Sítio arqueológico com ossadas humanas pode ser destruído com a construção de terminal de carga pela empresa Bertolini em Rurópolis (PA), mas Iphan ignora indígenas e contraria recomendações do MPF, sinalizando retirada do material para que obras possam seguir.
A reportagem é de Isabel Harari, publicada por Repórter Brasil, 31-03-2022.
O pajé Fabiano Karo caminhou pelo chão coberto de cacos de cerâmica e artefatos de pedra até chegar a um buraco de dois metros de largura tapado por tábuas. Então, o líder religioso do povo Munduruku tapou os ouvidos, começou a falar em voz baixa e apontou para um pedaço de madeira, pedindo aos demais presentes que o levantassem. Para surpresa de todos, exatamente ali estava um crânio de um ancestral de seu povo, possivelmente datado dos séculos XVIII ou XIX – talvez até antes, já que o local pode ter sido ocupado inclusive no período pré-colonial, segundo as primeiras estimativas.
Para os Munduruku, disse o pajé naquele dia, a descoberta em fevereiro marcava um local sagrado, que deve ser preservado. Já arqueólogos e antropólogos comemoram o achado que pode decifrar parte da história da região do médio Tapajós, no sudoeste do Pará, entre Santarém e Itaituba. Os restos mortais estão surpreendentemente bem preservados.
Apesar do ineditismo científico e da importância religiosa para os indígenas, o sítio arqueológico de Rurópolis pode estar com os dias contados. Situado no distrito de Santarenzinho, um ponto estratégico para a consolidação de uma rota de exportação de grãos do centro-oeste impulsionada pelo governo federal, o lugar foi escolhido pela empresa de logística Transportes Bertolini para a construção de um porto.
Locais sagrados do povo Munduruku foram alvos de violações durante a construção de hidrelétricas (Foto: Juliana Pesqueira)
Se concluída, a Estação de Transbordo de Cargas Rurópolis vai conectar a BR-163 à hidrovia Tapajós-Amazonas, facilitando o escoamento e a venda da soja produzida no Mato Grosso para o mercado externo. Mesmo sabendo da existência dos sepultamentos, a Bertolini está decidida a começar logo a construção. E os órgãos públicos não demonstram disposição para intervir para que a preservação do local seja considerada.
A empresa solicitou a licença de instalação, ou seja, autorização para instalar o canteiro de obras, no dia seguinte à entrega de um relatório detalhando os achados arqueológicos. A licença está em análise na Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas). E, no que depender do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os sepultamentos devem simplesmente ser retirados do local, mas sem debate com os indígenas, segundo documento do próprio instituto acessado pela Repórter Brasil.
A reportagem procurou os Munduruku, mas eles decidiram que só vão comentar o caso após uma conversa com os pajés e caciques do povo.
Reconstrução de vaso de cerâmica encontrado no sítio arqueológico Santarenzinho (Foto: Bruna Rocha)
“Exumar os sepultamentos e seguir com a obra pode ser uma saída [para a empresa], mas não resolve a questão do lugar sagrado dos Munduruku”, critica Bruna Rocha, arqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Para tentar evitar esse desfecho, o Ministério Público Federal do Pará enviou uma recomendação na última sexta-feira (25), pedindo que a Semas não emita licenças e que o Iphan não avance na decisão sobre a retirada das ossadas até que os Munduruku sejam ouvidos– o direito à consulta aos povos afetados por empreendimentos é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. À Bertolini, o MPF solicitou que qualquer intervenção na área do sítio arqueológico seja adiada.
“Sem a realização de consulta prévia, qualquer avanço no licenciamento se torna absolutamente ilegal. A sinalização do Iphan, se confirmada, representa uma violação aos direitos dos povos indígenas”, reitera Rodrigo Oliveira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).
Procurada, a Transportes Bertolini Ltda (TBL) afirmou que “cumpre e seguirá cumprindo rigorosamente o que disciplina à lei para conclusão do projeto”. A Semas disse que reconhece a consulta como um direito dos indígenas, mas ressaltou que ela não se dá no âmbito do licenciamento, “não sendo atribuição da Semas”. (Leia a resposta na íntegra aqui). O Iphan foi procurado pela Repórter Brasil, mas não se pronunciou até o fechamento da reportagem.
Oliveira considera “extremamente grave” a postura da secretaria de não reconhecer sua obrigação, como órgão licenciador, de fazer a consulta aos indígenas: “cabe à Semas a emissão das licenças ambientais que reconhecem a viabilidade e autorizam a construção do empreendimento. No caso, o órgão não pode constatar a viabilidade socioambiental da obra sem que os Munduruku tenham sido consultados, muito menos autorizar qualquer início obra”.
Em 2014, a Bertolini já sabia da existência de três sítios arqueológicos que poderiam estar na área de influência do empreendimento. Em 2017, os estudos arqueológicos encomendados pela empresa confirmaram que o sítio Santarenzinho, onde estão as ossadas seculares dos Munduruku, estava dentro do terreno de 46,3 hectares onde o porto será construído.
A Repórter Brasil teve acesso a documentos que mostram que o Iphan tem um relatório detalhado sobre os achados desde setembro do ano passado.
Mas os indígenas só souberam do cemitério no final do ano e fizeram um reconhecimento no local apenas em fevereiro de 2022, depois que a universidade do Pará acionou o MPF para intervir na questão. Foi uma reação a uma declaração da superintendência do Iphan no Pará que, meses antes, sugeriu que não sabia lidar com o assunto por nunca ter havido um caso semelhante no Pará.
Na verdade, em 2012 e 2017, dois lugares sagrados dos Munduruku foram destruídos pela construção das hidrelétricas Teles Pires e São Manoel com a autorização do Ibama e anuência do Iphan, que deu sinal verde para os empreendedores exumarem as urnas funerárias encontradas. Os indígenas descobriram quase por acaso que os restos mortais de seus ancestrais tinham sido retirados e levados para um museu. Somente depois que eles reivindicaram o material em um protesto, o instituto reconheceu que as urnas deveriam ter o destino que a etnia decidisse – o que, segundo o MPF, é outro precedente para que os Munduruku sejam consultados no caso de Rurópolis. Em 2019, os indígenas finalmente puderam re-enterrar seus antepassados em um local escolhido pelos pajés.
Em 2019, os Munduruku resgataram de um museu urnas funerárias levadas sem seu consentimento (Foto: Rosamaria Loures)
Se determinar a retirada das ossadas à revelia dos Munduruku, o Iphan pode estar repetindo o mesmo erro. Os Ipy Cekay`Piat, ‘lugares sagrados’ na língua dessa etnia, são as casas dos espíritos. Segundo a cosmologia dos Munduruku, devem ser bem cuidados, sob o risco de acontecerem retaliações – mortes por acidentes, picadas de cobra, raios e escassez de alimentos. A violação dos lugares sagrados representou o “cataclisma de seus mundos em nome dos projetos hidrelétricos”, conta o pesquisador Rodrigo Oliveira.
A ONU alerta que a destruição de lugares e bens relacionados à identidade cultural e religiosa de grupos minoritários pode representar uma escalada em direção ao genocídio ou atrocidades em massa.
Em setembro, o Iphan recebeu uma denúncia questionando o trabalho dos arqueólogos. Assinada por um grupo auto-intitulado “Amigos da Arqueologia” dizia que a escavação “se assemelha a ações de vandalismo” e pedia a substituição da empresa.
Nenhuma das fontes acionadas pela Repórter Brasil ouviu falar da associação. A reportagem contatou o grupo, mas não recebeu retorno.
Outro grupo também pediu a substituição da empresa de arqueologia: a Associação Indígena Pusuru, dos Munduruku do Alto Tapajós ligada ao garimpo ilegal. Em fevereiro, a associação enviou uma carta ao Iphan e ao MPF alegando que os arqueólogos “não demonstraram capacidade para desenvolver as pesquisas necessárias”.
O enchimento do reservatório da barragem de São Manoel destruiu ‘Dekoka’a’, local sagrado da etnia (Foto: Rosamaria Loures)
Foi a Pusuru que organizou uma viagem de indígenas a Brasília em apoio ao projeto de lei do governo de Jair Bolsonaro (PL) que legaliza a mineração em territórios indígenas.
A Bertolini também é simpática a Bolsonaro. Há décadas atuando na logística e transportes, Irani Bertolini, diretor-presidente da empresa, integra a diretoria da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística, que concedeu uma medalha de “mérito do transporte” para Bolsonaro. Em dezembro, a entidade recebeu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) na sede da associação.
BertoIrani Bertolinilini também saiu em defesa de Ricardo Salles quando o MPF disse que o ex-ministro do Meio Ambiente era responsável pelo desmonte dos órgãos ambientais do país e pediu seu afastamento. Em uma live de apoio a Salles, Bertolini disse ser “seu fã”: “concordo com a sua maneira de enxergar a questão ambiental”.
Em 2021, a influência dos Bertolini chegou mais perto de Brasília com a assunção do empresário Paulo Caleffi (PSD-RS) à deputado federal. Isso porque Caleffi é ex-diretor da empresa e atual sócio dos Bertolini em vários empreendimentos. Ele inclusive chegou a receber R$ 55 mil de Irani Bertolini quando disputou a prefeitura de Bento Gonçalves.
Apesar da sua influência e de um faturamento de R$ 250 milhões (em 2017) em um mercado em expansão, no âmbito trabalhista a empresa está falhando. No ano passado, a Repórter Brasil revelou violações aos direitos dos trabalhadores da empresa no transporte de grãos da Cargill pelo rio Madeira (RO). Em 2020, a transportadora foi condenada a pagar R$ 10 milhões por conta de um acidente em 2017, que deixou 9 mortos no Pará.
A Bertolini sabe da importância do novo terminal em Rurópolis. O Brasil foi o segundo maior exportador de grãos do mercado global em 2020. Além disso, o porto paraense significa uma ampliação importante nas atividades da empresa, que hoje tem mais de 400 balsas de transporte de grãos na bacia do Amazonas.