14 Janeiro 2022
"O empresariado brasileiro parece apostar na continuidade do atraso, no descaso com o bom emprego, na desproteção e no empobrecimento do trabalhador", escrevem José Ricardo Ramalho e Rodrigo Salles P. Santos, sociólogos, em artigo publicado por GGN, 13-01-2022.
O mundo capitalista, sob os efeitos da pandemia de Covid-19, vê se aprofundarem os dilemas explicitamente colocados pela crise financeira de 2008. Ao aumento das desigualdades sociais e à ameaça constante aos sistemas de saúde pública já muito fragilizados, as mudanças climáticas ampliam exponencialmente a escala dos desafios enfrentados pela humanidade.
O Brasil e, em particular, suas elites empresariais parecem ignorar esses dilemas. Suas respostas a este contexto crítico têm se pautado por escolhas políticas e econômicas desgarradas dos problemas principais da sociedade brasileira.
A ação do Estado também nunca esteve tão afinada com uma postura predatória voltada a garantir os “lucros a qualquer custo” de setores importantes da economia brasileira. Estamos passando por um evidente processo de desdemocratização (Tilly, 2013), recuando em relação aos importantes avanços civilizatórios da Constituição de 1988.
Curiosamente, as alternativas que vêm sendo criadas globalmente para enfrentar os novos tempos têm incluído o estabelecimento de um conjunto ‘novo’ de critérios para guiar e justificar moralmente os investimentos financeiros. ESG (Environmental, Social, and Governance) é a sigla, em inglês, que agrega as condições consideradas essenciais para que investimentos incorporem em suas políticas o respeito ao meio ambiente, a atenção às condições da sociedade e a transparência na gestão (Investopedia, 2021; Social Good Connect, 2021).
Nesse novo código de conduta para a ação empresarial, chama a atenção o item Social. Se há ligeiras diferenças de ênfase no modo como o “social” é incorporado nesse conjunto, algumas especificações estão bem explícitas. Segundo o portal Social Good Connect (2021), a dimensão social inclui o modo como as empresas tratam seus funcionários, suas condições de trabalho (incluindo saúde e segurança), os salários e benefícios, a atenção com a discriminação de gênero e de cor, e a integração com a comunidade local ou licença social para operar.
Embora anuncie a sua pretensa adesão a essa nova iniciativa, o empresariado brasileiro, coadjuvado pelo Congresso e pelo Executivo nacionais, parece apostar na continuidade do atraso, no descaso com o bom emprego, na desproteção e no empobrecimento do trabalhador. Insiste em uma suposta oposição entre “vida” e “economia”, ativamente conformando “a economia como instância separada da política, da sociedade, da natureza e da vida” (Santos e Onto, 2021, p. 15).
Nos chama a atenção, em especial, a militância aguda e contínua para reduzir as proteções sociais mínimas para quem trabalha. Assiste-se a um ataque direto e incessante a preceitos constitucionais estabelecidos como direitos do trabalho.
O argumento de que se criam condições para que o trabalhador escolha “livremente” um emprego esconde uma brutal assimetria na relação entre o empregador e o empregado, contornando o fato de que a necessidade premente de ter renda, em um mercado de trabalho cheio de desempregados, acaba por tornar inevitáveis as formas de subordinação precária. É uma liberdade que aumenta a insegurança e desqualifica a atividade laboral.
A Reforma Trabalhista de 2017 (Brasil, 2017) e agora a sua complementação e aprofundamento com o relatório do Grupo de Altos Estudos do Trabalho (GAET), vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência (MTE, 2021), fogem às características essenciais do jogo democrático institucionalizado e legitimado em fases anteriores do sistema capitalista no século XX, que estabeleceram um processo necessário de negociação entre os atores sociais envolvidos no debate de redistribuição da riqueza produzida, com a garantia do Estado.
Com o argumento de criar mais postos de trabalho, passados quatro anos da sua assinatura, o balanço dos efeitos da Reforma é claramente negativo. Na verdade, a ruptura com as instituições do trabalho da era da CLT não apenas impediu a criação de oportunidades substantivas de emprego, como também fragilizou os laços de trabalho vigentes.
Em matéria recente, Almeida e Scatolini (2021), baseando-se em levantamento de empresas de consultoria especializadas e adotando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) como fonte, revelam um quadro assustador no que diz respeito aos salários e à proteção social no Brasil de 2021. “Quase metade (49,3%) da população ocupada brasileira está em empregos de baixo salário, com pouca estabilidade, sem rede de proteção social e com jornadas longas. […] A renda média real (descontada a inflação) do trabalho caiu 11% frente ao mesmo período de 2020, para o nível mais baixo desde 2012”.
As notícias sobre o aumento da pobreza são igualmente atemorizantes. “A proporção de pobres – quem tem renda per capita mensal de até R$ 261 – era de 10,97% (23,1 milhões de pessoas) em 2019. […] No primeiro trimestre de 2021 tirando o auxílio emergencial, mas devolvendo o Bolsa Família, a pobreza é multiplicada por 3,5 e chega a 16,1% da população. Isto significa 34,3 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, 24,5 milhões a mais do que antes da pandemia” (Gombata, 2021).
Tudo isso nega de forma peremptória as características propugnadas pelos critérios ESG de estímulo ao investimento financeiro. Se esta é a perspectiva de futuro, a governança presente das empresas brasileiras ainda é antediluviana, especialmente no que se refere à dimensão social do pretenso novo quadro normativo, particularmente pelo modo desrespeitoso como a questão das relações de trabalho é tratada no Brasil.
Não há outra palavra para definir este tipo de ação política do que a “devastação” proposital de garantias inscritas na Constituição de 1988 e do regime de proteção laboral e social que ela institui. Mas, além de tudo, nas medidas adotadas e sugeridas fica evidente a consagração de uma política antissindical como princípio norteador da gestão do mundo de trabalho e dos trabalhadores.
A OIT, que vem articulando uma visão prospectiva para o trabalho, aponta a concentração do poder econômico e o declínio da força das organizações dos trabalhadores e da negociação como razão “para o aumento da desigualdade dentro dos países” (OIT, 2019, p. 25), deixando claro que é exatamente a desconstrução dos canais de voz e participação dos trabalhadores que torna a realidade presente do trabalho tão sombria.
Na contramão das tendências mais progressistas do empresariado capitalista, a opção brasileira é a de “conceder mais liberdade” ao trabalhador para vender sua mão de obra ao mercado, sem a interferência de direitos e proteções sociais, promovendo a desqualificação de seus órgãos coletivos de representação
A promulgação da Reforma Trabalhista de 2017 dependeu da formação de uma coalizão política influente (que reúne empresários, parlamentares, ministros, juízes, economistas e intelectuais ligados ao tema do trabalho), que ainda não se desmobilizou, como indica a publicização do relatório do GAET (MTE, 2021).
A Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e a REMIR (2021), lastreadas em um acompanhamento acadêmico sistemático sobre a Reforma Trabalhista e seus impactos, identificam nas novas propostas do GAET o aprofundamento da “liberdade das empresas determinarem as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, além de retirar a responsabilidade do Estado e das empresas sobre a proteção social das pessoas ocupadas”.
O andamento do processo de decisão sobre mudanças nos direitos do trabalho no Brasil não tem nada de democrático. Definições básicas de democracia são identificadas “na medida em que as relações políticas entre o Estado e seus cidadãos engendram consultas amplas, igualitárias, protegidas e mutuamente vinculantes” (Tilly, 2013, p. 28). Não é o nosso caso certamente.
A Reforma Trabalhista e as propostas do GAET remetem a decisões de grande alcance social que se eximem do debate público e sujeito à avaliação com base em critérios claros e negociados com os grupos envolvidos. Um grupo de estudos que prepara alterações das regras de negociação coletiva, em nenhum país democrático do mundo deixaria de convocar os sindicatos e os que vivem do trabalho para negociarem seus termos e considerar os seus pontos de vista. O Brasil e suas elites estão definindo de antemão, portanto, quais são os interesses e quais as necessidades de quem quer e precisa trabalhar.
Não é necessário ir muito longe para constatar o despropósito desse tipo de iniciativa, bastando consultar instâncias tripartites como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Entre as recomendações principais de sua visão de futuro estão o fortalecimento e a revitalização das instituições de trabalho: “Desde regulamentos e contratos de trabalho até acordos coletivos e sistemas de inspeção trabalhista, essas instituições são os blocos de construção de sociedades justas. Eles forjam caminhos para a formalização, reduzem a pobreza no trabalho e garantem um futuro de trabalho com dignidade, segurança econômica e igualdade”.
Segundo a maioria das publicações sobre os novos desdobramentos do mundo financeiro, a agenda ESG e as “ações ligadas à letra S […] ganham protagonismo entre as grandes organizações”. Nas palavras do vice-presidente de relações internacionais e sustentabilidade de uma operadora instalada no Brasil, “a ESG deixou de ser encarada como uma opção estratégica das diretorias para funcionar como uma ferramenta necessária à perenidade dos negócios (Saraiva, 2021, p. 36).
Do ponto de vista das mudanças esperadas quanto à governança (o G do ESG), a transparência faz aumentar as exigências de um capital ético. Para Jorge Görgen, Diretor de Comunicações do Grupo IVECO, “a governança é o pilar onde se começa a construir o social e o ambiental. Essa letra é o princípio para que as narrativas se sustentem, não se flerte com o brainwashing (lavagem cerebral), socialwashing (marketing disfarçado de filantropia), ou estratégias que visem resultados de curto prazo” (Guimarães, 2021).
Ao notar esse ‘novo’ movimento do mundo das finanças mundiais, fica uma dúvida sobre o que as empresas brasileiras têm a ver com isso. São muitas contradições entre o discurso e a prática que se institucionaliza. Ou talvez seja o caso de manifestar a preocupação com a narrativa que adota como padrão de negócio uma estratégia de “workwashing”.
ABET; REMIR. 2021. Nova ofensiva contra os direitos trabalhistas e a proteção social: o relatório do GAET. Jornal GGN, 21 dez. 2021. Disponível aqui.
Almeida, Cássia Almeida e Amanda Scatolini, Amanda. 2021. Quase 50% dos trabalhadores no Brasil estão em vagas com baixos salários e sem proteção social, mostra pesquisa. O Globo, 29 dez. 2021. Disponível aqui.
Brasil. 2017. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho, § 1 (2017).
Gombata, Marsílea. 2021. Crise cria legiões de “Novos pobres” no país. Valor Econômico, 30 nov. 2021. Disponível aqui.
Guimarães, Solange. 2021. De olho nas exigências do capital ético. Valor Econômico (Valor Setorial – comunicação corporativa), dez. 2021. p 42-54.
ILO. 2019. Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work. Geneva, 2019, 77 p. Disponível aqui.
Investopedia. 2021. Environmental, Social, and Governance (ESG) Criteria. Investopedia, mar. 2021. Disponível aqui.
Relatório do Grupo de Altos Estudos do Trabalho (GAET). Ministério do Trabalho e Previdência. Secretaria de Trabalho. Disponível aqui.
Santos, Rodrigo Salles Pereira dos e Onto, Gustavo. 2021. Capitalismo, democracia e teoria social em Karl Polanyi: uma entrevista Com Gareth Dale. Sociologia & Antropologia, v. 11, n. 1, p. 15-40.
Saraiva, Jacilio. 2021. Mais projetos para combate à fome, saúde e educação. Valor Econômico (Grandes Grupos), dez. 2021, p. 36-38.
Social Good Connect. 2021. Home. Social Goode Connect, 2021. Disponível aqui.
Tilly, Charles. 2013. Democracia. Petrópolis, Editora Vozes.
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O capital ético e o trabalho desprotegido no Brasil: uma combinação improvável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU