com lágrimas amargas, saudou a vida nova e desconhecida que agora começava para ele..." Que vida seria, só Deus sabe.

 

 

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