26 Agosto 2021
"A história da educação no Brasil caminha de mãos dadas com a do racismo e da exclusão socioeconômica. Defender que a universidade seja para poucos remete a um projeto de país que se constrói a partir da marginalização", escreve Ynaê Lopes dos Santos, Mestre e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professora de História das Américas na Universidade Federal Fluminense (UFF), publicado por Deutsche Welle, 26-8-2021
Nesta semana, em uma das raras vezes em que saí de casa, fiquei parada num engarrafamento em um dos pontos turísticos do Rio de Janeiro. O trânsito em meio a um cartão postal. E ali, naquela mistura de morros, lagoas e carros, tinha um jovem, entre 15 e 18 anos, vestindo uma roupa de palhaço para fazer seus malabares no sinal fechado. Um rapaz negro que, em tese, deveria estar pensando no seu futuro profissional, trabalha quando o sinal fecha. Uma imagem muito representativa de um Brasil no qual, segundo as palavras do atual Ministro da Educação, "a universidade deveria ser para poucos" – e já é.
Mesmo se vivêssemos em um país que investe e reconhece outros locais de produção do saber para além das universidades, dificilmente essa frase poderia ter alguma positividade. Sou particularmente a favor de que brasileiros e brasileiras possam realizar suas formações profissionais em universidades, mas também em cursos técnicos, em formações artísticas e nos chamados cursos profissionalizantes. Não acredito que uma sociedade deva ter apenas bacharéis. E mais, não acredito que apenas bacharéis devam ser bem remunerados e reconhecidos socialmente.
Todavia, a história da educação no Brasil caminha de mãos dadas com a história do nosso racismo e exclusão socioeconômica. Ainda no período imperial, a educação, de qualquer nível, estava vetada para os escravizados. Sim, havia uma lei que proibia que escravizados aprendessem a ler e escrever. E nessa sociedade, em que os bacharéis muitas vezes também eram proprietários de escravos, as iniciativas públicas para o letramento da população brasileira pobre (negra, mestiça e indígena) eram ínfimas.
Quem imagina que o quadro tenha mudado com a Proclamação da República, se enganou redondamente. Nossa primeira Constituição republicana (1891), além de não reconhecer a educação como um direito civil, fez da alfabetização a condição para o exercício do direito político: só eram considerados cidadãos eleitores os homens que soubessem ler e escrever. Tal medida excluiu mais de 80% da população brasileira do exercício do voto. Um projeto de Brasil que defendia que o sufrágio também fosse para poucos.
Como muitos de nós sabemos, a história não parou por aí. Porque esse "povo analfabeto" se organizou das mais diferentes formas para ter acesso à educação formal. A história do Brasil República é também a história da luta pelo direito universal à educação.
Professores e professoras que transformaram suas próprias casas em escolas que recebiam crianças e jovens da vizinhança; movimentos sociais que fizeram alfabetizações em massa; sociedade civil exigindo que educação fosse um direito de todos – homens e mulheres. Uma luta que, muitas vezes, tinha o Estado nacional brasileiro como principal opositor. Foi apenas na sua sétima e mais recente Constituição (1988) que o Brasil reconheceu o direito à educação para os cidadãos e cidadãs brasileiros, ao mesmo tempo que permitiu que até mesmo os analfabetos pudessem votar.
Sendo assim, a defesa de que "a universidade deveria ser para poucos" tem uma longa trajetória por essas bandas. E ela fala sobre uma percepção de mundo e sobre um projeto de Brasil que se constrói a partir da marginalização de uma parcela significativa da população brasileira. Um Brasil no qual poucos devem cursar a universidade, ao mesmo tempo que as escolas são cada vez mais esvaziadas de sentido, seja na precarização assustadora do trabalho docente, seja na formulação de um projeto de lei que pretende regularizar – e consequentemente fomentar – a educação domiciliar, destituindo a escola pública de uma das suas funções principais: o convívio respeitoso dos futuros cidadãos brasileiros.
É impossível não relacionar a percepção classista do ensino superior com a recente transformação que esse mesmo ensino sofreu nas últimas duas décadas. A partir de pressões de movimentos sociais, governos brasileiros mais comprometidos com uma perspectiva democrática da educação, implementaram o sistema de cotas. Cotas raciais e cotas sociais.
A primeira foi e ainda é tema de inúmeras polêmicas de um Brasil que só reconhece o racismo quando seus privilégios são colocados à prova. Temos aqui o famoso (e irreal) "racismo reverso". Uma anomalia da estrutura racial brasileira, que permite pensar que a população negra pode ser, ela própria, a protagonista da discriminação racial, e não a vítima desta discriminação. Uma contradição que apenas revela a perversidade do nosso racismo cotidiano.
Todavia, o fato é que a entrada de jovens negros, indígenas e pobres de maneira sistemática nas universidades nos últimos 15 anos resultou numa pequena, mas poderosa revolução. Nesse mundo que só reconhece o saber dos bacharéis, temos um bacharelado cada vez menos branco.
Uma constatação que não se resume apenas à coloração ou à pertença multiétnica das salas de aula das universidades, mas também à própria produção do conhecimento, à medida que pessoas com outras vivências e outras percepções de mundo estão formulando novas perguntas e, consequentemente disputando outras formas de pensar "que país é esse".
Há ainda quem aposte no sinal fechado para a maior parte dos jovens brasileiros, que deveriam se contentar com os malabarismos em meio ao trânsito. Mas também há uma mudança iniciada, que não podemos deixar parar. Um Brasil fruto do maior acesso à educação em todos os níveis. Ainda temos muito o que fazer. Mas não nos esqueçamos: a universidade (sobretudo a pública e gratuita) deve ser um espaço para todos que queiram lá estar.
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