Abaixo-assinado sobre os abusos e a questão institucional. Artigo de Andrea Grillo

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19 Março 2022

 

O problema da inadequação da Igreja diante do escândalo dos abusos depende de uma forma institucional velha há séculos e que não tivemos a coragem de reformar. O atraso está nos “mecanismos mundanos” com os quais a Igreja acha que assegura a justiça.

 

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 17-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O abaixo-assinado aos bispos italianos, assinado por um considerável número de teólogos, dos quais R. Maier já apresentou três dimensões importantes (aqui [em italiano]), pode ser inserido em um âmbito mais amplo, que normalmente é identificado com uma série de termos, que se tornaram importantes nos últimos nove anos graças ao poderoso impulso que o magistério do Papa Francisco exerceu sobre eles.

 

Eles podem ser identificados na expressão “superação da autorreferencialidade”, que necessariamente se traduz em dois desejos: o da “Igreja em saída” e o da “reforma da Igreja”.

 

Essas três locuções estão em uma relação muito mais próxima do que se pensa, e, de fato, apenas ao se mostrar claramente a correlação entre as três frases, pode-se evitar cair no uso retórico delas, o que evidentemente sempre é possível.

 

Tentemos dizer isso com uma imagem, que Francisco, antes de se tornar Francisco, ou seja, poucos dias antes do conclave de 2013, havia expressado de forma “irônica”. Citando o livro do Apocalipse, na passagem em que o Senhor está à porta e bate, o cardeal Bergoglio dizia: “Tentemos pensar que ele bate, mas não para entrar, mas para sair. Nós o fechamos por dentro”.

 

Eis a imagem que nos permite entender que a “autorreferencialidade” eclesial da qual devemos nos libertar pede uma “saída” e uma “reforma”. Pede uma saída nos termos de uma relação com aquilo que “não é Igreja”, para estar em relação, para ensinar e para aprender, para descobrir Deus já presente, para levar uma palavra de paz ou para aprender formas de vida novas e surpreendentes.

 

Reforma e saída estão estreitamente correlacionadas. Por um lado, a Igreja só poderá sair verdadeiramente se for capaz de se reformar, somente se não se enforcar nas disciplinas tristes que não funcionam mais; somente se não cortar ás próprias asas com formulações da doutrina velhas, empoeiradas, entediantes e inadequadas. Portanto, a reforma é uma condição da saída.

 

Mas, por outro lado, as coisas também se invertem. Somente se for capaz de sair verdadeiramente, se se expuser ao mundo, às suas formas de vida, aos seus espetáculos tristes e alegres, humanos e desumanos, é que a Igreja encontrará os recursos e as formas adequadas para a reforma de si mesma. Sob esse perfil, a saída é uma condição da reforma.

 

Tudo isso me parece constituir o horizonte para poder compreender adequadamente o sentido da iniciativa do abaixo-assinado sobre o tema dos abusos. Porque uma dinâmica como a dos abusos (de menores, de mulheres, de religiosas...) pede à Igreja uma saída necessária e urgente. Que assume, em primeiro lugar, a forma de uma investigação realizada de modo imparcial.

 

As vítimas pedem justiça. Esse fato, na sua elementar crueza, é um sinal dos tempos. No sentido em que mostra que a pretensão, construída em 1917 com o Código de Direito Canônico e que continuou em 1983, com o novo código, de constituir a Igreja como “ordenamento eclesial autônomo”, não consegue garantir a justiça. É preciso uma “saída” para que os terceiros realmente tenham uma palavra a dizer.

 

Em outras palavras, a estrutura eclesial, do modo como está articulada em seu interior e do modo como está estruturada, não é capaz de “fazer justiça”. Por isso, os “terceiros”, que julgam de fora, podem fazer justiça aos “terceiros” que sofreram a violência.

 

Aqui há um entrelaçamento entre Igreja e mundo que deve ser pensado não mais com as categorias de Agostinho, de Tomás de Aquino, de Belarmino ou de Gasparri, mas com as de Beccaria e Boeckenfoerde. Assim haviam feito em seu tempo os quatro grandes que eu citei, e assim nós também devemos fazer. Isso é tradição, ou seja, saber mudar de paradigma.

 

É evidente que esse caso – refiro-me ao caso da “Comissão Independente sobre os Abusos” – é apenas um exemplo de uma reforma estrutural, que no futuro poderá permitir institucionalmente a “saída” de que a Igreja precisa para “fazer justiça”.

 

Ou seja, a introdução de uma “divisão de poderes” que a Igreja não só não conhece no plano normativo, mas que há dois séculos também combateu orgulhosamente. Essa consciência deveria nos convencer de uma coisa muito simples e que muitas vezes é ignorada no debate, por especialistas muitas vezes improvisados.

 

O problema da inadequação da Igreja diante do escândalo dos abusos depende de uma forma institucional velha há séculos e que não tivemos a coragem de reformar. O atraso está nos “mecanismos mundanos” com os quais a Igreja acha que assegura a justiça.

 

O problema é que ela se vale dos mecanismos que os Estados modernos abandonaram há 200 anos e que na Igreja sobrevivem por inércia e por resistência. A reforma da Igreja certamente é uma reforma dos corações, uma conversão das mentes, uma renovação do testemunho e do fogo da fé, mas é também uma mudança profunda e iluminada dos procedimentos e das formas administrativas.

 

Talvez aqui se encontre um dos pontos mais frágeis da consciência eclesial contemporânea: pensar o tema dos abusos (mas também o tema diferente do sínodo) com pouca atenção à reforma dos procedimentos de justiça e de administração. Que, por sua vez, estão entre as coisas mais urgentes. Não é por acaso que, entre os signatários do abaixo-assinado, a presença de canonistas é bastante ínfima, embora qualificada.

 

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