“O poliamor propõe que podemos ter tantos amores quantos formos capazes de subscrever. É uma forma neoliberal de casal: dentro da sociedade conjugal, cada um acumula o capital erótico que seus méritos permitem, sem outra regulação senão a adesão à legalidade”. A reflexão é de Santiago Thompson, psicanalista, doutor em Psicologia e mestre em Psicanálise, em artigo publicado por Página/12, 24-02-2022. A tradução é do Cepat.
É sempre problemático falar sobre “o novo”. Corremos o risco de habitar um museu de grandes novidades. Vou me apoiar neste breve levantamento no que concordamos ser uma mudança de época: a progressiva substituição da era analógica pela era digital, das sociedades disciplinares pelas sociedades de controle, do discurso do senhor pelo (pseudo)discurso capitalista, e suas consequências subjetivas nos laços amorosos. Essa transição foi observada por autores como Gilles Deleuze, Byung-Chul Han, Paul B. Preciado, e delineada com notável força à frente de seu tempo por Jacques Lacan. A era digital é marcada por redes e tratamentos farmacológicos do corpo, enquanto a era analógica é caracterizada por muros, locais de confinamento como forma de disciplinamento e condicionamentos mecânicos do corpo.
“Hoje queremos experimentar mais do que possuir”, afirma Byung Chul Han. Em seu livro Não-coisas, ele afirma que nosso mundo digital “não é feito para a posse, pois nele quem rege é o acesso. Os vínculos com coisas ou lugares são substituídos pelo acesso temporário a redes e plataformas. De fato, não estamos interessados em acumular CDs, mas em acessar o streaming ilimitado, não juntamos DVDs e o Blu-Ray nem se popularizou (a ponto de muitos leitores não saberem da existência deste último suporte físico de áudio e vídeo); estamos preocupados com a nossa assinatura das plataformas digitais. Nenhum bem de hoje é tão importante quanto o acesso a uma rede Wi-Fi, que é o que dá valor a praticamente todo o resto. A geografia perde sua complexidade e há apenas dois lugares: um sem conexão, isolado e longe de tudo; o outro que é nossa casa, o mundo online. O resto é paisagem.
É uma lógica que, mantidas as distâncias, podemos estender aos laços amorosos. O poliamor propõe que podemos ter tantos amores quantos formos capazes de subscrever. É uma forma neoliberal de casal: dentro da sociedade conjugal, cada um acumula o capital erótico que seus méritos permitem, sem outra regulação senão a adesão à legalidade.
As partidas no Tinder outorgam não a posse, mas o eventual acesso a um número mensurável de parceiros. Lógica que se estende ao resto das redes: existe um capital que se mede com base no número de seguidores e/ou contatos online. Não se tem sua posse, mas o acesso a eles, e é esse acesso que tem valor no mercado afetivo sexual.
A monogamia está em declínio porque a posse está em declínio como forma de vínculo. A queda do patriarcado é também a queda da posse do parceiro como forma de vínculo afetivo-sexual privilegiado. “Como é ridículo você pensar que tudo é seu, inclusive eu”, diz uma música dos Babasónicos. De fato, pensar que hoje alguém possui outra pessoa é ridículo. Existe um amor que sobrevive sem a posse. “Não preciso do seu consentimento para me apaixonar”, expressa Dárgelos em outra música. O amor possessivo hoje é denunciado pelos feminismos como esse “amor romântico” que é dever desconstruir. Tudo é construído e destruído tão rapidamente que no mesmo instante em que se possui já se perdeu. “Guarda-se apenas aquilo que não se amarra”, Drexler dixit. O discurso capitalista se consuma tão rapidamente quanto se consume. O casal não é mais uma prisão de ouro, mas uma tábua de salvação de gelo.
As estatísticas mostram que a idade média do primeiro casamento (entre aqueles que ainda se casam!) passou de 23 anos na década de 1950 para uma média urbana de 35 anos em nossos tempos. Essa procrastinação é motivada pela necessidade de ter... experiências. Procrastinação que pode durar a vida inteira: já ouvi de homens com mais de sessenta anos o já desgastado bordão: “não quero compromisso”. O poder masculino que hoje conserva legitimidade não passa pela posse, que em todo caso implica pacto, reciprocidade, deveres e obrigações, mas sim pela detenção do direito à liberdade individual. “Os homens dominam as normas de reconhecimento e compromisso. A dominação masculina assume a forma de um ideal de autonomia ao qual as mulheres aderiram através da luta pela liberdade na esfera pública”, observa Eva Illouz em seu best-seller Por qué duele el amor (Por que o amor dói). Essa lógica deve ser estendida a muitas mulheres, que dentro de uma lógica fálica também medem seu lugar nesse neoliberalismo amoroso. Enquanto o exercício do poder dentro do casal pelos homens é hoje severamente punido, e as mulheres possessivas são tachadas de “intensas”, o direito à liberdade individual como um bem supremo está crescendo entre o eleitorado jovem. A direita hoje não é “conservadora”, mas “libertária”.
É preciso dizer que essa cultura da experiência tem seus limites... e são os limites subjetivos. O que chamo de “esperança digital” é a idealização dessa possibilidade de nos livrarmos dos laços que nos prendem às coisas e aos corpos, um ideal de forclusão do impossível. A série Years and Years retrata uma adolescente que busca, não mais a transição (que ainda é uma forma tecnológica de estender os limites do corpo), mas se “digitalizar”; transformar-se em dados binários e afrouxar as amarras do corpo. Como em vários capítulos da série Black Mirror, essa utopia mostra dramaticamente seu fracasso.
Entendo que o termo “poliamor” é em si problemático. Enquanto o desejo carrega em sua essência a passagem de um objeto a outro, o amor está fixado, não a um corpo, mas a um nome. “Não há amor, mas apenas um nome”, diz Lacan ao final de seu seminário sobre a angústia. Sob o pretexto de promover a liberdade, o poliamor na verdade promove uma forma de vínculo altamente regulamentada, onde toda atividade deve ser informada ao parceiro. Literalmente, deve-se ler o “poli”... como policial. Esse ideal de transparência leva ao que Han denuncia como a morte de Eros: a forclusão da opacidade que torna o erotismo obsceno, pornográfico. Sem segredos não há amor.
Os casais estáveis sofrem dessa lógica de acesso: aplicativos de mensagens (Telegram, WhatsApp) e redes sociais fazem do parceiro alguém que está sempre presente, online e vigiável no panóptico digital. Essa lógica abre as portas de um inferno pouco encantador: a espera ansiosa pela resposta, a obrigação de responder, a preocupação com o status “online” do parceiro, o empurrão para stalkear.
A era digital supõe uma lógica de conexão e desconexão que alivia o entre-dois da intimidade. O “visto” como um ponto de ruptura, o ghosting como o fim habitual dos encontros informais são moeda corrente e fontes de angústia. O outro é tão acessível quanto o vínculo é frágil. De manhã podemos não conhecer alguém, à noite podemos dividir a cama com essa mesma pessoa e na manhã seguinte nunca mais saber dela sem nenhum ritual de despedida. Até a mesma pessoa pode reaparecer depois de muito tempo sem qualquer justificativa, assim como retomamos uma série seis meses depois sem sermos questionados pela Netflix sobre o tempo transcorrido.
A própria família como experiência marca um limite. Na análise de varões, ouve-se: “Eu poderia desperdiçar meu tempo com as ‘minas’ a vida toda, mas assim nunca terei um filho... ou vou estar tão velho que não poderei brincar com ele”. Nas mulheres, o limite biológico é diretamente dramático. As técnicas de fertilização assistida – outro elemento da cultura digital – em alguns casos funcionam como uma espécie de seguro ou backup: financia-se um plano B enquanto a vida passa de outras maneiras. As famílias que se formam também sofrem com o impulso da experiência: “Life is short, have an affair” [A vida é curta; tenha um caso] é o slogan do Ashley Madison, famoso site de namoro para casados. É também uma evidência de que as famílias têm um ciclo: passado o período da criação dos filhos (ou seja, consumada a experiência da paternidade), a separação e a volta à circulação no mercado amoroso são uma saída que hoje prevalece.
O que propor a partir de uma análise nesse estado de coisas? Em primeiro lugar, as coordenadas da época. Não se pensa no verão quando a neve cai, e não se anseia velhos desconfortos para sair dos contemporâneos. Todo discurso gera seus excluídos, seus pontos de impotência e impossibilidade. Diante da explosão das formas ritualizadas do namoro e do casal, abre-se o campo para pactos singulares. Um pacto para viver, que pode afastar-se da sujeição aos ideais da época. Além dos altos e baixos, a busca pelo amor do parceiro persiste nos seres falantes. O solteirão rico, vencedor nas redes, sofre por não esbarrar naquela que lhe faz falta, a bela histérica não se contenta com os espelhos digitais que sempre a deixam insatisfeita. O varão que se proporciona encontros fugazes via Grindr desfalece diante do olhar “desse” colega de estudos. Não há partidas, nem seguidores, nem curtidas, que possam suturar a ausência do Outro do amor. É uma fixação que se sofre: a busca do amor que supre a não-proporção sexual.
Para concluir, quero destacar que a esperança digital está no centro da aversão que nossa clínica gera hoje. A negação da diferença sexual, “a falsa utopia de um mundo perfeito”, uma nova ordem onde não sofreremos a não-proporção sexual, nada mais são do que uma expressão, disfarçada de boas intenções, do capitalismo digital. “Impossible is Nothing” [Nada é impossível] reza a publicidade da Adidas, e promete os fuzileiros do bem que cuidam para vocês as portas do novo céu. A perseguição policial aos colegas por parte daqueles que defendem as posições de boa consciência, em que a cultura do cancelamento alivia o confronto de argumentos e o debate de ideias, revela o seu apego ao panóptico digital. Como sustentava Giorgio Agamben, ser contemporâneo não significa aplaudir a época, mas perceber suas opacidades.