29 Março 2021
"Se na Imitação de Cristo se sublinha especialmente a divindade de Cristo, seu mistério e sua proximidade pelo amor e a misericórdia, no Seguimento se acentua a prática do Jesus histórico, sem no entanto negar sua dimensão divina, sua sensibilidade para com os sofredores e sua atitude profética contra a piedade farisaica da época, insensível ao grito do oprimido e a arrogância dos poderosos", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
No artigo anterior apresentamos a Bíblia judaico-cristã como uma excelente leitura para a reflexão e meditação durante esses tempos penosos de isolamento social.
Agora sugiro outro livro, A imitação de Cristo e o seguimento de Jesus. Este livro é o mais lido na cristandade depois da Bíblia. Dele já se fizeram mais duas mil edições. Somente no British Museum existem cerca de mil. O autor é Tomás de Kempis (1308-1471), um mestre de noviços (aqueles que se preparam para entrar numa Ordem ou Congregação religiosa), durante a vida inteira. Resumiu as preleções que dava a estes jovens, no espírito da espiritualidade da época, que era a Devotio Moderna vivida nos claustros mas também entre os leigos. Esta espiritualidade se caracterizava fundamentalmente pela busca séria da vida interior, centrada no encontro e no diálogo com Cristo, focalizando especialmente sua cruz, paixão e morte. Ela separava fortemente Deus e mundo, espírito e matéria, tempo e eternidade, com certa depreciação das realidades terrestres, de suas atrações e de seus prazeres.
Não obstante as limitações do dualismo, Tomás de Kempis, melhor do que qualquer psicanalista, entendeu os labirintos mais escuros da alma humana, as solicitações do desejo, as angústias que ele produz, mas também apontou caminhos de como enfrentá-los, sempre confiados na graça de Deus, na misericórdia de Jesus, no completo despojamento de si mesmo e no desapego das coisas deste mundo.
Mostra ter sempre os pés no chão. O tema do despojamento de si mesmo e de todos os apegos do ego ganham relevância especial a ponto de terem atraído a atenção de psicólogos como Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, como também do filósofo Martin Heidegger. Aqui se encontra o pressuposto para a perfeita liberdade. No capítulo 5 do livro III faz o elogio do amor de uma forma tão profunda, elegante e entusiasta, que se emparelha com o que São Paulo escreveu sobre o amor na Primeira Carta aos Coríntios (13,1-13). Sempre procura consolar o fiel em seus padecimentos, enfatizando a alegria inaudita da intimidade com Cristo, e por fim a grandeza da recompensa que lhe está preparada na eternidade.
Toda a Imitação de Cristo vem dividida em quatro partes (livros): Recomendações úteis para a vida interior(I); Conselhos para a vida interior (II); A consolação interior (III); O sacramento do altar (IV). A imitação vem elaborada em pequenos tópicos. Jesus se dirige sempre de forma afetuosa: meu filho, minha filha querida, falando ao profundo da alma. O livro é tão inspirador que é praxe antiga de muitos cristãos de abrir-se aleatoriamente o livro e ler um dos tópicos. Coisa surpreendente: em geral é uma palavra iluminadora do problema que a pessoa está vivendo ou sofrendo. Por isso que é sempre lido e relido, à semelhança de um I-Ching, no sentido de buscar luz para o caminho.
No esforço de superar o dualismo, próprio da época e devido à importância da Imitação para a espiritualidade de todos os tempos, dediquei-me em fazer uma nova tradução a partir do original latino de 1441, com uma particularidade: tomando como referência a teologia oficial do Magistério pontifício, especialmente consignada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e também dos documentos oficiais da Conferência Latino-americana de Bispos (CELAM) como de Medellin (1968), de Puebla (1979) e de Aparecida (2007) que articula o céu com a terra, a espiritualidade com o cotidianidade, tentei superar este dualismo. Mantendo a intenção original, coloquei um “e” onde Tomás de Kempis coloca um “ou”. Assim: amar os bens celestes sem no entanto desprezar os terrestres.
Por fim ousei acrescentar um quinto livro sobre o Seguimento de Jesus, mais adequado ao cristianismo comprometido com a vida, a justiça e a dignidade do humilhados e ofendidos. Se na Imitação de Cristo se sublinha especialmente a divindade de Cristo, seu mistério e sua proximidade pelo amor e a misericórdia, no Seguimento se acentua a prática do Jesus histórico, sem no entanto negar sua dimensão divina, sua sensibilidade para com os sofredores e sua atitude profética contra a piedade farisaica da época, insensível ao grito do oprimido e a arrogância dos poderosos. Seu propósito não foi criar uma nova religião com fiéis piedosos mas inaugurar o homem e a mulher novos, comprometidos com a ética do amor incondicional e da fraternidade sem fronteiras. Vazei meu texto com a visão que nos vem das ciências da vida, da Terra e do universo, conferindo contemporaneidade à nossa experiência de Deus (cf. edição da Vozes 2016). È a Devotio Moderna do século XXI.
Vale a pena ler e meditar a Imitação de Cristo e o Seguimento de Jesus pois pode nos manter no cuidado da vida de todos os humanos e da própria natureza. Termino com uma frase que parece dirigida à nossa situação e que abri aleatoriamente. Lá estava: “Procura tempo adequado para cuidar de ti mesmo...é preferível ficar em casa do que estar na rua sem o devido cuidado” (livro I cap.20).
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Durante o isolamento social: o que ler e como ler (II) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU