11 Dezembro 2021
A ribeirinha Maria Francineide Ferreira dos Santos teve a casa demolida por um trator, em uma das ilhas do rio Xingu. Por ordem da concessionária Norte Energia, a casa dela e as de centenas de moradores precisavam abrir espaço para a construção da hidrelétrica Belo Monte, a maior obra de infraestrutura da Amazônia, em Altamira (PA). O lugar onde morava e quase tudo o que tinha foi submerso pelo reservatório da usina, em 2015. Seis anos depois, uma alegria incontida emergiu dessa paraense de 52 anos. Nos últimos domingos, ela estava no meio de jovens estudantes que foram a uma escola Sesi para prestar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Seu sonho é cursar uma faculdade de Direito. “Direito sobre a terra, direito sobre a cultura, direitos das comunidades. Eu ainda vou me formar”, avisa, uma semana depois de concluir o terceiro ano.
A reportagem é de Cristina Ávila, publicada por Amazônia Real, 08-12-2021.
Francineide faz parte da coordenação do Conselho Ribeirinho, que completou 5 anos de existência em 2 de dezembro. O conselho foi criado em 2016 como resistência coletiva das famílias expulsas de comunidades tradicionais das beiras do Xingu, em uma das regiões mais ricas em diversidade cultural e ecológica do mundo. “Vivemos muita barbárie e perversidade”, enfatiza a ribeirinha. Liderança forjada nos longos embates e negociações com a Norte Energia, ela afirma que a convivência com apoiadores nessa luta ajudou a acender seu desejo de estudar.
Entre os apoiadores do Conselho Ribeirinho estão a jornalista e escritora Eliane Brum e os psicólogos Christian Dunker e Illana Katz, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), que criaram a Clínica do Cuidado, para escuta e tratamento à saúde mental da população ribeirinha afetada pela hidrelétrica Belo Monte. Entre 2016 e 2017, com a participação de 16 psicólogos e um psiquiatra, foram atendidos 70 casos em um total de 171 sessões realizadas.
Na semana passada, a equipe médica da Clínica do Cuidado, formada por profissionais de todas as regiões do país lançou uma nota técnica contrária à renovação da Licença de Operação (LO) nº 1317/2015 de Belo Monte, que expirou em 24 de novembro e é condicionada a ações que constam de planos de “atendimento à população atingida” e de “saúde pública”.
“Transformados da noite para o dia em pobres urbanos e periféricos, confinados em Reassentamentos Urbanos Coletivos ou casas distantes do rio, também nas periferias da cidade, as pessoas estavam em intenso sofrimento”, diagnosticou a Clínica do Cuidado, explicando por que se opõe à renovação da LO. A partir de dados da rede de saúde pública de Altamira, os psicólogos e psiquiatras notaram um aumento significativo do uso de álcool e drogas como consequência da instalação de Belo Monte. Além de transtornos psiquiátricos, também foi constatado crescimento nas estatísticas de doenças como diabetes, cardiopatias e hipertensão, entre as mais recorrentes.
A nota técnica foi protocolada online em plataformas do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União. Foi recomendada “a urgente instalação do Território Ribeirinho” que tem base em estudos feitos pelos próprios atingidos para o reassentamento das famílias em áreas em que possam reconstruir seu modo tradicional de vida.
A psicóloga Luciana Guarreschi conta que dos 70 pacientes que foram tratados pela Clínica do Cuidado, “absolutamente todos relataram casos de expulsão” de suas casas. Não usaram outro termo para descrever o motivo de depressão, estados diversos de tristeza, dificuldade de levantar da cama por desânimo. Ela observa que eles deixaram de plantar ou coletar alimentos nas ilhas do Xingu e tiveram de adotar uma vida totalmente diferente na zona urbana. Ali, passaram a precisar de dinheiro todos os dias, não somente para comida, mas para ter água e energia elétrica.
“Se por si só essas condições seriam difíceis, ainda vêm acrescidas de um sentimento de injustiça. Eles não puderam escolher. Tiveram casas queimadas. Alguns saíram e quando voltaram não tinham mais onde morar. A saúde mental depende das condições de vida. Eles perderam laços sociais, vizinhos, amigos, quem os ajudava. Sua estrutura comunitária foi propositalmente desmontada. Onde podem recorrer num luto, quem os consola nas tristezas? Perderam as condições de vida em que sobreviviam próximos ao rio, e nem mesmo os laços familiares puderam ser preservados”, enfatiza a psicóloga.
A nota técnica do Instituto de Psicologia da USP afirma que seu objetivo é colaborar com a decisão do Ibama, que é responsável pelo licenciamento que precisa ser renovado pela Norte Energia. “Nós, da Clínica do Cuidado, queremos deixar documentados pontos importantes no que diz respeito à saúde mental da população ribeirinha, pontos que devem ser levados em consideração para a tomada dessa importante decisão, uma vez que é esta uma das populações diretamente atingidas pela instalação e funcionamento da UHE (usina hidrelétrica) Belo Monte”, salienta o documento.
Em resposta à Amazônia Real, o Ibama diz ter conhecimento sobre a nota técnica da USP e que será avaliada “juntamente com os demais documentos do processo de renovação da licença”, cuja análise está prevista para conclusão no primeiro trimestre de 2022. “Em casos de descumprimentos de condicionantes, a equipe técnica encaminha parecer ao setor de fiscalização para apuração da infração ambiental e aplicação das sanções previstas na legislação”.
A licença ambiental da UHE está em vigor até o final da avaliação de sua renovação, informa o Ibama, uma vez que o pedido foi feito pela Norte Energia dentro do prazo mínimo de 120 dias da expiração da validade, conforme previsto pela Lei Complementar 140/2011.
O órgão ambiental federal afirma que acompanha o reassentamento da população ribeirinha desde 2015 e que tem exigido que o empreendedor da hidrelétrica de Belo Monte cumpra prazos para concluir processos de realocação das famílias.
Luciana Guarreschi considera que os ribeirinhos, ao passarem a morar distante de amigos e familiares, ficaram fragilizados até para reivindicar direitos. Sua opinião é reflexo da própria nota técnica de sua categoria, que explicita: “Como é sabido e notório, a experiência comunitária dessa população foi propositalmente desarmada pelos responsáveis pela obra, uma vez que as negociações com a população ribeirinha foram conduzidas individualmente, em procedimento decidido pela concessionária Norte Energia, sem a presença, em um primeiro tempo, da Defensoria Pública da União.
A psicóloga explica que a equipe médica da Clínica do Cuidado, além do reconhecimento de campo, fez contato com lideranças sociais e profissionais de equipamentos de saúde pública, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Houve grande aumento de afecções, como dores difusas (em diferentes partes do corpo), pressão alta e queixas em que o médico não encontra causas orgânicas. “Eram então encaminhados ao Caps com diagnóstico de confusão mental ou depressão. Na realidade não foram expulsos de casa, mas de suas próprias vidas”, diz.
A jornalista Eliane Brum e o fotógrafo Lilo Clareto (in memoriam) registraram em 2017 para o documentário “Eu+ 1: Uma jornada de saúde mental na Amazônia”, o momento em que a equipe da Clínica do Cuidado conversou com Francineide, para que indicasse pessoas que precisassem atendimento. “No meu modo de pensar, vocês são assim pessoas que nos ajudam a achar uma porta que, pra muitos, não tem mais saída. Tem casos de pessoas que vêm dessa barragem aí que eles mesmos se isolam a um ponto que nada mais lhes importa. Nem os filhos, nem o alimento, nem o trabalho. Você morre, entendeu?”, disse a ribeirinha. A jornalista relata em um de seus livros as palavras da futura advogada:
“É uma dor terrível. Eu saí de uma porta que me colocaram. Fizeram um caixotezinho, me colocaram dentro e fizeram uma brecha bem pequenininha. Mas, antes da brecha, colocaram um papel escuro. Por mais que eu procurasse, eu não achava a brecha. E nós entramos em certos lugares que precisa desconjuntar braço, pescoço, perna, quadril pra poder sair do outro lado só o resto, e ainda tem o trabalho de remontar, porque muitas vezes os ossos não ficam no lugar. Então, no meu modo de ver, vocês são essas pessoas que nos ajudam a achar a brecha, a porta, no lugar que não existe”, descreveu a ribeirinha Francineide.
Os relatos de sofrimento dos ribeirinhos desalojados pela hidrelétrica também foram descritos em trabalhos acadêmicos, como o da antropóloga Ana Alves de Francesco. Ela lembra que a empresa foi multada pelo Ibama pela mortandade de 16 toneladas de peixes provocada pelo enchimento do reservatório entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016. As multas chegaram a 35,3 milhões de reais em abril. “Os pescadores lamentaram não somente pelos peixes mortos, mas porque deixariam de se reproduzir, tornando mais grave e preocupante a situação futura”, lembra.
Neste ano, Ana de Francesco defendeu uma tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas em que descreve que um dia foi “procurada por dona Raimunda; a balsa do desmancha chegara antes do previsto”. A expressão se referia à balsa que levava equipamentos e homens para destruírem as casas dos ribeirinhos.
“Quando chegou à ilha, viu que tinham colocado fogo na casa dela, a brasa ainda estava quente. Dona Raimunda estava com um amigo, seu Dedé. Quando viram a casa queimada, choraram. Dedé chorou pela casa de Raimunda e pela sua, pois ainda não tinha tido tempo para chorar”, descreve a pesquisadora. Ana de Francesco afirma que o marido de Raimunda precisou guardar a canoa na sala da nova casa. “Às vezes, Raimunda o via ali dentro, sentado, remando no piso de cimento queimado, olhando para o vazio. Ela me disse que não morreu porque vem de um povo acostumado ao sofrimento. Não ficou deprimida nem louca como muitos ficaram.”
Ana de Francesco foi morar em Altamira em 2014 e hoje mora no Rio de Janeiro. Além de pesquisadora, exerceu várias funções acompanhando o assunto, como perita do Ministério Público Federal, colaboradora do Instituto Socioambiental (ISA), assessora técnica dos ribeirinhos e mais recentemente pesquisadora e colaboradora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas.
Quando chegou no Pará, a cidade de Altamira estava em polvorosa. Estimativas indicam que entre 20 mil e 35 mil pessoas foram contratadas para trabalhar na Norte Energia entre meados e o final de 2013, inclusive inflacionando preços, como aluguéis e hotéis que chegaram a valores semelhantes a capitais como Brasília. Na tese e livro que denominou “Terror e resistência no Xingu”, cita que entre 2000 e 2015 a taxa de homicídios aumentou 1.110%, principalmente nos novos bairros que atendiam demandas da Norte Energia. Em 2019, houve um massacre no presídio local, com 16 homens esquartejados e 41 carbonizados. Facções criminosas também migraram para Altamira, com o tráfico de drogas.
Mas apesar das dores, na opinião de Ana De Francesco a população ribeirinha atingida por Belo Monte transformou essa amargurada experiência em uma conquista inédita que pode servir como precedente para a garantia de direitos em outros casos de empreendimentos que causem impactos em populações tradicionais. Ela relata que durante anos o Estado e a empresa os desconsideraram, mas com as pressões provocadas pela organização coletiva, a Norte Energia começou a negociar o reassentamento em territórios que respeitem o seu modo de vida.
A antropóloga explica que cerca de 300 famílias ribeirinhas foram expulsas de suas casas nas ilhas do Xingu, de um universo de 40 mil pessoas deslocadas pela hidrelétrica dos municípios de Altamira e Vitória do Xingu. “Os beiradeiros, nos documentos da empresa, foram por muito tempo chamados de ‘ocupantes de ilhas’. Havia a clara intenção de não os reconhecer enquanto sujeitos coletivos, negando assim seu direito ao território, o acesso ao rio Xingu e a continuidade de seu modo de vida”. As expulsões das ilhas ocorreram entre 2014 e 2015; apenas no fim de 2018 os termos “ribeirinho” e “território ribeirinho” passaram a fazer parte do vocabulário da Norte Energia, conta Ana de Francesco.
Josefa de Oliveira, que também faz parte do Conselho Ribeirinho, conta que há 13 famílias ribeirinhas já assentadas em um dos três territórios que estão sendo negociados com a Norte Energia, de um total de 212 que estão à espera. Essas áreas são localizadas a jusante e montante de Altamira, em média a 10 quilômetros da cidade, na parte que eles chamam de “terra firme”, nas margens do Xingu em frente às ilhas que submergiram onde antes moravam. As terras para assentamento precisam ser compradas pela Norte Energia de parte de fazendas. Ainda não está definido o modelo de titulação das terras que serão ocupadas pelas populações tradicionais.
Mas essa fase somente foi possível depois de um longo processo de organização dos ribeirinhos e com apoio de profissionais de órgãos públicos como o Ibama, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e organizações não-governamentais como Xingu Vivo. Num dos primeiros momentos, em 2014, a procuradora Thais Santi reuniu moradores das ilhas para uma rodada de conversa, em que cada um se identificava e relatava sua negociação com a Norte Energia.
“Essa reunião inaugurou uma estratégia política que se consolidaria nos meses e anos seguintes. Foi o primeiro de muitos encontros entre os ribeirinhos que se seguiram e que perduram”, conta a antropóloga que estava no encontro.
Já em 2015, o grupo de trabalho formado pelos ribeirinhos apresentou ao Ibama o primeiro mapa das áreas de interesse para reocupação no modelo similar ao antigo território. Em 2018, os ribeirinhos viajaram 40 horas de ônibus para chegar a um seminário em Brasília onde acumulariam mais uma conquista, com acordo para que as negociações para reassentamento deixassem de ser individuais. No dia seguinte, um novo mapa seria entregue ao Ibama e funcionários do órgão saudaram o Conselho Ribeirinho. “Era a primeira vez que um plano de reparação era colocado pelos atingidos, e não pelos estudos técnicos e planos oficiais de mitigação de impactos”, relembra Ana de Francesco.
“Temos uma batalha muito grande pelo nosso território. Cremos que em 2022 esse processo termine”, prevê Francineide Ferreira.
A Norte Energia não encaminhou plano ou esboço de reassentamento dos ribeirinhos e tampouco cronograma de atividades, conforme solicitou a reportagem da Amazônia Real. Preferiu “contestar veementemente” as afirmações da nota técnica do Instituto de Psicologia da USP, que alega desconhecer, e disse que nos assentamentos de ribeirinhos teve “como premissa a manutenção dos laços comunitários e familiares de forma similar ao seu modo de vida original”. Também alegou que custeia verbas para os que aguardam assentamento, o que é considerado pelos povos tradicionais aviltante comparado à fartura oferecida pelas antigas roças, pomares, rio e matas.
Sem detalhes, afirmou ainda que “proposta conceitual para recomposição do modo tradicional” da vida deles originou o “Projeto Ribeirinho”. Acrescentou que mantém programa de atendimento à população atingida em situação de vulnerabilidade por meio de apoio financeiro a municípios de Altamira e Vitória do Xingu para escuta qualificada psicológica a pacientes indicados por equipes que atuam na rede do Cras, com 3.695 famílias encaminhadas desde 2012, para as quais foram feitas 15,5 mil visitas e 4,4 mil encaminhamentos.
“Sobre a afirmação de ‘destruição de casas’, a Etapa de Demolição, Desinfecção e Desinfestação (DDD) foi prevista no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Projeto Básico Ambiental (PBA) para promover o reordenamento territorial necessário para implantação da UHE Belo Monte. Essa etapa do processo de realocação foi realizada somente após concluída a negociação da benfeitoria junto ao grupo familiar e após a retirada de pertences de interesse da família”, afirma.
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Belo Monte abala a saúde mental de ribeirinhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU