Teólogos latinos se posicionam nas “trincheiras ministeriais”

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20 Mai 2021

No sábado passado, eu pude participar do segundo dia do colóquio virtual da Academia de Teólogos Hispânicos Católicos dos Estados Unidos (ACHTUS, na sigla em inglês). Esses encontros virtuais nunca são tão divertidos quanto visitar velhos amigos pessoalmente, mas, mesmo assim, estou feliz por ter participado, porque o foco do encontro foi refrescante e seminal.

A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 19-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O padre jesuíta Allan Figueroa Deck, da Loyola Marymount University, que eu conheço desde os seus tempos na Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, quando liderou a Comissão de Diversidade Cultural, iniciou com uma conferência que deu o tom do dia. “É bom que relembremos hoje as nossas origens, especialmente diante do trauma individual e coletivo da pandemia”, disse ele aos seus colegas.

“Não podemos permitir que esta experiência nos afaste da nossa determinação original de acompanhar o nosso povo, nos faça voltar para dentro ou aquiescer com a introversão teológica e eclesial. Ao invés disso, devemos ser teólogos callejeros [‘rueiros’] que ‘têm o cheiro das ovelhas’, nas palavras de Francisco. Devemos sair para a rua e hacer lío, ‘fazer barulho’, como o papa exortou os jovens no Rio de Janeiro.”

Deck lembrou que o grupo foi formado a partir da inspiração do Vaticano II e, especificamente, da vibrante visão teológica e eclesial que surgiu na América Latina após o Concílio e encontrou expressão nos encontros do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Ele lembrou, também, as experiências dos Encuentros nacionais nos Estados Unidos.

Observando o declínio na identificação religiosa nos Estados Unidos, que agora se espalhou também entre os latinos, Deck citou alguns dos motivos pelos quais esse declínio deve ser visto de forma diferente no contexto da comunidade latina:

“Devemos lembrar que a identificação da maioria dos católicos latino-americanos com a Igreja tradicionalmente está dentro do marco da religiosidade popular, e não da versão tridentina altamente padronizada euro-americana do catolicismo. O catolicismo popular latino enfatiza a afiliação à comunidade de fé por meio do batismo e da vivência da fé domesticamente, mais do que na estrutura institucional formal da paróquia ou da diocese. Também sabemos que esse catolicismo popular informalmente liderado por mulheres – nossas mamás e abuelitas – contrasta fortemente com o catolicismo de classe média, doutrinal e moralista dos Estados Unidos. O catolicismo popular latino floresceu paralelamente e não em oposição à religião oficial, mas nunca permitiu que fosse engolido por ela, nem totalmente definido por ela.”

Essas realidades tornaram a Igreja latina indiscutivelmente mais apta a enfrentar os desafios que a Igreja enfrenta enquanto se reconstrói do pesadelo pandêmico que todos nós vivemos.

Atributos da liderança eclesial latina

Deck delineou as direções que as lideranças teológicas e pastorais latinas devem tomar ao tentarem enfrentar a tarefa de reconstruir um futuro pós-pandêmico, que seja coerente com o apelo do Papa Francisco por uma Igreja que seja “sempre em saída”.

Ele listou sete atributos da liderança eclesial latina, dos quais eu gostaria de chamar a atenção para três: a conversão pastoral, a formação de líderes que não temam o novo; a liderança com um toque hispânico, “enraizada na cultura popular e não apenas no ethos ou subcultura eclesiástica, menos moralista, exclusivista e doutrinal, e mais performativa”; e a liderança pela justiça, reconciliação e paz, não se apoiando em ideologias dominantes de esquerda ou de direita, mas seguindo “a opção pelos pobres do Evangelho, as perspectivas patrísticas e o ensino social católico”.

Na sessão de discussão de que eu participei, intitulada “O teólogo católico latino nas trincheiras ministeriais”, Dora Tobar, diretora do Escritório de Vida Familiar e Ministério Hispânico da Diocese de Lafayette, Indiana, juntou-se à Ir. Ruth Bolarte, das Irmãs Servas do Imaculado Coração de Maria, coordenadora das iniciativas em espanhol da Renew International, para discutir o que é ser teólogo na pastoral, e não na academia.

Tobar observou as muitas formas pelas quais a comunidade latina foi especialmente afetada pela pandemia, desde as taxas históricas de acesso inadequado aos cuidados de saúde até a exclusão de migrantes sem documentos dos benefícios estendidos a outros.

“Recebemos e passamos a vida única e exclusivamente por meio de conexões”, disse Tobar. “Por outro lado, a morte é provocada e permitida pela desconexão, isolamento, rejeição e toda espécie de marginalização. Em uma palavra, pelo pecado. Enquanto o pecado nos divide, o plano de salvação de Deus intencionalmente reúne a todos em Cristo, por meio do Seu Espírito, na poderosa rede do corpo de Cristo, em que a morte é derrotada quando a dor ou a necessidade de um se torna a dor de todos.”

Então, ela explicou as várias maneiras pelas quais ela e seus colegas no ministério pastoral criaram as conexões de solidariedade que permitiram que a vida se sustentasse durante a pandemia, desde uma rede de WhatsApp para identificar e atender às necessidades materiais e espirituais, até as aulas particulares online oferecidas por jovens adultos.

Bolarte também catalogou os desafios pandêmicos enfrentados pelas paróquias em bairros multiétnicos e multiculturais, e o modo totalmente tradicional como essas paróquias incorporaram novas lideranças entre os migrantes.

“A ‘Igreja doméstica’ é o lugar em que as comunidades étnicas começam a vislumbrar uma configuração que apoie o seu esforço de viver a sua missão de católicos batizados”, explicou. “À medida que seu número aumenta e há a necessidade de uma ‘casa’ maior, as lideranças iniciam o diálogo com as paróquias locais e/ou com o bispo diocesano. Assim como as primeiras ondas de imigrantes nos Estados Unidos, é a experiência de estar nas margens da sociedade e da Igreja que anima essas iniciativas.”

Ela usou o conceito de “Betwixt and Between”, do teólogo Peter Phan, para estruturar as lições teológicas que ela aprendeu com a experiência da pandemia.

Para além das fronteiras universitárias

A apresentação final foi o discurso presidencial do novo presidente da ACHTUS, Hosffman Ospino, do Boston College. Os leitores regulares sabem da minha profunda admiração pelo trabalho do professor Ospino, que eu tenho citado ao longo dos anos. Portanto, eu não fiquei totalmente surpreso com o fato de ele ter sido um sucesso no discurso aos seus colegas.

Ospino falou sobre a circunstância única do encontro da associação: em vez da convivialidade que normalmente marca essas reuniões – incluindo um discurso presidencial feito no contexto de um banquete –, este era um encontro virtual. Mas nessa esquisitice Ospino encontrou a confirmação de uma intuição, de uma lição teológica. Ele disse:

“Um terço dos participantes do colóquio deste ano são lideranças pastorais católicas hispânicas que trabalham em organizações ministeriais, dioceses e paróquias. Muitas delas têm exatamente os mesmos graus acadêmicos que nós, engajados na reflexão teológica crítica assim como nós, embora tenham escolhido fazer a sua teologia em ambientes que não se limitam exclusivamente às fronteiras das universidades e dos seminários. Eu acho que, neste novo momento histórico, não podemos fazer avançar um discurso teológico sólido e relevante que se diga católico hispânico/latino sem nos engajarmos seriamente em conversas com esses agentes de pastoral e as comunidades com as quais eles caminham todos os dias.”

Em uma das discussões em pequenos grupos naquela tarde, um teólogo expressou o seu entusiasmo pelo fato de que, ao contrário de tantos debates acadêmicos, este tinha se baseado na realidade. Não havia nenhuma torre de marfim.

Essa preocupação em reorientar a teologia acadêmica, envolvendo aqueles que estão engajados no ministério, não é apenas uma preocupação prática, mas também teórica. Uma das principais convicções da teologia hispânica, disse Ospino, é o seu compromisso de ser definida pela “nossa relação com as comunidades de onde viemos, onde trabalhamos e com quem/para quem teologizamos”.

Isso é complicado, no entanto, pela própria diversidade da comunidade católica latina, cheia de pessoas cujas experiências, esperanças, medos e fé são diversos. Ele fez uma observação severa: “Muitas definições da experiência religiosa hispânica/latina, mais particularmente a experiência católica hispânica/latina, parecem estar presas em algum lugar da segunda metade do século XX”.

Ospino pediu que seus colegas comecem a repensar alguns dos seus pressupostos. Em uma das partes mais desafiadoras do seu discurso, Ospino disse:

“Categorias teológicas e ministeriais que valorizamos na nossa reflexão teológica e ministerial, como no caso do catolicismo popular, a mística, o cotidiano e a teologia de conjunto (e a sua versão ministerial, a pastoral de conjunto), entre outras, muitas vezes parecem estranhas às novas gerações de católicos hispânicos/latinos na nossa nação, nascidos nos Estados Unidos e imigrantes. Em muitos círculos teológicos e ministeriais que eu tenho conseguido visitar, essas categorias às vezes funcionam como palavras-código entre estudiosos e lideranças hispânicos/latinos instruídas, mas dizem pouco para as populações mais amplas da nossa Igreja e da academia, hispânicas e não hispânicas.”

Ele apontou para áreas específicas nas quais mais pesquisas são necessárias, como a experiência dos não afiliados religiosamente, ou “nones”, e daqueles hispânicos de segunda e terceira gerações cujos laços com a observância religiosa católica estão atenuados. Ele observou que muitos jovens hispânicos têm múltiplas identidades, das quais a de “latino” é apenas uma, e a de “católico” é outra.

Ele alertou contra a presunção de uma “antropologia orgânica incontestável” que ignora as “fraturas, fragmentações, vícios, limitações e até pecados que existem dentro das nossas próprias comunidades e famílias”.

Três tarefas simples

Olhando para o futuro, Ospino esboçou “três tarefas simples” para os teólogos hispânicos, enquanto eles contribuem para a reestruturação da Igreja em um cenário pós-pandêmico. Além de um apelo a uma maior colaboração “ad intra”, dentro no universo dos teólogos católicos hispânicos, e também “ad extra”, com outros dentro e fora da academia, e um compromisso contínuo com as metodologias práticas e pastorais, Ospino pediu uma “consciência eclesial renovada”.

Ele mencionou que teve uma série de conversas com teólogos da América Latina, observando:

“Ao ouvi-los, é fascinante observar como esses teólogos católicos se sentem à vontade ao abordarem documentos da Igreja e outras fontes de reflexão do magistério católico. Isso é algo que eu não vejo regularmente nos Estados Unidos entre os teólogos católicos hispânicos/latinos. O 50º aniversário do Concílio Vaticano II não pareceu suscitar muita reflexão entre nós. Exceto por comentários e reflexões esporádicos de alguns dos nossos membros, a rica produção de exortações e encíclicas emergentes do pontificado do Papa Francisco, alguém que pode ser facilmente chamado de um papa latino, não encontrou muito eco – seja na forma de adoção ou de crítica – nos nossos círculos teológicos católicos hispânicos/latinos.”

Isso ecoa a preocupação expressada em um artigo recente na Commonweal pelo teólogo Massimo Faggioli. A necessidade de reconectar a teologia acadêmica com as comunidades e as estruturas da Igreja Católica é a tarefa mais urgente que os teólogos dos Estados Unidos enfrentam, e eu fiquei muito feliz em ouvir Ospino articulá-la com tanta força no seu discurso.

Devo acrescentar que houve muito mais na palestra de Ospino – e nas palestras dos outros oradores – que eu não consegui abordar. Os interessados podem consultar o site da ACHTUS, onde elas serão publicadas.

Eu não sou latino, mas gosto muito da cultura porto-riquenha desde que fui apresentado a ela quando criança e sempre me senti bem-vindo em outras culturas latinas que eu tive a bênção de encontrar. E já disse várias vezes que eu ficaria desesperado com o futuro da Igreja Católica nos Estados Unidos se não fosse pela presença hispânica. Sem eles, correríamos o risco de nos tornar um clube de classe média-alta para pessoas com uma ética sexual conservadora.

É muito promissor ver lideranças da comunidade teológica hispânica reconhecer algumas das armadilhas da cultura acadêmica, especialmente neste momento da história, e buscar uma espécie de refundamentação nas experiências vividas por aqueles teólogos que se dedicam ao ministério pastoral. Isso foi o oposto de um debate no Twitter com a sua postura e a sua vacuidade.

“Não há ateus nas trincheiras”, é o famoso ditado. Essa reunião da ACHTUS encorajou corretamente os seus membros a entrarem nas trincheiras pastorais da comunidade católica latina e a descobrirem como o Espírito Santo está agindo. Foi uma experiência maravilhosa.

 

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