16 Fevereiro 2022
A pátria do Papa Francisco está ficando “doente de ódio”, e a sua figura e mensagem foram cooptadas, diz o Pe. Rafael Velasco, o homem que hoje lidera os jesuítas da Argentina, assim como o pontífice fez na década de 1970.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada em Crux, 14-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A nossa crise não é apenas política, social e econômica: é também espiritual”, disse Velasco. “A alma da nação está ficando doente, se é que se pode falar de tal coisa. Para sair dessa crise, devemos levar em conta também o fator anímico-espiritual: o ódio que estamos nos inoculando.”
Falando ao Crux logo após a morte de 24 jovens argentinos depois de consumirem cocaína envenenada, o provincial jesuíta disse que deixar de odiar é uma decisão que deve ser tomada primeiro em nível pessoal, para depois se transformar em uma decisão política.
“Quando vieram à tona as notícias dessas pessoas, viciadas em drogas ilegais, que morreram envenenadas, muitos reagiram dizendo: ‘Deixem que se matem, são faloperos’”, disse ele. “Faloperos” é uma expressão vulgar usada na Argentina para se referir às pessoas viciadas em drogas.
Velasco acredita que há um “microclima” dentro da liderança argentina, que simplesmente não representa a maioria da população do país, que atualmente vive abaixo da linha da pobreza.
“Existe um lugar-comum nas camadas média e alta segundo o qual ser pobre é ser alguém que quer viver sem trabalhar, que é viciado em drogas e vive às custas do Estado, e não é assim", disse ele, acrescentando rapidamente que não se considera um “pobrista” [pauperista], alguém que quer que os pobres continuem pobres, quase idolatrando a situação deles.
“Pobrista” é um termo atualmente usado na Argentina para atacar o Papa Francisco.
Algumas pessoas da oposição acusam o pontífice de querer que o país “permaneça pobre” e que por isso ele é “kirchnerista”, em referência ao governo de esquerda que liderou o país durante a maior parte dos últimos 20 anos.
“E se você tentar dar voz aos pobres, se você falar daqueles que lutam contra as drogas como pessoas de igual dignidade, porque foram todas criadas à semelhança de Deus, então você é rotulado como kirchnerista ou ‘pobrista’”, disse Velasco.
O problema não está apenas na interpretação “errônea” que a oposição faz da mensagem de Francisco, mas também na caracterização equivocada feita pelos governantes. Esta última “dá o ritmo, apresentando-o como alguém que ele não é, e sua mensagem como algo que não é”.
Muitas pessoas na Argentina, reconhece, nunca ouviram o papa falando sobre a importância de pagar impostos – e de que o Estado os use de forma transparente – nem sobre a dignidade do trabalho. Menos ainda, disse ele, “sobre o combate à corrupção dentro da política”, porque, diz o padre, ambos os lados da “linha do ódio” não conseguem sequer tentar uma política honesta.
“Nestes tempos, aponta-se com insistência para um suposto ‘uso político’ dos pobres”, disse Velasco. “Agora, suponhamos que existam, de fato, organizações que fazem uso político dos pobres. Isso, no entanto, não faz com que o problema básico desapareça: muitas pessoas não têm oportunidades nem acesso a direitos básicos, como educação, saúde, água encanada e eletricidade.”
O jesuíta diz que o pontífice também é politizado dessa maneira.
“Quando fala sobre o direito universal à terra, ao teto e ao trabalho, para muitos Francisco não passa de um bandido rural. No entanto, ele está apontando para três direitos básicos aos quais muitos concidadãos hoje não têm acesso”, disse.
Velasco é o provincial jesuíta da Argentina e do Uruguai. Reestruturada há 12 anos, a província tem cerca de 150 membros, dezenas de escolas, centros de retiros, universidades e vários Hogares de Cristo, uma rede de mais de 200 institutos administrados pela Igreja que ajudam as pessoas no combate à toxicodependência. A maioria deles está localizada em favelas ou em regiões severamente empobrecidas do país. Eles foram criados por Bergoglio, antes de ele ser eleito para o papado.
Quando se trata da “figura” de Francisco, que foi provincial dos jesuítas na Argentina entre 1973 e 1979, Velasco acredita que ela está “presa no problema do ódio”. Aqueles que o elogiavam no início o faziam porque acreditavam que ele odiava os Kirchner, mas, quando viram o papa dando as boas-vindas ao então presidente Fernández, “começaram a odiá-lo”, disse o jesuíta. E vice-versa: aqueles que o odiavam interpretaram mal os seus gestos e se convenceram de que ele é comunista – “e veem isso como algo bom”.
Ambos os lados da divisão política na Argentina, disse Velasco, acreditam que Francisco é comunista. E a mídia tem feito a sua parte, convencendo uns e outros de que estão certos.
O fato de o papa ainda não ter ido visitar seu país de origem não ajuda: “Aqueles que o apoiam ficam sem explicação e também estão decepcionados. Mas não é justo exigir que alguém explique por que a Igreja é dirigida por um comunista e terminar com ‘por que ele não vem?’, como se essas duas questões pertencessem à mesma linha de pensamento”.
Quanto ao fato de ele não ir à Argentina, Velasco disse que se trata de algo que ele nunca perguntou a Francisco – e os dois se encontraram no início deste ano, durante uma cúpula de provinciais jesuítas em Roma –, mas ele acha que é porque “ele não acredita que a sua visita ajudaria de alguma forma”.
“Sempre que ele viaja, é porque ele acha que pode ajudar de alguma forma, mas aqui ninguém vai ouvir o que ele tem a dizer, e as pessoas vão se focar em quem tirou uma foto com ele ou para quem ele deu um terço”, disse Velasco.
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Provincial jesuíta argentino diz que Francisco foi “cooptado” por políticas do ódio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU