13 Abril 2021
“No deliberadamente compassado 'La Llorona' de Jayro Bustamente, o conto do espírito choroso é repensado para conjurar algo diferente. O filme, que oferece doses calibradas de realismo mágico até que o primeiro susto apareça em uma hora e meia de filme, coloca na frente e no centro uma crise de família gerada pelos altos perfis da figura patriarcal controversa”, escreve Antonio D. Sison, professor associado de Teologia Sistemática na Catholic Theological Union, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 03-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Onde reside o terror? Essa é a questão que seguidores do gênero devem responder quando assistirem “La Llorona”, o último trabalho do diretor guatemalteco Jayro Bustamante. Afinal, a lenda de ‘La Llorona’, o espírito ambulante de uma mãe chorando que, em desespero, afoga suas crianças, é uma figura de terror do folclore centro-americano. Sua encarnação moderna também aparece no recente “A Maldição da Chorona” (dirigido por Michael Chaves), um spin-off da popular franquia “Invocação do Mal”.
No deliberadamente compassado “La Llorona” de Bustamente, o conto do espírito choroso é repensado para conjurar algo diferente. O filme, que oferece doses calibradas de realismo mágico até que o primeiro susto apareça em uma hora e meia de filme, coloca na frente e no centro uma crise de família gerada pelos altos perfis da figura patriarcal controversa.
O homem no olho do furacão é Enrique Monteverde (Julio Diaz), um ex-comandante militar encarando acusações de genocídio e grandes violações de direitos humanos. Em um tribunal lotado, o velho general, com seu bigode grisalho e rosto enrugado, destaca-se por sua semelhança com Efraín Ríos Montt, o falecido ditador guatemalteco responsável pela matança sistemática de 1.800 indígenas suspeitos injustamente de associação com a insurgência comunista.
A presença de um círculo de mulheres indígenas com véus no tribunal corrobora poeticamente esse paralelo, trazendo à memória o julgamento do genocídio maia da Guatemala realizado em março de 2013. O referente histórico envolveu o massacre de homens, mulheres e crianças, mas há um foco mais profundo nas mulheres no filme.
Em uma cena comovente de tribunal, foca-se em uma mulher Kaqchikel idosa no banco das testemunhas. Ela dá seu testemunho austero e digno através de um véu azul translúcido finamente bordado com flores douradas – uma reminiscência dos símbolos marianos da Divina Maternidade – que autenticam visualmente suas palavras angustiantes: “Fomos estupradas... e então a matança começou”. A multidão irrompe quando um veredicto de “culpado” é dado, para algumas sequências depois descobrir que a decisão foi anulada na apelação, iniciando um redemoinho sociopolítico.
Com sua severa esposa Carmen (efetivamente interpretada por Margarita Kenéfic), sua filha Natália (Sabrina de la Hoz) e sua jovem neta Sara (Ayla-Elea Hurtado), o general vive trancado em seu condomínio fechado. Ao mesmo tempo, manifestantes enfurecidos ocupam constantemente os arredores. Os residentes, atendidos por empregados e funcionários, estão mantendo suas vidas de privilégio, mesmo quando uma tempestade está se formando em volta deles.
A casa é quase uma personagem em si mesma, seus quartos e corredores envolvendo seus ocupantes em um claro-escuro de segredos condenatórios. Na claustrofobia pressurizada da residência Monteverde, o general enfermo e senil ouve o lamento misterioso de uma mulher, levando-o a agir de maneiras bizarras e imprevisíveis.
Não há falta de simbolismo significativo em “La Llorona”, que é um bom presságio para o domínio da linguagem cinematográfica de Bustamante.
A enigmática jovem Alma (interpretada por María Mercedes Coroy, a protagonista do filme de Bustamante aclamado pela crítica “Ixcanul”, de 2015) é uma empregada Kaqchikel recém-contratada. Semelhante ao assombrado Sadako da trilogia japonesa “O Anel”, Alma tem cabelos longos e pretos. Em uma cena, ela traz um grande sapo para dentro de casa, prenunciando a invasão de numerosos sapos em uma cena posterior. A conexão com a história do Faraó e a praga de sapos encontrada em Êxodo 8, 1-15 é aparente aqui, uma portentosa acusação da culpa do general.
O motivo contínuo da água – uma torneira está aberta de repente, um banheiro inundado, imersões na pia e na piscina – aponta para uma cena de crime distante, como fumaça sinalizando um incêndio. A própria Alma é um emblema, seus olhos grandes como piscinas de água em uma noite escura, refletindo assustadoramente o indizível. Então há o som contínuo de cantos, tambores e música de protesto que bombardeia a casa por todos os lados, sufocando qualquer aparência de paz.
Não é incomum que filmes de terror reflexivos sirvam como metáforas para os sinais dos tempos. Do filme mudo de 1922 F.W. Murnau “Nosferatu”, que encarnou o terror distópico após a Primeira Guerra Mundial e a pandemia de Gripe Espanhola; ao clássico de Roman Polanski de 1968 “O bebê de Rosemary”, que reflete a filosofia “Deus está morto” da época; a “Corra!” (2017) de Jordan Peele, um comentário cinematográfico sobre o racismo nos Estados Unidos - os filmes de terror podem servir a um propósito catártico quando o discurso público comum se mostra inadequado para ventilar questões complexas e aterrorizantes.
Bustamante faz isso em “La Llorona” com um talento confiante, nunca exagerando, mas habilmente estabelecendo a ponte histórica por meio de uma camada de significado sutil.
O que nos traz de volta à pergunta: Onde está o terror? Não é preciso conhecer os detalhes do genocídio histórico da Guatemala para entender que, em “La Llorona”, o terror está perto de casa. Na sofisticada narrativa de Bustamante, o verdadeiro horror ferve e borbulha, mesmo que gradualmente, no coração das trevas de uma figura-monstro masculina que é culpado por incontáveis crimes contra a humanidade, incluindo o estupro, silenciamento e extermínio de mulheres.
A estudiosa feminista Phyllis Trible, em "Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives" ("Textos de Terror: Leituras feministas-literárias de narrativas bíblicas", em tradução livre), apropria a tão citada passagem bíblica João 15, 13 como princípio feminista crítico, tornando: “Menor poder a uma mulher não há do que dar sua vida a um homem”.
“La Llorona” é um filme poderoso e um lamento para os indígenas exterminados – crianças, homens e, não menos, mulheres.
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No filme guatemalteco ‘La Llorona’, o terror está mais perto de casa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU