23 Dezembro 2021
"Se literatura se alimenta de reescritas bíblicas, não se deve esquecer que as traduções do texto sagrado foram a primeira e mais rica forma, partindo daquela grega chamada dos Setenta do século II a.C., passando pela Vulgata de Jerônimo no final do século IV d.C. e, por fim, as incontáveis outras que se seguiram desde a invenção da imprensa", escreve Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão, Itália, em artigo publicado por La Lettura, 19-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se Thomas Mann tivesse que se ater às orientações para uma comunicação inclusiva propostas pela Comissão Europeia liderada por sua compatriota Ursula von der Leyen, talvez tivesse desistido de escrever o que considerou sua maior obra, por medo de ferir uma parte do público leitor ao reescrever a história de violência e exílio, traição e perdão que ocupa quase a metade do livro bíblico do Gênesis. Felizmente o grande escritor (e oponente decidido do nazismo, que portanto entendia algo de inclusão e exclusão) não tinha esses problemas e a literatura do Velho Continente pode incluir entre suas obras-primas o ciclo de romances reunidos sob o título de José e seus irmãos. Piero Boitani inspira-se em Mann para seu livro Refazer a Bíblia para guiar o leitor sobre os passos que o Antigo e o Novo Testamento disseminaram em dois mil anos da literatura ocidental, de Dante a Chaucer, de Shakespeare a Dostoievski e Pasternak, de Faulkner a Saramago passando por muitos mais. O capítulo final é dedicado a "um dos romances mais belos e comoventes" do século XX, Jó de Joseph Roth (o parecer é de Boitani e, pelo que vale, é compartilhado por quem escreve).
Piero Boitani,
Rifare la Bibbia. Ri-Scritture letterarie,
il Mulino, pp. 341, € 28
O conflito entre a interpretação bíblica dos judeus e aquela cristã, já no cerne do Mercador de Veneza e da violência que o atravessa, é desatado e (talvez) resolvido nas páginas de Roth.
O aparecimento inesperado de Menuchim diante do velho padre Mendel Singer, judeu piedoso e devoto que o havia abandonado quando criança e que a isso atribui a série de infortúnios pelos quais passara, assume os traços de Elias arauto do Messias a quem, na ceia de Pesah, é reservada uma taça de vinho e ao mesmo tempo de Jesus ressuscitado que aparece aos discípulos, apesar da porta fechada do cenáculo onde se refugiaram depois de sua morte, segundo o Evangelho de João. Claro, na era da secularização, o reconhecimento não é dado como certo. Aliás, o próprio Menuchim aparece como estranho à fé do pai: por ser uma reescrita do texto bíblico, o final do romance é aberto a escolha dos leitores, assim como a Palavra pode ser aceita ou rejeitada na sua pretensão de vir de Deus.
Se literatura se alimenta de reescritas bíblicas, não se deve esquecer que as traduções do texto sagrado foram a primeira e mais rica forma, partindo daquela grega chamada dos Setenta do século II a.C., passando pela Vulgata de Jerônimo no final do século IV d.C. e, por fim, as incontáveis outras que se seguiram desde a invenção da imprensa. Já que traduzir é sempre reescrever ou, como argumentou Umberto Eco, "dizer quase a mesma coisa", onde no quase se resumem as diferenças de contexto geográfico, confessional e cultural - ou seja, do público a que se dirigem os tradutores.
Bibbia
Org. Enzo Bianchi,
Federico Giuntoli e Ludwig Monti,
Volumes I-II: Antigo Testamento.
Volume III: Novo Testamento Páginas,
CXCVIII- 3,722 - € 240
A colocação da Bíblia na série "I millenni" da Einaudi esclarece assim a intenção com que trabalhou durante cinco anos a equipe de tradutores liderada por Enzo Bianchi: oferecer ao leitor uma versão italiana digna de um clássico da literatura, livre da linguagem eclesiástica e dos seus condicionamentos, em equilíbrio entre a fidelidade filológica ao texto e a perspicuidade linguística. Para tanto, as notas de comentário têm o propósito declarado de esclarecer os pontos mais difíceis de serem compreendidos ou transcritos, apoiando-se em toda a história da tradição do texto bíblico; não se deve esquecer que a Bíblia Hebraica (cuja disposição dos livros é aqui seguida, diferente daquela usada nas Igrejas Cristãs) conheceu sua forma definitiva apenas por volta do século X d.C., quando os escribas (em hebraico: masoretas) fixaram o texto, introduzindo as vogais que normalmente não eram representadas nas línguas semíticas. Jerônimo e a Septuaginta representam camadas textuais anteriores ao texto masorético que podem ser úteis para melhor compreender este último, mesmo que os tradutores da Einaudi pareçam muito atentos para nunca forçar o sentido; a escolha de usar breves citações do texto como títulos de capítulos também vai nessa direção.
A leitura reserva mais do que uma surpresa. A introdução tradicional: "No princípio Deus criou o céu e a terra" é substituída pelo mais dinâmico "Quando Deus começou a criar o céu e a terra ...", de forma que a ordem "Faça-se luz!" parece natural conclusão dos primeiros compassos. As primeiras palavras do Eclesiastes: “Sopro absoluto, absoluto sopro; tudo é um sopro” libertam o texto do tom moralista imprimido por Jerônimo com sua “Vaidade das vaidades ...” a que estamos acostumados. Em alguns casos, o resíduo da estratificação interpretativa confessional aparece: na conclusão da Epístola aos Romanos de Paulo, o termo diakonos (no masculino) referido a Febe é traduzido com uma perífrase ("a serviço da comunidade") que não permite atribuir a uma mulher um papel eclesiástico atestado em Paulo e nos autores posteriores. Uma maior aderência ao original teria permitido ao leitor perceber toda a problemática ligada à passagem e à sua interpretação.
Em outros lugares, o tradutor é obrigado a se render - e é a melhor escolha. No prólogo do Evangelho de João, é deixado o termo grego Logos, cuja tradução com Verbo ou Palavra (baseada mais uma vez em Jerônimo que usa Verbum) não transmite a riqueza semântica do original, que vale palavra, razão, vínculo, número, e contava com um imponente background filosófico, feito justamente em âmbito hebraico por Fílon de Alexandria, aproximadamente contemporâneo de Paulo.
Nuovo Testamento. Una lettura ebraica
Tradução e comentário de Marco Cassuto Morselli
e Gabriella Maestri
CASTELVECCHI - Páginas 496, € 25
Se a Bíblia da Einaudi é dirigida ao leitor culto que não é necessariamente crente, a obra de Marco Cassuto Morselli e Gabriella Maestri vai na direção oposta, que para a editora Castelvecchi reescrevem os Evangelhos e Atos dos Apóstolos no espírito do diálogo judaico-cristão. A intenção é rastrear no grego desses textos palavras e expressões que possam ser reconduzidas até o contexto de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, que usavam o aramaico e o hebraico. Termos como Deus, evangelho (literalmente "boas novas"), reino dos céus, Cristo ou batismo são sempre apresentados na tradução com Eloqim, besorah, tovah, malkhut, há, shamayim, Mashiah e tevilah.
O efeito causa um pouco de estranheza para quem vem de uma formação cristã, mas o trabalho contribui para fortalecer a consciência do pleno judaísmo de Jesus, acolhido pelo magistério mais recente eclesiástico. Não faltam alguns excessos. O prólogo de João é traduzido assim: "No início era o Davar, e o Davar estava com Eloqim e Eloqim era o Davar”. Davar ("Palavra") pode certamente corresponder ao Logos grego, mas na tradução desaparece o jogo de nuances segundo o qual o Davar / Logos era Deus (sem artigo) enquanto ele estava perto de haEloqim (que seria o hebraico com o artigo presente em grego). Em suma, pode ser que em um hipotético original pré-grego Davar e Eloquim coincidissem em unidade, mas o texto que efetivamente chegou até nós indica de alguma forma a distinção. Diante dos problemas postos pela tradução / reescrita dessa passagem em latim, Tertuliano às vezes opta por traduzir Logos não com Verbum, a palavra única, mas com Sermo, que representa "discurso", como que para lembrar que por meio da Bíblia Deus continua a falar conosco.
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O romance do homem intitula-se Bíblia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU