03 Mai 2021
"Às vezes, aparentemente sem constrangimento, qualificamos esse tipo de discurso como "profético". Pois bem, o que dizemos, ecumenicamente, quando Igrejas irmãs abençoam, de fato ou às vezes até explicitamente, uma democratura?" escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, 05-2021. A tradução de Luisa Rabolini.
A Europa do século XXI vê, internamente, um certo número de regimes politicamente autoritários que, no entanto, são legitimados pelos procedimentos formais da democracia, especialmente com as eleições; falamos, portanto, de democraturas (síntese de democracia e ditadura) ou de “democracias iliberais”: a expressão é de Viktor Orbán, que é muito competente no assunto; na Hungria e na Polônia, onde se caminha na mesma direção, são membros da União Europeia. O seu bicho-papão geopolítico, o gigante russo, partilha com os seus antigos satélites uma aversão ao modelo ocidental de democracia e não se preocupa em disfarçar um continuidade autoritária com raízes distantes: o sátrapa é um ex-oficial da KGB e sua polícia política tem sede na Lubyanka e, ao mesmo tempo, o regime tem um inconfundível colorido neoczarista.
Obviamente, não se trata de uma questão de filosofia política, mas sim tristemente prática: as democracias limitam ou cancelam os espaços de oposição e recorrem, não raro, à violência psicológica e até física para perseguir seus objetivos liberticidas. Quem se esforça em pensar em termos europeus, não pode deixar de se perguntar sobre as consequências da presença, na própria União, de visões de exercício de poder tão distintas daquelas dos países fundadores. Mas a questão que nos interessa aqui diz respeito às Igrejas. O que elas dizem sobre a democratura?
Um adversário do Cristianismo (porque tal era, mesmo que em anos não distantes até os teólogos o citassem de bom grado) como Antonio Gramsci defendia que a atitude das Igrejas em relação aos regimes políticos depende quase que exclusivamente das vantagens ou não que os últimos concedem às primeiras: a concessão de privilégios de vários tipos vai garantir a amizade entusiástica das Igrejas, mesmo que o regime seja autoritário ou declaradamente ditatorial. Deve-se admitir que a "regra de Gramsci" parece se aplicar muito bem também às Igrejas nas democracias: na Polônia, a referência à tradição super católica desempenha um papel importante e, assim na Hungria, aquele dos chamados valores cristãos (o próprio Orbán é de extração reformada); na Rússia, além disso, a identificação da pátria com o cristianismo ortodoxo, de alguma forma sobrevivente mesmo nas décadas da grande glaciação comunista, agora é exibida como um dos pilares ideológicos da ideologia neoimperial.
Creio que aqui se coloca um problema ecumênico, a meu ver muito mais urgente do que aqueles a que as Igrejas estão acostumadas (quem manda na Igreja, quem é Igreja verdadeira e quem é apenas parcialmente, etc.).
A ecúmena cristã gosta de se vangloriar de sua unidade, especialmente onde ela é relativamente barata: estamos convencidos, por exemplo, de que somos todos irmãos (aliás, "fratelli tutti") e não importa se na grande maioria das Igrejas as irmãs são discriminadas; com grande disposição fazemos proclamações sobre a salvaguarda da criação, também porque as grandes decisões em matéria de meio ambiente não dependem de nós; somos decididamente "pela paz", mas não são raras as ocasiões de guerra em que cada Igreja se identifica com o próprio exército.
Às vezes, aparentemente sem constrangimento, qualificamos esse tipo de discurso como "profético". Pois bem, o que dizemos, ecumenicamente, quando Igrejas irmãs abençoam, de fato ou às vezes até explicitamente, uma democratura? Não muito, ao que parece. Alguns poderão observar que a democracia ocidental não faz parte da mensagem do Novo Testamento, mas é uma proposta política rica também em contradições e ambiguidades e, portanto, nisso, não diferente de tantas outras.
Porém, tratar-se-ia de uma resposta instrumental: não se trata, de fato, de um concurso de beleza entre sistemas políticos, mas sim da relevância do anúncio libertador de Cristo em contextos de violência de estado, que envenenam a vida de mulheres, homens e sociedade. As democracias celebram um cristianismo reacionário e buscam a cumplicidade das Igrejas. Para o cristianismo europeu, é também uma oportunidade de marcar uma descontinuidade, em relação a uma história decididamente marcada em demasia por uma adequação conformista. Porém, é preciso querer isso.
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Igrejas e democraturas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU