03 Dezembro 2021
"Por que razão se perdeu agora a sensatez política que nos acompanhou nas primeiras fases da pandemia?", questiona Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, ex-diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Carta Maior, 30-11-2021.
Uma correspondente perguntava-me recentemente se eu, enquanto sociólogo, tinha uma explicação para a insensatez dos políticos. A pergunta intrigou-me, uma vez que nada distingue os políticos que os faça, em princípio, mais ou menos sensatos que os cidadãos comuns. Aliás, é hoje reconhecido internacionalmente que a nossa classe política foi bastante sensata durante a pandemia, inspirando os portugueses a um modelo de comportamento que é considerado exemplar e com o SNS a responder às exigências mais eficazmente que muitos países mais ricos que Portugal. A pergunta referia-se, obviamente, à crise política desencadeada pela reprovação do orçamento. As razões que os políticos envolvidos invocaram para a justificar não convenceram a esmagadora maioria dos cidadãos e o seu comportamento pareceu insensato.
É que a cidadania estava sobretudo preocupada com as incertezas que a pandemia tinha inscrito nas suas vidas. Sendo elas de sobra, era insensato adicionar outras e, para mais, de maneira que parecia artificial. Os cidadãos e as cidadãs tinham a sensação de estar a entrar num longo período de pandemia intermitente com alternância entre momentos de crise aguda e de ameaça crônica. Desde então, as condições da pandemia vieram dar mais razões a esse sentimento. É de prever que será esse sentimento que comandará o seu comportamento nas próximas eleições. Com exceção de franjas extremistas, os portugueses quererão garantir a estabilidade política porque já lhes basta a instabilidade pessoal, interpessoal e social que temem vir a caracterizar a sua vida nos próximos tempos.
Por que razão se perdeu agora a sensatez política que nos acompanhou nas primeiras fases da pandemia? Em 1935, o antropólogo Gregory Bateson cunhou o termo cismogênese para designar um padrão de comportamento que consiste na tendência para indivíduos ou grupos se definirem por contraposição em relação a outros e para aumentarem as suas diferenças em resultado do diálogo, da interação e da confrontação. Diferenças que, antes da interação, pareceriam menores ou atenuáveis, tornam-se maiores e mais intransigentes à medida que decorre a interação. A investigação fora realizada na Papua-Nova Guiné. Tem isso algo a ver conosco? As discussões sobre o orçamento fizeram-me recordar Bateson.
Quando as conversações entre o PS, o BE e o PCP se iniciaram havia a sensação generalizada de que as diferenças entre os dois lados (centro-esquerda e esquerda) eram transponíveis. No entanto, à medida que o diálogo avançou as diferenças foram-se polarizando, a tal ponto que se tornaram inconciliáveis. Deu mesmo a sensação de que o que era conciliável orçamentalmente não o era politicamente. Por exemplo, à medida que o diálogo/confrontação avançou, foi-se tornando claro que as diferenças que antes pareciam ser contradições no interior das mesmas classes ou estratos sociais (intraclassistas) foram-se metamorfoseando em contradições entre classes ou estratos sociais opostos com interesses potencialmente inconciliáveis (interclassistas).
O discurso contemporizador e ameno das diferenças intraclassistas foi dando lugar ao discurso polarizador e cáustico das diferenças interclassistas. O desencanto da cidadania afeta a esta “família”(?) política e a consequente sensação de insensatez decorreu de uma fatal descoincidência entre partidos e eleitores. Enquanto os partidos revelavam contradições interclassistas, os cidadãos e as cidadãs apenas viam contradições intraclassistas. Enquanto os políticos viam as contradições a partir das suas ideologias e cálculos políticos, os cidadãos e as cidadãs viam-nas a partir da pandemia e das incertezas abissais que ela lhes causava. A insensatez e a descoincidência assumiram particular intensidade naqueles sectores que temiam que as eleições antecipadas pudessem vir a fortalecer a extrema-direita; se isso viesse a ocorrer, o discurso (e as ações) do ódio aumentariam e os seus alvos privilegiados seriam as bandeiras e os políticos de esquerda no seu conjunto.
Mas a insensatez não foi um monopólio das forças de esquerda. As forças de direita não ficaram atrás. Num momento em que era já previsível a reprovação do orçamento e que as esquerdas lhes davam a oportunidade para se fortalecerem nas próximas eleições, envolveram-se em desgastantes disputas internas que só podem ter efeitos contraproducentes. Também aqui se verificou a cismogênese entre candidatos à liderança: diferenças de personalidade e “entre amigos” transformaram-se gradualmente em diferenças políticas do tipo entre água e azeite. E também ocorreu a descoincidência entre as lideranças políticas e os seus eleitores. Enquanto aquelas faziam cálculos políticos (alguns bem medíocres), estes, tal como os eleitores de esquerda, temiam sobretudo as incertezas da pandemia e a instabilidade política que as poderia agravar. E se as recentes eleições diretas no PSD revelam algo importante é precisamente o desejo de estabilidade dos seus militantes de base, um desejo não partilhado por muitos dos seus dirigentes. E se houvesse diretas no PS, no BE ou no PCP?
A cismogênese não é uma fatalidade, nem o que é válido para os rapazes e raparigas da Papua-Nova Guiné é necessariamente válido para os políticos portugueses. Mas é como se fosse, pelo menos na opinião dos comentadores políticos. É quase unânime a ideia de que a geringonça acabou, dadas as posições inconciliáveis. Entre os comentadores não parece existir a cismogênese. Pelo contrário, se alguma dinâmica existe entre eles, seria adequado designá-la por conformogênese: por mais que divirjam, as suas opiniões acabam sempre por concluir o mesmo. Mas, pelo contrário, parece igualmente existir a descoincidência, neste caso, entre as suas elucubrações e os que as lêem ou ouvem. Se em tempos de pandemia os cidadãos estão sobretudo angustiados com as incertezas do futuro próximo, e se todos aspiram a alguma estabilidade, pelo menos até que haja condições para tolerar ou mesmo celebrar instabilidades menos existenciais, está longe da verdade que todos pensem que algo como a geringonça não é possível ou desejável. As recentes sondagens mostram, aliás, o contrário. Os obstáculos são bem menores do que se imagina. Basta comparar com a situação no país vizinho onde a solução política em vigor (o acordo entre o PSOE e Unidas-Podemos) foi inspirada na gerigonça portuguesa.
Trata-se, no caso espanhol, de duas formações políticas com identidades mais polarizadas do que as que dividem as forças políticas correspondentes em Portugal. Basta recordar que o PSOE defende a monarquia, enquanto o UP é republicano. Mas porque a questão do regime não faz parte do acordo limitado em que acordaram, a coligação perdura e acaba de conseguir o que em Portugal até agora não foi conseguido: o acordo para anular as leis laborais que foram impostas pela troika. Será porque a Espanha é a quarta economia da UE e a dívida externa, apesar de grande, é menor que a portuguesa? Será porque em Espanha os dois partidos partilham a governação e não apenas as decisões parlamentares? Será porque na Espanha o PSOE aprendeu de vez que articulações com a direita podem ser mais fáceis do que com a esquerda, mas dão sempre mau resultado? Isto tudo leva a crer que não há obstáculos intransponíveis se a insensatez for superável.
Se houver um compromisso escrito pré-eleitoral entre forças políticas afins e com peso eleitoral significativo, os cidadãos saberão que, votando numa delas, estará garantida a estabilidade política, se o conjunto tiver a maioria dos votos. Poderão assim votar com tranquilidade segundo as suas convicções políticas. Não havendo tal acordo, é previsível que a preocupação com a estabilidade política incentive o voto útil que favorece sempre os partidos maiores. Só assim não sucederá se os diferentes partidos envolvidos derem provas convincentes e assumirem compromissos reveladores de que o entendimento pós-eleitoral prevalecerá.
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A cismogênese e a sensatez política. Artigo de Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU